Wednesday 30 December 2015
O MORTO NA PRAÇA DE BEYAZIT
Um morto está deitado,
um jovem de dezoito anos,
ao sol dos dias,
à noite com as estrelas,
na Praça de Beyazit em Istambul.
Um morto está deitado:
segura numa mão o seu livro de estudo,
na outra o sonho interrompido antes de ter começado
em Abril no ano de mil novecentos e sessenta,
na Praça de Beyazit em Istambul.
Um morto está deitado.
Foi abatido,
e a ferida da bala
abre-se-lhe na fronte como um cravo vermelho,
na Praça de Beyazit em Istambul.
Um morto está deitado,
o sangue a cair na terra, gota a gota,
até ao dia em que o meu povo em armas
com cantos de liberdade
vier tomar de assalto a praça grande.
Nazim Hikmet
Sunday 27 December 2015
VARIAÇÕES EM TOM MENOR
Para jardim te queria.
Te queria para gume
ou o frio das espadas.
Te queria para lume.
Para orvalho te queria
sobre as horas transtornadas.
Para a boca te queria.
Te queria para entrar
e partir pela cintura.
Para barco te queria.
te queria para ser
canção breve, chama pura.
Eugénio de Andrade
Te queria para gume
ou o frio das espadas.
Te queria para lume.
Para orvalho te queria
sobre as horas transtornadas.
Para a boca te queria.
Te queria para entrar
e partir pela cintura.
Para barco te queria.
te queria para ser
canção breve, chama pura.
Eugénio de Andrade
Thursday 24 December 2015
ARENGA ÀS ROSAS E AOS HOMENS
Rosas, crescei, robustecei-vos, multiplicai-vos
até invadir as caixas fortes em caudais
até impedir as metralhadoras,
até semear a luz e a Primavera,
sobre a pólvora e o ferro,
até ocupar o ódio e as entranhas
das bombas, dos obuses, das balas e morteiros.
Crescei, rosas, crescei. Aumentai sem tréguas!
Enchei os olhos dos carniceiros,
florescei os cérebros belicosos,
à gente podre corroei-a de esperança,
iluminai o cérebro dessas bestas
que se alimentam de ouro, sangue e lágrimas;
que são capazes de matar a vida
porque ela em nossas mãos brilha e palpita.
Árvores, águas, pássaros, pomares,
cereais, videiras, operários, mães, plantas,
óleos, músicas, máquinas, ideias,
vamos proclamar a resistência
do amor contra a guerra.
O ar está a ser semeado de suspeitas
para nos amargurarem a alegria,
para que nos matemos, tu e eu, irmão,
agora que as dores amadurecem e o sentido
vai revelar-se ao mundo.
Trabalhai
de costas para o medo. Abri os olhos,
rosas, homens, ao bem e à beleza.
Crescei! Cantai! A vida é nossa:
a terra é nossa e nosso é o futuro.
Trabalhos, pensamentos, esperanças,
vossas e nossas, rosas, homens.
Nós acendemos as estrelas
e trazemos o dia. Através de nós
a paz realizar-se-á.
Estamos em perigo, rosas, homens,
perfume, sol, matéria, inteligência,
morte, ciência, fé, pedra, perdão, Deus.
Afoguemos os bárbaros em luzes!
Avançai, rosas, homens! Ocupai o mundo!
Ramon de Garciasol
Monday 21 December 2015
NOCTURNO A DUAS VOZES
- Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?
- Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
poisou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação.
- Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre de outra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.
- Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que meus dedos têm
para colher na noite.
- Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos,
e um rumor de água
vem no vento.
- Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.
- Cala-te, as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
à mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.
Eugénio de Andrade
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?
- Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
poisou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação.
- Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre de outra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.
- Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que meus dedos têm
para colher na noite.
- Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos,
e um rumor de água
vem no vento.
- Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.
- Cala-te, as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
à mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.
Eugénio de Andrade
Friday 18 December 2015
É PRECISO ESTAR CEGO
É preciso estar cego
ou ter nos olhos aparas de vidro,
cal viva,
areia a ferver,
para não ver a luz que brota em nossos actos,
que ilumina por dentro a nossa língua,
a nossa palavra diária.
É preciso querer morrer sem um sinal de glória e de alegria,
sem participação nos hinos futuros,
sem ficar na lembrança dos homens que hão-de julgar o passado
sombrio da Terra.
É preciso querer já em vida ser passado,
obstáculo sangrento,
coisa morta,
seco olvido.
Rafael Alberti
Tuesday 15 December 2015
DISCURSO TARDIO À MEMÓRIA DE JOSÉ DIAS COELHO
Éramos jovens, falávamos do âmbar
ou dos minúsculos veios de sol espesso
onde começa o verão; e sabíamos
como a música sobe às torres do trigo.
Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,
desatando um a um os nós do silêncio.
Pegavas num fruto: eis o espaço ardente
do ventre, espaço denso, redondo, maduro,
dizias: espaço diurno onde o rumor
do sangue é um rumor de ave -
repara como voa, e poisa nos ombros
da Catarina que não cessam de matar.
Sem vocação para a morte, dizíamos. Também
ela, também ela não a tinha. Na planície
branca era uma fonte: em si trazia
um coração inclinado para a semente do fogo.
Morre-se de ter uns olhos de cristal,
morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios.
Catarina, ou José - o que é um nome?
Que nome nos impede de morrer,
quando se beija a terra devagar
ou uma criança trazida pela brisa?
Eugénio de Andrade
ou dos minúsculos veios de sol espesso
onde começa o verão; e sabíamos
como a música sobe às torres do trigo.
Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,
desatando um a um os nós do silêncio.
Pegavas num fruto: eis o espaço ardente
do ventre, espaço denso, redondo, maduro,
dizias: espaço diurno onde o rumor
do sangue é um rumor de ave -
repara como voa, e poisa nos ombros
da Catarina que não cessam de matar.
Sem vocação para a morte, dizíamos. Também
ela, também ela não a tinha. Na planície
branca era uma fonte: em si trazia
um coração inclinado para a semente do fogo.
Morre-se de ter uns olhos de cristal,
morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios.
Catarina, ou José - o que é um nome?
Que nome nos impede de morrer,
quando se beija a terra devagar
ou uma criança trazida pela brisa?
Eugénio de Andrade
Saturday 12 December 2015
CHAMEI POR MIM
Chamei por mim quando cantava o mar
Chamei por mim quando corriam fontes
Chamei por mim quando os heróis morriam
E cada ser me deu sinal de mim.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Wednesday 9 December 2015
REQUIEM PARA PIER PAOLO PASOLINI
Eu pouco sei de ti mas este crime
torna a morte ainda mais insuportável.
Era Novembro, devia fazer frio, mas tu
já nem o ar sentias, o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa; uma navalha, o rumor
de abril podem matá-lo - amanhece,
os primeiros autocarros já passaram,
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira
página, o sangue apodrece ou brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida,
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, excepto claro
os meritíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Saló, não se importariam de assinar.
Seja qual for a razão, e muitas há
que o Capital, a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto.
A farsa a nojenta farsa essa continua.
Eugénio de Andrade
torna a morte ainda mais insuportável.
Era Novembro, devia fazer frio, mas tu
já nem o ar sentias, o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa; uma navalha, o rumor
de abril podem matá-lo - amanhece,
os primeiros autocarros já passaram,
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira
página, o sangue apodrece ou brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida,
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, excepto claro
os meritíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Saló, não se importariam de assinar.
Seja qual for a razão, e muitas há
que o Capital, a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto.
A farsa a nojenta farsa essa continua.
Eugénio de Andrade
Sunday 6 December 2015
Canção dos que vivem das suas mãos
Não peço o de ninguém.
Apenas o meu pão,
meu ar.
Apenas a flor,
o fruto do que fazem minhas mãos.
Jesus Lopez Pacheco
Thursday 3 December 2015
Arte de navegar
Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,
e a noite se faz barco,
e minha mão marinheiro.
Eugénio de Andrade
subitamente
se faz água no teu peito,
e a noite se faz barco,
e minha mão marinheiro.
Eugénio de Andrade
Tuesday 1 December 2015
O DENTE
Bebé tem um dente.
A família está contente:
«aba a boquinha
moste o dente...»
toda contente.
Bebé sorri
Bebé sabe já
que é preciso ter dente.
Mário Castrim
Monday 30 November 2015
A LIÇÃO
Francisco Miguel estava na prisão.
Todos os dias guardava do seu pão
para dar aos pombos
que vinham até ali
das velhas casas.
Ele sabia
que o dever
de todo o homem
é defender as asas.
Mário Castrim
Friday 27 November 2015
SOBRE O CAMINHO
Nada
nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra
Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença
Não colecciones dejectos o teu destino és tu
Despe-te
não há outro caminho
Eugénio de Andrade
nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra
Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença
Não colecciones dejectos o teu destino és tu
Despe-te
não há outro caminho
Eugénio de Andrade
Tuesday 24 November 2015
O VIANDANTE
Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o galope do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.
Carlos de Oliveira
Saturday 21 November 2015
OS NOMES
Tua mãe dava-te nomes pequenos, como se a maré os
trouxesse com os caramujos. Ela queria chamar-te
afluente-de-junho, púrpura-onde-a-noite-se-lava,
branca-vertente-do-trigo, tudo isto apenas numa sílaba.
Só ela sabia como se arranjava para o conseguir,
meu-baiozinho-de-prata-para-pôr-ao-peito.
Assim te queria. Eu, às vezes.
Eugénio de Andrade
Wednesday 18 November 2015
DESLIGANDO A TV
A esta hora as anémonas nadam evitando o lodo
e Jesus Cristo está ainda sentado à direita de Deus Pai.
É a ele que me dirijo: para que
evite a poluição das águas;
acenda a luz das auto-estradas;
faça admitir na Guarda Nacional indivíduos capazes;
fiscalize devidamente os empréstimos externos;
esteja ao lado dos camponeses e operários;
mantenha a nossa cidade limpa;
acabe de vez com a inflação e o contrabando;
não permita lock-outs;
não se alheie das graves dificuldades do Serviço Nacional de Saúde;
atenda as preces das mães solteiras;
não deixe continuar nesta situação o nosso único Zoo;
dê coragem aos que julgam que já não há nada a fazer;
tire da cabeça dos nossos governantes a ideia maluca
de mandarem construir uma central nuclear;
impeça o desvio dos nossos aviões;
dê um em empurrãozinho na Habitação Social;
veja bem o que se está a passar com os impostos;
dê também uma olhadela pela Secretaria de Estado da Cultura;
ajude o mais possível as nossas colheitas;
procure a maneira de actualizar as pensões de reforma e invalidez;
termine com as pequenas e grandes invejas dos nossos intelectuais;
volte a pôr a Feira do Livro na Avenida da Liberdade;
tente que cada um de nós ame mais o próximo ou
se não for possível
que ao menos façamos todos férias repartidas.
Joaquim Pessoa
Sunday 15 November 2015
Viagem através da campanha dos 50 mil contos
Os camaradas de Portimão foram ao mar
por sua conta. Chegaram de madrugada
melhor dizendo: de manhã.
Os camaradas meteram o peixe
em grandes selhas. Escamaram,
estriparam, escalaram,
levaram os caldeirões ao lume
sopraram o lume
levantavam as tampas de quando em quando.
Sabiamente cortaram
sardinhas, lulas, polvo, tamboril,
ruivo, raia, safio.
Os camaradas salgaram, temperaram, provaram
de colher na boca, os olhos longe,
à procura do gosto perfeito dos séculos.
Os camaradas traziam os pratos que as companheiras
repartiam ponderadamente
com a ciência das velhas mães.
Os camaradas vieram servir à mesa
deixavam os pratos, levavam as senhas
perguntavam: está bom ou não está, camarada?
Os camaradas ficaram a fazer as contas.
Os camaradas ficaram a arrumar a casa.
Alguns camaradas adormeceram durante o Canto Livre.
Mário Castrim
por sua conta. Chegaram de madrugada
melhor dizendo: de manhã.
Os camaradas meteram o peixe
em grandes selhas. Escamaram,
estriparam, escalaram,
levaram os caldeirões ao lume
sopraram o lume
levantavam as tampas de quando em quando.
Sabiamente cortaram
sardinhas, lulas, polvo, tamboril,
ruivo, raia, safio.
Os camaradas salgaram, temperaram, provaram
de colher na boca, os olhos longe,
à procura do gosto perfeito dos séculos.
Os camaradas traziam os pratos que as companheiras
repartiam ponderadamente
com a ciência das velhas mães.
Os camaradas vieram servir à mesa
deixavam os pratos, levavam as senhas
perguntavam: está bom ou não está, camarada?
Os camaradas ficaram a fazer as contas.
Os camaradas ficaram a arrumar a casa.
Alguns camaradas adormeceram durante o Canto Livre.
Mário Castrim
Thursday 12 November 2015
É SEMPRE TUDO IGUAL
É sempre tudo igual:
uma mulher que morre, um ser próximo
que pragueja e pergunta...
Tantas, tantas vezes
vivemos já a nossa existência.
Sabemos o papel, representamos bem
a cena,
entramos e saímos quando nos ordenam.
Nalgum sítio alguém deve aplaudir.
José Agustin Goytisolo
Monday 9 November 2015
ALENTEJO
O camponês alargou o braço
à cintura redonda da distância.
As palavras que tinha
subiam da cisterna da memória
encontraram a saliva na boca
todas se desfizeram na saliva.
Depois, José Luís cuspiu-as para a terra
brandamente
como se entregasse um filho
a sua mãe.
Mário Castrim
à cintura redonda da distância.
As palavras que tinha
subiam da cisterna da memória
encontraram a saliva na boca
todas se desfizeram na saliva.
Depois, José Luís cuspiu-as para a terra
brandamente
como se entregasse um filho
a sua mãe.
Mário Castrim
Friday 6 November 2015
DE QUE SERVE A BONDADE?
1
De que serve a bondade
quando os bondosos são logo abatidos, ou são abatidos
aqueles para quem foram bondosos?
De que serve a liberdade
quando os livres têm que viver entre os não-livres?
De que serve a razão
quando só a sem-razão arranja a comida de que cada um precisa?
2
Em vez de serdes só bondosos, esforçai-vos
por criar uma situação que torne possível a bondade, e melhor:
a faça supérflua!
Em vez de serdes só livres, esforçai-vos
por criar um situação que a todos liberte
e também o amor da liberdade
faça supérfluo!
Em vez de serdes só razoáveis, esforçai-vos
por criar uma situação que faça da sem-razão dos indivíduos
um mau negócio!
Brecht
Tuesday 3 November 2015
NOME DE FLOR
Liberdade.
Um nome
de flor
ou de voar.
A gota
em qualidade
de suor
que apaga a fome
e se põe a cantar.
Mário Castrim
Sunday 1 November 2015
ODE À REVOLUÇÃO
A ti,
assobiada-
escarnecida por balas de metralhadoras,
a ti,
que as baionetas ferem,
que as maldições envolvem,
grito enebriado
o início da ode
solene.
Oh! Bestial!
Oh! Ingénua!
Oh! Mesquinha!
Oh! Sublime!
Que outro nome te foi dado?
Em que te tornarás, ser de duplo rosto?
Um arquitectura harmoniosa
ou um amontoado de ruínas?
Exaltas o maquinista
coberto pela poeira do carvão,
o mineiro que perfura as entranhas da terra...
Exaltas,
veneras
o trabalho humano.
E amanhã...
Em vão
erguem as igrejas as flechas suplicantes,
os teus canhões de pescoço taurino
fazem saltar os milenários kremlins.
Glória!
Agonia das feridas mortais.
Uivo estridente das sereias.
Envias marinheiros
salvar num cruzador que vai a pique
um gatinho
esquecido.
E depois,
a multidão enfurecida
empurra à coronhada velhos almirantes,
lança-os de cabeça
do alto da ponte de Helsínquia.
O gosto áspero das feridas do passado,
vejo novamente as veias abertas.
Os burgueses amaldiçoam-te:
«Oh! sê três vezes maldita!»
mas o poeta,
eu,
dou-te a minha bênção:
Oh! Quatro vezes bendita, sê gloriosa!
Maiakovsky
Friday 30 October 2015
IMPRESSÃO DIGITAL
Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros com outros olhos,
Não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,
Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes,
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.
António Gedeão
Tuesday 27 October 2015
ESTOU AQUI
Pai, então!
Tens de aprender a andar.
Vou-te ensinar
a ti.
Segura a minha mão
ou o meu dedo.
Vá, não tenhas medo.
Eu estou aqui.
Mário Castrim
Tens de aprender a andar.
Vou-te ensinar
a ti.
Segura a minha mão
ou o meu dedo.
Vá, não tenhas medo.
Eu estou aqui.
Mário Castrim
Saturday 24 October 2015
Kyrie
Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!
José Carlos Ary dos Santos
Wednesday 21 October 2015
CADASTRADO
Uma vez, aos sete anos,
partiu à pedrada a lanterna da porta da igreja.
Dez anos depois, conduzindo um carro,
não parou num cruzamento de rua
onde havia um sinal de stop.
Dois anos depois, teve uma briga
num bar, e partiu a cabeça de um amigo
com uma garrafa de cerveja.
Quando se recusou a combater no Viet-Nam,
o seu cadastro provava como desde a infância,
sempre manifestara sentimentos
nitidamente de traidor à pátria.
Jorge de Sena
partiu à pedrada a lanterna da porta da igreja.
Dez anos depois, conduzindo um carro,
não parou num cruzamento de rua
onde havia um sinal de stop.
Dois anos depois, teve uma briga
num bar, e partiu a cabeça de um amigo
com uma garrafa de cerveja.
Quando se recusou a combater no Viet-Nam,
o seu cadastro provava como desde a infância,
sempre manifestara sentimentos
nitidamente de traidor à pátria.
Jorge de Sena
Sunday 18 October 2015
O Operário em Construção
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.
Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
Vinicius de Moraes
Thursday 15 October 2015
O CORREIO
O correio, com um carrinho, transporta dezenas de cartas
para cada casa. Recebidas as cartas,
as pessoas sentam-se a abri-las uma a uma.
Ofertas de livros obscuros, bónus para compra das coisas mais heteróclitas
(comprando uma fica-se comprando outras pela vida inteira),
de empréstimos bancários, de seguros de vida, etc. etc.
pedidos dos índios pobrezinhos, dos rapazes abandonados,
das crianças da Coreia, da propaganda da Bíblia, etc. etc.
Com isso, ao fim de uma hora, encheu-se o cesto de papéis.
Mas qualquer americano sentiria que o mundo o abandonara,
se o correio lhe não trouxesse essa hora
de saber-se destacado em listas de moradas
(que as entidades aliás, permutam entre si).
Jorge de Sena
para cada casa. Recebidas as cartas,
as pessoas sentam-se a abri-las uma a uma.
Ofertas de livros obscuros, bónus para compra das coisas mais heteróclitas
(comprando uma fica-se comprando outras pela vida inteira),
de empréstimos bancários, de seguros de vida, etc. etc.
pedidos dos índios pobrezinhos, dos rapazes abandonados,
das crianças da Coreia, da propaganda da Bíblia, etc. etc.
Com isso, ao fim de uma hora, encheu-se o cesto de papéis.
Mas qualquer americano sentiria que o mundo o abandonara,
se o correio lhe não trouxesse essa hora
de saber-se destacado em listas de moradas
(que as entidades aliás, permutam entre si).
Jorge de Sena
Monday 12 October 2015
*
Do que a vida é capaz!
A força dum alento verdadeiro!
O que um dedal de seiva faz
A rasgar o seu negro cativeiro!
Ser!
Parece uma renúncia que ali vai,
— E é um carvalho a nascer
Da bolota que cai!
Miguel Torga
Parece uma renúncia que ali vai,
— E é um carvalho a nascer
Da bolota que cai!
Miguel Torga
Friday 9 October 2015
Dia 267
O galo é um artista. Consagrado artista já sem palco, já sem público, crista roxa, rasa, sem rito nem relâmpago. Amo o galo pelo seu entendimento do tempo, pelo seu coração de fábula, o sangue quente, e o furor do pressentimento escavando a noite, enterrando os esporões nos flancos da vigília. Nada resta ao galo que não seja produto de conquista, orgulho e sapiência. Por isso recebe ainda a manhã como terra de irmãos, sem desânimo nem abandono.
O galo, aqui se sente, aqui se sabe. Alma louca e usada, ousada teimosia que não guarda lembranças, que escuta os vermes da terra em espaço de sombra, que acende o bico justo com suprema alegria. A si mesmo se inventa o galo, vestido de limites, coxas fixadas como gritos, e um canto vermelho e jovem contemplando o mais ínfimo cansaço de Deus. No corpo de vertigem, agitam-se mil bandeiras, mil penas, mil palavras.
Um veneno de giestas matará o galo. No momento em que se encontre a moer alegrias, a discutir com a noite em pleno dia.
O galo há de morrer da nossa inquietação. E da nossa infeliz vontade de condenar o mais imparcial dos corações livres.
Joaquim Pessoa
Tuesday 6 October 2015
Mano a Mano
Vim chorar a minha pena
No teu ombro e afinal
A mesma dor te condena
Choras tu do mesmo mal
Irmãos gémeos num tormento
Filhos da mesma aflição
Nenhum dos dois tem alento
P'ra dar ao outro uma mão
O amor não nos quer bem
E quem nos há-de valer
Se um perde aquilo que tem
E o outro não chega a ter
Só no resta um mano a mano
Se não queremos ficar sós
Deixa lá o teu piano
Namorar a minha voz
O amor não nos quer bem
E quem nos há-de valer
Se um perde aquilo que tem
E o outro não chega a ter
Só no resta um mano a mano
Se não queremos ficar sós
Deixa lá o teu piano
Namorar a minha voz
Maria do Rosário Pedreira
Saturday 3 October 2015
É IMPOSSÍVEL DISCUTIR...
É impossível discutir seja o que for.
Se se tem razão, ou não tem
é totalmente indiferente:
ou se aceitam as regras do jogo, ou se muda de vida e de lugar.
Jorge de Sena
Se se tem razão, ou não tem
é totalmente indiferente:
ou se aceitam as regras do jogo, ou se muda de vida e de lugar.
Jorge de Sena
Thursday 1 October 2015
Poema de um casamento «branco» no Forte de Peniche em 4/1/59
Como está pronta a terra para a semente
assim estavas debaixo do meu braço:
os nossos corações estavam tão juntos
que não ficava entre eles o menor espaço.
Na botoeira do meu fato escuro
pregaste um cravo branco.
Não sabia que no teu peito
nasciam cravos de uma tal brancura.
Um funcionário cansado
leu em voz monótona os papéis.
Dissemos: - Sim!-
E cumpriram-se as leis.
O sol deitava bagos de arroz amarelo
ondas pequenas vinham rebentar
na muralha
como garotos endiabrados
a pedir rebuçados.
As gaivotas pelo céu piavam.
Voltei para a cela só olhando o mar:
a tua falta era um cravo branco cortado
no meu peito a sangrar.
António Borges Coelho
in No mar oceano
(Fotografia do casamento de Isaura e António Borges Coelho realizado na Cadeia do Forte de Peniche em 1959 - Na exposição "Por teu livre Pensamento" - “Havia uma mesa, ela estava de um lado e eu do outro, separados. Estava o meu sogro, estavam os meus padrinhos de um lado - o O’Neill e a Maria Amélia Padez – e estavam os meus cunhados do outro, que eram os padrinhos dela. O meu sogro começou a passear na sala e a dizer que não havia direito e, por fim, passaram-na para o meu lado. Lá estivemos até ao fim da refeição que o meu sogro tinha levado.” (António Borges Coelho, in: Jornal Público, 16 de dezembro, 2018))
Wednesday 30 September 2015
O POEMA
Poemas, sim, mas de fogo
devorador. Redondos como punhos
diante do perigo. Barcos decididos
na tempestade. Cruéis. Mas de uma
crueldade pura: a do nascimento,
a do sono, a da morte.
Poemas, sim, mas rebeldes.
Inteiros como se de água, e,
como ela, abertos à geometria
de todos os corpos. Inteiros
apesar do barro e da ternura
do seu perfil de astros.
Poemas, sim, mas de sangue.
Que esses poemas brotem
do oculto. Que libertem o seu pus
na praça pública. Altos, vibrantes
como um sismo, um exorcismo
ou a morte de um filho.
Casimiro de Brito
Inteiros como se de água, e,
como ela, abertos à geometria
de todos os corpos. Inteiros
apesar do barro e da ternura
do seu perfil de astros.
Poemas, sim, mas de sangue.
Que esses poemas brotem
do oculto. Que libertem o seu pus
na praça pública. Altos, vibrantes
como um sismo, um exorcismo
ou a morte de um filho.
Casimiro de Brito
Sunday 27 September 2015
BIOGRAFIA
Protesto contra a vida,
mas amo-a com furor,
e odeio a paz traída
que me querem impor.
Qual dos homens sou eu,
de quantos posso ser?
Que foi que me venceu?
Ou é isto vencer?
Ás vezes, de tardar
a esperança em que cismo,
sinto-me soçobrar
num negro niilismo.
Não há ira nem pejo
que exprimam tanto nojo
com que aviltados vejo
tantos homens de rojo.
Ilusões e tristezas
quem é que nunca as teve?
Soltem-se as nuvens presas.
Faça-se a treva leve.
Cada homem só o é
porque outros homens há.
Sofre-se para quê?
Sempre dores haverá?
Acaso nada valha
viver-se vertical.
Mas cortem-me à navalha
e eu jurarei que vale.
Armindo Rodrigues
Thursday 24 September 2015
Poema da despedida
Não saberei nunca
dizer adeus
Afinal,
só os mortos sabem morrer
Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser
Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo
Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos
Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca
Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo.
Mia Couto
Monday 21 September 2015
POVO SEM LEI E SEM PÃO
Povo sem lei e sem pão
que desesperado esperas,
se te respeitas deveras,
levanta a face do chão.
Tempos houve em que falaste
aos reis de igual para igual.
O próprio rumo real
muita vez o apontaste.
Agora, pávido e frio,
atado de mãos e pés,
nada ouves, nada vês,
tens o coração vazio?
Que destino te vergou
que não poderás vergar,
se vergaste até o mar
quando era negro e só?
Povo sem lei e sem pão
que desesperado esperas,
sê ao menos, como eras,
rebelde na servidão.
Armindo Rodrigues
Friday 18 September 2015
Auto-retrato
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;
Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.
Bocage
Tuesday 15 September 2015
Lápide
Mozart morreu. E no meio da tempestade
de neve e abandono,
dois gatos-pingados
de rendas de luto
e vénias de minuete
lançaram o caixão
na vala comum,
a assobiar.
Todo o planeta
passou a ser a cova viva de Mozart.
José Gomes Ferreira
Saturday 12 September 2015
SONETO DO PRAZER MAIOR
Amar dentro do peito uma donzella;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Fallar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janella:
Fazel-a vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertal-a nos braços casta e bella:
Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a bocca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:
Vel-a rendida emfim a Amor fecundo;
Dictoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que ha no mundo.
Bocage
Wednesday 9 September 2015
Pequenos enredos para as pessoas, sem imaginação nem ouvidos para gozos tímbricos, ouvirem Schonberg e os seus descendentes
1
Naquela roseira do jardim geométrico
nasceu uma rosa de metal
a cheirar a gumes...
E ali ficou
à espera que um príncipe,
hirto de amor,
a arrebate
com delicadeza de dedos de alicate.
2
(Esta música também já tem os seus lugares-comuns.)
Mistério evidente com tantãs
e o breve sopro
que deixa na cara
o lençol da agonia...
Mas eu prefiro o outro,
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.
José Gomes Ferreira
Sunday 6 September 2015
Invocação à Noite
Ó deusa, que proteges dos amantes
O destro furto, o crime deleitoso,
Abafa com teu manto pavoroso
Os importantes astros vigilantes:
Quero adoçar meus lábios anelantes
No seio de Ritália melindroso;
Estorva que os maus olhos do invejoso
Turbem d'amor os sôfregos instantes:
Tétis formosa, tal encanto inspire
Ao namorado Sol teu níveo rosto,
Que nunca de teus braços se retire!
Tarda ao menos o carro à Noite oposto,
Até que eu desfaleça, até que expire
Nas ternas ânsias, no inefável gosto.
Bocage
Thursday 3 September 2015
TRÊS QUADRAS
P'ra provocar ódio e ira
ao cinismo e à vaidade,
cuspo na face à mentira,
beijando os pés à verdade.
Porque a mentira te agrade
não me deves obrigar
a ocultar a verdade
e a mentir p'ra te agradar.
Finges não ver a verdade,
porque, afinal, compreendes
que, atrás dessa ingenuidade,
tens tudo quanto pretendes.
António Aleixo
Tuesday 1 September 2015
Lá quando em mim perder a humanidade
Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um d′aquelles, que não fazem falta,
Verbi-gratia — o theologo, o peralta,
Algum duque, ou marquez, ou conde, ou frade:
Não quero funeral communidade,
Que engrole sub-venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu tambem vos dispenso a caridade:
Mas quando ferrugenta enchada idosa
Sepulchro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitaphio mão piedosa:
«Aqui dorme Bocage, o putanheiro:
Passou vida folgada, e milagrosa;
«Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.»
Bocage
Sunday 30 August 2015
Dizias-me...
Dizias-me há dias em jeito de a querer meter conversa; “escreve qualquer coisa
aqui”… e eu depois de ler estou em branco, vazio de palavras ou dizeres
ou sentires. Estou só e aqui, mas é como se não estivesse. É o corpo que
cansado ancorou aqui nesta espécie de fundeadouro de emoções. Só o
corpo porque a alma essa anda vogando no vento ao sabor da maresia ali
no oceano largo.
As emoções pregam-nos partidas e bloqueiam as palavras e os pensamentos e ficamos em branco, rubros por fora, acalorados, a disparar o sangue nas veias ou então numa espécie de catarse narcotizante que asfixia o sentir.
Já não te sinto é isso. Deixei de te sentir à tanto tempo que já não me lembro. Tenho algumas dúvidas que tenhas existido, que não sejas só uma projecção do cérebro, um holograma de imagens e não mais que isso. Tenho duvidas de mim mesmo, da minha capacidade de discernimento à reacção a um simples acto teu de provocação a tentar que eu fique de outra cor que não o branco, ou as palavras se soltem dos cabos onde se encontram enleadas num emaranhado de ausências.
Eu sei que sabes que um dia te disse que o amor para mim era branco, que tem a cor da pureza. Mas nós já perdemos a inocência do amor e das palavras e dos actos. Fomos a perdição um do outros ambos sabemos e já não temos remédio ou mesinha caseira que nos cure ou nos faça ficar de outra maneira que não esta, branca esvoaçante como a roupa a secar no fieiro, ali na Afurada dos tempos antigos.
Somos um branco anónimo desbotado pelo tempo, e nem esta tentativa de retomar as palavras é coerente ou permite que me liberte.
As vezes, sim, sei que deve ser quando durmo, sonho-te e acordo com um sorriso, aos poucos o sonhar volta, quase que juro, algumas vezes sinto o teu calor, o teu corpo, ou é o meu sangue que ferve fulminado por febres e me engana.
As emoções pregam-nos partidas…
As emoções pregam-nos partidas e bloqueiam as palavras e os pensamentos e ficamos em branco, rubros por fora, acalorados, a disparar o sangue nas veias ou então numa espécie de catarse narcotizante que asfixia o sentir.
Já não te sinto é isso. Deixei de te sentir à tanto tempo que já não me lembro. Tenho algumas dúvidas que tenhas existido, que não sejas só uma projecção do cérebro, um holograma de imagens e não mais que isso. Tenho duvidas de mim mesmo, da minha capacidade de discernimento à reacção a um simples acto teu de provocação a tentar que eu fique de outra cor que não o branco, ou as palavras se soltem dos cabos onde se encontram enleadas num emaranhado de ausências.
Eu sei que sabes que um dia te disse que o amor para mim era branco, que tem a cor da pureza. Mas nós já perdemos a inocência do amor e das palavras e dos actos. Fomos a perdição um do outros ambos sabemos e já não temos remédio ou mesinha caseira que nos cure ou nos faça ficar de outra maneira que não esta, branca esvoaçante como a roupa a secar no fieiro, ali na Afurada dos tempos antigos.
Somos um branco anónimo desbotado pelo tempo, e nem esta tentativa de retomar as palavras é coerente ou permite que me liberte.
As vezes, sim, sei que deve ser quando durmo, sonho-te e acordo com um sorriso, aos poucos o sonhar volta, quase que juro, algumas vezes sinto o teu calor, o teu corpo, ou é o meu sangue que ferve fulminado por febres e me engana.
As emoções pregam-nos partidas…
João marinheiro
Thursday 27 August 2015
POEMA
(A Eterna Criança que me persegue a pedir esmola. Grito de cólera.)
Ouve, Não-sei-quem:recuso-me a viver
num mundo assim de lua podre
disfarçado de flores
com repetições de esqueletos
e a Eterna Voz Faminta
aqui na minha frente
- pálida de existir!
Ouve, Não.sei-quem:
e se, depois de tudo isto,
ainda há céu e inferno
ou outra sombra intermédia,
recuso-me terminantemente a morrer
e a entrar nessa comédia!
José Gomes Ferreira
Monday 24 August 2015
III
Já não te amo.
Sinto só a falta que me fazes todos os dias em que escrevo só, aqui neste pedaço do mundo tão estranho.
A maioria das vezes caminho por esta cidade que eu quis nossa, sozinho.
E sou um estranho de visita tão breve como breve é o desejo ou o arfar do peito.
Caminho a bordejar o Douro. Sempre o Douro. O nosso rio, e já não reconheço os lugares, as pedras da calçada, as pedras do molhe na Cantareira. A Foz. Nada! Já não me reconheço na névoa que me embacia o olhar.
Paro a descansar. A reunir as emoções em forma de palavras frias. A registar o momento tão breve de nós que nunca fomos. Preciso de te registar em palavras. A forma desumana e possível. O amor-perfeito no passado e no futuro mais que perfeito, imperfeito na essência por não ser realizável.
Caminho, os olhos desertos não vêem a luz do sol a espraiar-se nas águas do Douro, o eléctrico que passa amarelo, velho, a reluzir nos trilhos em aço coçados. O guarda-freio antigo de chapéu e fato azul-escuro, afável, e calmo, com todo o tempo que dura a viagem breve demais para que se possa sonhar o tempo.
Já não te amo. Já não quero sonhar que te amo. Já não quero imaginar que te amo. Já não!
O eléctrico tão antigo e tão terno a tilintar em cada paragem. Os trilhos a abraçarem o Douro de mãos dadas. Olho quando passa, e fica-me cá dentro a pintura do eléctrico amarelo e os rostos voltados para dentro de si, fechados. Eu olho, mas não vejo no coração das pessoas, e fico aflito se serei humano, ou um autómato inventado por mente alucinada aqui, nesta cidade tua que eu queria nossa e não consigo.
Caminho
A vida é um jogo.
João marinheiro
Friday 21 August 2015
VITÓRIA!
Derrotado, ao assalto voltei,
minhas feridas sarei
e tornei;
de novo batido fui,
mas no combate o braço armei,
com força maior
tornei;
as lutas eram tam grandes,
novo desastre encontrei
- feito em pedaços meu corpo,
ainda forças busquei...
Cem vezes ao combate
parti.
E por fim,
o que queria consegui.
Joaquim Namorado
Tuesday 18 August 2015
Mas sei das limitações das minhas mãos...
E depois fui teu e tu minha, plenos sem fronteiras ou barreiras
Sem medos e fui feliz. Muito. Como faz anos não era.
É pouco para quem quer muito
Mas sei das limitações das minhas mãos
Não posso querer tudo sob pena de não ter nada
Não te posso prender, é isso
E a distância ainda é grande, embora agora a curva seja descendente e se encurte lentamente.
João marinheiro
Saturday 15 August 2015
Legenda para a vida de um vagabundo
Nasci vagabundo em qualquer país,
minhas fronteiras são as do mundo.
Esta sina vem-me no sangue:
não me fartar! Um desejo morto,
mais dez a matar.
O caminho é longo!...
- Mas nada é longe e distante
quando se quer realmente...
E nunca o cansaço é tão grande
que um passo mais se não possa dar.
Joaquim Namorado
Wednesday 12 August 2015
De memória...
Escrevo-te de memória
Sentado no muro do cais na foz
Enquanto o rio corre calmo para o mar
E a noite cai sobre nós
Escrevo-te de memória
Aninhado no teu abraço
No calor do teu corpo enlaçado no meu
Enquanto te afago os cabelos longos
E de olhos fechados te absorvo em mim como um néctar…
João marinheiro
Sunday 9 August 2015
soneto do amor e da morte
quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.
quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não
tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.
Vasco Graça Moura
Thursday 6 August 2015
Dos tornados....
Chegaram os tornados
A força do vento, o rugido do mar
E o barco range em estalidos de medo na noite
Os relâmpagos cortam o negro da madrugada
E as velas estivadas todas, repousam nas vergas
Os brandais gemem em silvos como cordas de guitarra afinadas
ao limite
A proa afunda na cava da vaga e o velho navio lentamente
galga a onda e o medo
Estou ao leme, esta roda imensa onde me agarro com as duas
mãos
Enquanto o sueste me protege da água que cai em bátegas
doces do céu aberto e negro
É uma travessia sem rumo mar adentro a fugir da tempestade
Levo um sorriso nos lábios e o teu perfume no pensamento
És a minha estrela polar, a minha constelação, o meu norte
Neste mar branco de espuma e sal o leme obedece certo
A todos os mandamentos rápido a fugir do naufrágioO arnez segura-me como um cordão umbilical
E o motor estremece sob os meus pés
Em círculos perfeitos de 900 rotações por minuto. Três nós…
Singramos lentamente, quase parados, quase.
Tenho Leça por estibordo, o farol em relâmpagos ritmados e
certos
Conheço-lhe a cor e forma mesmo na noite
Como te conheço a ti
As formas de olhos fechados, e o toque da pele e o teu
cheiro a maresia
O redondo dos seios.
Chegaram os tornados
É inverno adiantado no mar.
João marinheiro
Monday 3 August 2015
A VERDADE
A verdade é semelhante a uma adolescente
vibrante, flexível, em radiosa sombra.
Quando fala é a noite translúcida no mar
e a esfera germinal e os anéis da água.
Um apelo suave obstinado se adivinha.
Ela dorme tão perfeitamente despertada
que em si a verdade é o vazio. Ela aspira
à cegueira, ao eclipse, à travessia
dos espelhos até ao último astro. Ela sabe
que o muro está em si. Ela é a sede
e o sopro, a falha e a sombra fascinante.
Ela funda uma arquitectura volante
em suspensas superfícies ondulantes.
Ela é a que solicita e separa, delimita
e dissemina as sílabas solidárias.
António Ramos Rosa,
in "Volante Verde"
Saturday 1 August 2015
Segredo...
meu amor do outro lado do mar.
gosto-te
um gostar inexplicável, que faz tremer por dentro de emoção
que faz o coração bater rápido a tentar ultrapassar o peito
onde se encerra
um gostar que corta a respiração na ânsia de perpetuar o
momento
o contacto dos lábios
a pele
os cabelos
as tuas mãos
o riso
espécie de melodia aos ouvidos
depois, depois o olhar espraia-se em mim e eu perco-me
enamoro-me como um adolescente sem jeito
tudo isto és tu em mim
e mais que não consigo dizer por palavras, só sentir...
tão bom murmurar-te ao ouvido baixinho para que ninguém
escute
amo-te.João marinheiro
Thursday 30 July 2015
A MINHA SECRETÁRIA
Tenho um ramo
de nuvens
na minha secretária
por entre versos
cartas
cadernos e diários
uma caneta
com tinta de gardénia
de paixão e soneto
E na gaveta de segredo
porque
a poesia salva
eu guardo a minha alma
Maria Teresa Horta
Monday 27 July 2015
POEMA
Façam-se os alicerces da cidade do futuro
nas rotas que a metralha vai abrindo!
Erga-se a nova Torre de Babel dos homens
com os destroços deste mundo velho!
Que se confundam, numa só, as línguas,
como, na podridão, se confundiram
os cadáveres daqueles que vestiam
uniformes diferentes!
Que continue calma e silenciosa
a Terra de Ninguém,
por ser a Terra de Todos!
Irmão, se o sacrifício se consuma,
Irmão, que o sacrifício se aproveite!
Álvaro Feijó
Friday 24 July 2015
La Samarreta - A Camiseta
Jo sóc fill de família molt humil,
tan humil que d'una cortina vella
una samarreta en feren. Vermella.
D'ençà, per aquesta samarreta,
no he pogut caminar ja per la dreta.
He hagut d'anar contracorrent
perquè jo no sé què passa
que tothom que el ve de cara porta el cap topant de terra.
D'ençà, per aquesta samarreta
no he pogut sortir al carrer,
ni treballar al meu ofici, fer de ferrer.
He hagut de en el camp guanyar jornals,
ai, si la gent ja no em veia,
jo treballava amb la corbella.
I dintre de tots els mals,
sé treballar amb dues coses:
amb el martell i la corbella.
Gairebé no comprenc perquè la gent
quan em veia pel carrer
em cridava: Progressiste!
Jo crec que tot això era promogut pel seu despiste.
Potser un altre en les meves circumstàncies
ja hagués canviat de samarreta.
Però jo que m'hi trobe molt bé amb ella,
perquè abriga, me l'estime,
i li pregue que no se me faça vella.
Ovidi Montllor
Introdução falada da música:
"Em Valência, no País Valenciano, para segar o trigo, alfalfa, etc. usam
uma ferramenta que se chama 'corbella' ('foice'). Até aquí a
explicação.
Agora falemos da música, uma das primeiras canções que fiz e
uma das últimas que cantei:
'A camiseta'"
Eu sou filho de família muito humilde.
Tão humilde que duma cortina velha
uma camiseta fizerem: vermelha.
Desde então, por esta camiseta,
não pude caminhar já pela direita.
Tive de ir contracorrente
porque eu não sei que é que se passa
que toda a gente que vem de cara
leva a cabeça para o chão.
Desde então, por esta camiseta,
não pude sair mais à rua.
Nem trabalhar no meu ofício: fazer de ferreiro.
Tive de, no campo, ganhar diárias.
Assim a gente já não me veia:
Eu trabalhava com a foice de segar.
E dentro de todos estes mais,
sei trabalhar com duas coisas:
com o martelo e a foice.
Quase não compreendo porque a gente,
quando me via pelas ruas me gritava: progressista!
Eu acho que isso era promovido pelo seu "despiste".
Se calhar um outro nestas circunstâncias,
já mudaria de camiseta.
Mas eu, que me encontro tão bem com ela.
Porque me abriga, quero-a,
e peço-lhe que não se faça velha.
Tuesday 21 July 2015
VIAGEM
I
Capitão, aqui estou.
Comigo, a bagagem:
No saco de marujo trago um naco de pão
dentro do peito a ânsia da viagem.
II
Venho de longe, sabes, de tão longe
de países que não existem nos mapas.
Percorri rotas, cortei a nado os mares mais temerosos
e cheguei
cansada e desperta da viagem.
Aqui estou
inteira.
Na intimidade do chão, da comida saboreada,
porque não é apenas comida
mas um pretexto para fazer gestos em comum
Para sentir o prazer de os repetir - os repartir
Até quando...
prefiro não pensar
Por agora
fico-me
no imenso prazer de partilhar.
III
Lá fora
no frio da noite sei que a lua nasceu
sei que no cais há barcos que esperam
e gente, como nós, a aguardar a hora impossível da partida.
Maria Eugénia Cunhal
Saturday 18 July 2015
Cala-te, Filho, não penses nisso
Mãe, há pouco vi
um barco de prata
lá longe no mar,
eu cá quero, mãe,
nesse barco andar
Cala-te, filho, não penses nisso,
és muito pequeno,
não olhes prás ondas,
segue o teu caminho
Mãe, o filho do patrão,
pequeno como eu,
anda naquele barco,
ninguém lhe diz não.
Porque não posso eu?
Ai, filho, não sei
Mãe, há pouco vi
um cavalo a trotar
naquele prado além,
eu cá quero, mãe,
nesse cavalo andar
Cala-te, filho, não penses nisso,
és muito pequeno,
e é tão perigoso,
segue o teu caminho
Mãe, o filho do patrão,
pequeno como eu,
tem um cavalo preto
com rédeas douradas.
Porque não o tenho eu?
Ai, filho, não sei...
Mãe, alguém me disse
que ao Bom Deus o peça,
que Ele mo há-de dar,
cavalo prá terra
e barco pró mar
Cala-te, filho, não penses nisso,
és muito pequeno,
Deus está ocupado,
segue o teu caminho
Mãe, o filho do patrão,
pequeno como eu,
ouve-o sempre Deus,
nunca lhe diz não.
Que mal lhe fiz eu?
Ai, filho, não sei!
Guillermina Motta
Cantautora catalã,
nasceu em Barcelona em 1942
Wednesday 15 July 2015
POEMA
(Mais uma definição de poeta num carro eléctrico para Almirante Reis.)
Poeta o que é?Um homem que leva
o facho da treva
no fundo da mina
- mas apenas vê
o que não ilumina.
José Gomes Ferreira
Sunday 12 July 2015
Intimidade
Sonhamos juntos
juntos despertamos
o tempo faz e desfaz
entretanto
não lhe importam teu sonho
nem meu sonho
somos trôpegos
ou demasiados cautelosos
pensamos que não cai
essa gaivota
cremos que é eterno
este conjuro
que a batalha é nossa
ou de nenhum
juntos vivemos
sucumbimos juntos
porém essa destruição
é uma brincadeira
um detalhe uma rajada
um vestígio
um abrir-se e fechar-se
o paraíso
já nossa intimidade
é tão imensa
que a morte a esconde
em seu vazio
quero que me relates
o duelo que te cala
por minha parte te ofereço
minha última confiança
estás sozinha
estou sozinho
porém às vezes
pode a solidão
ser
uma chama
Mario Benedetti
Thursday 9 July 2015
Monday 6 July 2015
Coração Couraça
Porque te tenho e não
porque te penso
porque a noite está de olhos abertos
porque a noite passa e digo amor
porque vieste a recolher tua imagem
porque és melhor que todas tuas imagens
porque és linda desde o pé até a alma
porque és boa desde a alma a mim
porque te escondes doce no orgulho
pequena e doce
coração couraça
porque és minha
porque não és minha
porque te olho e morro
e pior que morro
se não te olho amor
se não te olho
porque tu sempre existes onde quer que seja
porém existes melhor onde te quero
porque tua boca é sangue
e tens frio
tenho que te amar amor
tenho que te amar
ainda que esta ferida doa como dois
ainda que busque e não te encontre
e ainda que
a noite pese e eu te tenha
e não.
Mario Benedetti
Friday 3 July 2015
PROBLEMA
A não ser
perante alguma decisiva opção,
como há-de alguém saber
se o que é o é integralmente ou não?
Armindo Rodrigues
Wednesday 1 July 2015
Façamos um trato
Companheira
você sabe
que pode contar
comigo
não até dois
ou até dez
senão contar
comigo
se alguma vez
percebe
que a olho nos olhos
e um brilho de amor
reconheces nos meus
não alerte seus fuzis
nem pense que deliro
apesar do brilho
ou talvez porque existe
você pode contar
comigo
se outras vezes
me encontra
intratável sem motivo
não pense que fraquejara
igual pode contar
comigo
porém façamos um trato
eu quisera contar
com você
é tão lindo
saber que você existe
um se sente vivo
e quando digo isto
quero dizer contar
embora seja até dois
embora seja até cinco
não já para que acuda
pressurosa em meu auxílio
senão para saber
a ciência certa
que você sabe que pode
conta comigo.
Mario Benedetti
Tuesday 30 June 2015
Assim
Assim com as palavras envolvidas
pela raiva dos potros sangue novo
encurralado nas veias repartidas
pelas ruas calado a gritar povo
e ser uma cantiga um tiro um lenço
para as lágrimas doendo sobre o rosto
do meu país-abril onde me venço
varado pelas balas do desgosto
ou pela fome cuspida na poesia
aberta em cravo angústia ferramenta
com que o braço armado forja o dia
se a raiva do poema não aguenta.
Joaquim Pessoa
Saturday 27 June 2015
LAST POEM (ditado pelo poeta no dia da sua morte)
É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita.
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.
Alberto Caeiro
Wednesday 24 June 2015
Tenho fome da tua boca
Tenho fome da tua boca, da tua voz, do teu cabelo,
e ando pelas ruas sem comer, calado,
não me sustenta o pão, a aurora me desconcerta,
busco no dia o som líquido dos teus pés.
Estou faminto do teu riso saltitante,
das tuas mãos cor de furioso celeiro,
tenho fome da pálida pedra das tuas unhas,
quero comer a tua pele como uma intacta amêndoa.
Quero comer o raio queimado na tua formosura,
o nariz soberano do rosto altivo,
quero comer a sombra fugaz das tuas pestanas
e faminto venho e vou farejando o crepúsculo
à tua procura, procurando o teu coração ardente
como um puma na solidão de Quitratue.
Pablo Neruda
Sunday 21 June 2015
UNO
Não creias senão em ti e naquilo que te cerca.
Porque aquilo que te cerca és tu.
E, por mais que te pareça estranho e primitivo,
tu és apenas aquilo que te cerca.
Não creias senão em ti.
Bem sei que há: o eco das montanhas e o mistério das sombras.
Mas o que é o eco das montanhas senão a tua voz?
E o mistério das sombras mais que uma ausência de luz?
Bem sei que para além da ilusão do horizonte
há ainda mais coisas.
Mas não as creias diferentes e superiores a ti,
crê antes que são longe e, sobretudo, coisas como tu.
Não creias no não sei quê:
o não sei quê é sempre qualquer coisa.
O papão do oó das histórias de menino
era afinal um pobre inofensivo
ou uma velha vassoura atrás duma vidraça.
E a palavra do morto estendido no caixão
era apenas a ruptura duma artéria qualquer.
Os teus braços, tam curtos, estão na terra toda,
e a terra, tam pequena, está em todo o universo.
Não creias em existências para além ou para aquém.
Nem que tu estás aquém ou que tu estás além.
Tu que estás em toda a parte e tudo está em ti.
Mário Dionísio
Thursday 18 June 2015
Poeta de combate
Poeta de combate me chamaram.
De combate serei. Não mercenário!
Poeta de combate é um operário
das palavras que nunca se entregaram.
Poeta de combate! E porque não?
Sou poeta. Serei também soldado.
O meu canto será um canto armado
e o meu nome de guerra uma canção.
Poeta de combate me quiseram
os que cedo da luta desertaram
ou aqueles que nunca combateram.
Poeta de combate eu hei-de ser
até quando o meu povo precisar
ou nada mais houver a combater.
Joaquim Pessoa
Monday 15 June 2015
Só
Era só mão de obra.
Ocupavam uma praça de Chicago
com o coração na boca
só por oito horas de trabalho.
De repente na terra prometida
rebenta uma bomba
(só) anunciada nos jornais.
De repente a polícia dispara
de repente a mão de obra também
de repente morreram só dez ou pouco mais.
O resto da gente só fugiu...
Na rua silente
só ficaram os mortos e os cães.
Depois julgaram e enforcaram
só quatro terroristas de coração na boca.
Só seis anos depois
foram absolvidos de terem sido enforcados.
Afinal
tanto faz hoje dizer que foram cinco ou vinte e cinco
foi só o usual
o retado ritual
de quem pode só inventar uma bomba
anunciá-la nos jornais
e matar logo só uns tantos
e julgar e enforcar depois
só quatro escolhidos
que só queriam oito horas de trabalho.
Passados cem anos eles dizem
que foi só um erro...
Nós
aqui em Portugal
só temos a certeza
infinitesimal
duma vadia bandeira vermelha a flutuar.
Nós cá estaremos
contra eles
só até isto mudar.
Manuel Videira
Ocupavam uma praça de Chicago
com o coração na boca
só por oito horas de trabalho.
De repente na terra prometida
rebenta uma bomba
(só) anunciada nos jornais.
De repente a polícia dispara
de repente a mão de obra também
de repente morreram só dez ou pouco mais.
O resto da gente só fugiu...
Na rua silente
só ficaram os mortos e os cães.
Depois julgaram e enforcaram
só quatro terroristas de coração na boca.
Só seis anos depois
foram absolvidos de terem sido enforcados.
Afinal
tanto faz hoje dizer que foram cinco ou vinte e cinco
foi só o usual
o retado ritual
de quem pode só inventar uma bomba
anunciá-la nos jornais
e matar logo só uns tantos
e julgar e enforcar depois
só quatro escolhidos
que só queriam oito horas de trabalho.
Passados cem anos eles dizem
que foi só um erro...
Nós
aqui em Portugal
só temos a certeza
infinitesimal
duma vadia bandeira vermelha a flutuar.
Nós cá estaremos
contra eles
só até isto mudar.
Manuel Videira
Friday 12 June 2015
Tiempo sin tiempo
Preciso tiempo necesito ese tiempo
que otros dejan abandonado
porque les sobra o ya no saben
que hacer con él
tiempo
en blanco
en rojo
en verde
hasta en castaño oscuro
no me importa el color
cándido tiempo
que yo no puedo abrir
y cerrar
como una puerta
tiempo para mirar un árbol un farol
para andar por el filo del descanso
para pensar qué bien hoy es invierno
para morir un poco
y nacer enseguida
y para darme cuenta
y para darme cuerda
preciso tiempo el necesario para
chapotear unas horas en la vida
y para investigar por qué estoy triste
y acostumbrarme a mi esqueleto antiguo
tiempo para esconderme
en el canto de un gallo
y para reaparecer
en un relincho
y para estar al día
para estar a la noche
tiempo sin recato y sin reloj
vale decir preciso
o sea necesito
digamos me hace falta
tiempo sin tiempo.
Mario Benedetti
Tuesday 9 June 2015
O MINEIRO E O DIAMANTE
Mineiro pobre e viúvo.
De volta do turno da noite, ao descalçar as botas,
encontrou, em uma delas,
um pequeno diamante. Tão breve no tamanho
que alembrava a mais pequena das estrelas
na escuridão da noite.
Não se conteve. Chamou a filha.
E no azul dos olhos dela viu
o pequeno diamante mais crescido
que a estrela, que a estrela de alva.
De repente, mergulhou a cabeça entre as mãos
e pensou:
Entregá-lo à empresa das minas?
Não.
Ninguém devolve uma estrela. Sobretudo,
uma estrela que fugiu da Via-Láctea
e na bota de um mineiro se escondeu.
Luís Veiga Leitão
Saturday 6 June 2015
Variações do branco
Ergues o olhar: surpreendes por instantes essa hora
em que o mundo envelhece: ténues as variações do branco
parecem dissolvê-lo numa longínqua música, anterior à chuva
Ou será então a imagem submersa de um filme a preto e branco
Há próximo um branco vibrante: o da cal ainda recente
mas que a humidade salina já a espaços mordeu,
recortando as feridas cinza na varanda a que vens.
Não há ninguém aqui. Quem te chame, digo.
Há o branco baço na parede que em frente em vão separa
rua e praia. Tendo já transposto essa fronteira incerta
ou erguendo-se para lá dela há o branco pobre da areia:
As dunas plenárias sustentam os corpos deitados de mar e céu.
Aí é agora o grande branco: o clarão velado e difuso
que guarda e distribui a memória embaciada do azul
e do verde, do oiro e da prata — uma lembrança vã.
Tu escreves no visível do mundo essa névoa branca e desolada
que o motor da paisagem produz. As folhas do ar são como
se fossem as levíssimas pétalas, as vagas sílabas de uma neve –
e essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia os simulacros
das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia
enquanto esperas por alguém que não virá
Wednesday 3 June 2015
EPIGRAMA
Há só mar no meu País.
Não há terra que dê pão:
mata-me de fome
a doce ilusão
de frutos como o sol.
Uma onda, outra onda,
o ritmo das ondas me embalou.
Há só mar no meu País:
e é ele quem diz,
é ele quem sou.
Afonso Duarte
Monday 1 June 2015
Com que voz
Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura prisão me sepultou,
que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado?
.
Mas chorar não se estima neste estado,
onde suspirar nunca aproveitou;
triste quero viver, pois se mudou
em tristeza a alegria do passado.
.
Assim a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima o pé que o sofre e sente!
.
De tanto mal a causa é amor puro,
devido a quem de mim tenho ausente
por quem a vida, e bens dele, aventuro.
Luís Vaz de Camões
Saturday 30 May 2015
*
o poema
é como um corpo.
se ao encostá-lo à pele
não te arrepiares,
não entres nele.
por esforço
não o entenderás,
nem lhe resgatarás
qualquer prazer.
João Costa
Wednesday 27 May 2015
Poema
Cantaremos o desencontro:
o limiar e o linear perdidos
Cantaremos o desencontro:
a vida errada num país errado
Novos ratos mostram a avidez antiga
Sophia de Mello Breyner Andresen
Sunday 24 May 2015
KING LEAR
Viaja entre línguas, o tradutor
na noite do presídio. Masmorra vigiada
é ainda o cenário
que séculos não mudaram
nas tragédias do Poder. O filial amor
de Cordélia, tem no óculo viajante
de idiomas, uma outra trágica
filiação, que excede os tempos
da Bretanha e de Peniche: a demanda
total da liberdade.
Inês Lourenço
(Poema dedicado a Álvaro Cunhal)
| |||
Thursday 21 May 2015
LÍRICA SEM NEBLINA
Já nos versos dos Vedas,
há 2500 anos,
crepitavam as labaredas
dos problemas humanos.
Já então, quando as aves emigravam,
os homens não falavam de saudade,
mas simplesmente levantavam
uma canção à liberdade.
Então e sempre entrou a luta na poesia
como um pregão pela janela aberta
e enriqueceu-a dia a dia
numa perpétua descoberta.
Nem narcóticos, nem neblinas, nem adornos, nem véus,
pega o poeta em palavra, tijolos e argamassa,
e constrói um arranha-céus
que cada hora se ultrapassa.
E nesta maré de novo e de renovo,
movimento ascensional,
em cada poema o povo
põe a sua impressão digital.
Sidónio Muralha
Monday 18 May 2015
VULNERÁVEL
Tiro o resguardo do peito
entreabro o seu postigo
destranco as portas da alma
*
Derramo a luz onde era a calma
a casa aberta ao ladrão
sou vítima do que persigo
*
Dou-te as chaves se me pedes
escrevo do cofre o segredo
sou a sombra do meu medo
mas o meu susto desdigo
*
Chamo os linces que farejam
o sangue a dor e o vento
trago os chacais rastejando
por dentro do sofrimento
Maria Teresa Horta
Friday 15 May 2015
ROTEIRO
Parar. Parar não paro.
Esquecer. Esquecer não esqueço.
Se carácter custa caro
pago o preço.
Pago embora seja raro.
Mas homem não tem avesso
e o peso da pedra eu comparo
à força do arremesso.
Um rio, só se for claro.
Correr, sim, mas sem tropeço.
Mas se tropeçar não paro
- Não paro nem mereço.
E que ninguém me dê amparo
nem me pergunte se padeço.
Não sou nem serei avaro
- se carácter custa caro
pago o preço.
Sidónio Muralha
Tuesday 12 May 2015
Fado das Caldas
Calça justa bem esticada
Já manchada do selim
E plainas afiveladas
E plainas afiveladas
Antigamente era assim
Mantas de cor nas boleias
P’ras toiradas e p’ras ceias
De milorde aguisalhadaMantas de cor nas boleias
P’ras toiradas e p’ras ceias
À cabeça da manada
Trote largo e para a frente
Com os seus cavalos baios;
As pilecas eram raios
Fidalgos iam co'a gente
E p'la ponte da tornada
Por lá é que era o caminho
Bem conduzindo a manada
A passo, devagarinho
E quem mandava o campino
Era o mestre Vitorino
Praça cheia, toca o hino
Dos Gamas, toiro matreiro
Vitor Morais, o campino
Anadia, o cavaleiro
E que sortes bem rematadas
Havia nessas toiradas
Nos tempos eu que eu vivi
Findavam as brincadeiras
Nas barracas do Levi
Com dois tintos das Gaeiras
Entre cartazes e letreiros
De toiros e cavaleiros
Arnaldo Forte / Raúl Ferrão
Saturday 9 May 2015
PEQUENA BALADA DO SOLDADO ALIADO
Irá que o seu dever é ir.
Irá que assim lhe ordenaram.
Irá que é lá que está o inimigo.
Irá que o regime tem de cair.
Irá que a democracia deve impor-se.
Irá que uma nova ordem é precisa.
Irá que a vontade do povo não conta.
Irá que a paz faz-se com a guerra.
Irá que os mortos deles não se choram.
Irá que os vivos deles não se importam.
Irá que os filhos deles não são seus.
Irá que um herói deve lá estar.
Irá que Deus está com ele.
Irá que só Allah está com os outros.
Virá?
Joaquim Pessoa
Wednesday 6 May 2015
Voltar a ser criança
Guardei só a lembrança mais bonita
Do mundo de memórias que esqueci
Não fui eu que escolhi mas acredita
Que só me aconteceu lembrar de ti;
E a alma tudo esquece mas recita
Os versos que num dia te escrevi
Agora já nem sei o que a saudade
Pretende quando diz gostar de mim
Se lembrar-me de ti me dá vontade
De andar por entre as rosas do jardim;
E a vida que já vai pela metade
Acaba por não ter princípio ou fim
Mas para que a tristeza não regresse
Deixa que eu chegue ao fim desta canção
Que o nosso coração por vezes esquece
De dar valor ao que lhe está à mão
Não fui eu que escolhi mas acredita
Que só me aconteceu lembrar de ti;
E a alma tudo esquece mas recita
Os versos que num dia te escrevi
Agora já nem sei o que a saudade
Pretende quando diz gostar de mim
Se lembrar-me de ti me dá vontade
De andar por entre as rosas do jardim;
E a vida que já vai pela metade
Acaba por não ter princípio ou fim
Mas para que a tristeza não regresse
Deixa que eu chegue ao fim desta canção
Que o nosso coração por vezes esquece
De dar valor ao que lhe está à mão
Depois de eu te guardar nessa lembrança
Que nunca vai deixar de dar calor
Anda ser o meu par naquela dança
Que faz de nós dois, um só bailador;
É que ao dançar, eu volto a ser criança
E tu voltas para mim... oh meu amor
Que nunca vai deixar de dar calor
Anda ser o meu par naquela dança
Que faz de nós dois, um só bailador;
É que ao dançar, eu volto a ser criança
E tu voltas para mim... oh meu amor
Tiago Torres da Silva
Sunday 3 May 2015
SE EM PORTUGAL UM ESCRITOR...
Se em Portugal um escritor é largamente proclamado
com coros de louvores; e se é inteligente -
deve por certo começar a ter terríveis dúvidas
de ser alguma coisa de em verdade grande.
Porque a chamada crítica ou que se arroga tal
atira ciosamente lama e vómitos
a quem seja, senão grande, pelo menos digno
- numa ânsia de que o público imagine que a honradez
é um vício, e ser canalha uma virtude.
Jorge de Sena
Friday 1 May 2015
INDÓCIL
Não consigo ser sensata
com vagar aquietar-me
no covil das palavras
*
na colmeia dos versos
no forro de cobertura
onde se escondem as mágoas
*
Indócil não me permito
sossegar no rumor
nem fugir da minha vida
*
ignorando o fulgor
Maria Teresa Horta
Thursday 30 April 2015
**
Não morrerei.
Procurarei a sombra dos amieiros
-podes encontrar-me lá,
Quando buscares os meus dedos
À tua sede.
Junto ao rio
Adormecem as inquietações.
A vida toda fui lume
A consumir ao vento dos dias
O desassossego das giestas.
Procura-me lá.
Rente ao fresco
Como as tuas mãos frias
Depois do fogo.
Lains de Ourém
Monday 27 April 2015
O QUE DA RAZÃO NÃO FAZ...
O que da razão não faz
uma firme barricada
de que mais será capaz
que de não sê-lo de nada?
Pois vale a pena viver
a contrariar a vida?
Pior que a vida perder
é aceitá-la perdida.
Fique às nuvens e ao luar
a cobardia do céu.
Recto seria julgar
a lei primeiro que o réu.
Armindo Rodrigues
Friday 24 April 2015
Ao meu Povo
Nos cornos da saudade há uma forca
um fantasma castrado uma agonia
caindo sobre o sangue com a força
com que as palavras doem dia a dia.
No átrio da pureza cresce a fome
que escrevo sobre o rosto das cidades
caiadas no teu ventre no teu nome
onde invocam mentiras e verdades.
Meu povo meu lírio meu abraço
do linho que me envolve até à morte.
Por ti é que eu me dispo é que eu me faço
mais pobre mais triste mas mais forte.
Joaquim Pessoa
Tuesday 21 April 2015
A CANÇÃO DA FOME
Prezado senhor e rei,
sabes a notícia grada?:
segunda comemos pouco,
terça não comemos nada.
Quarta sofremos miséria,
e quinta passámos fome,
na sexta quase nos fomos,
não se aguenta q2uem não come.
Por isso vê se no sábado
mandas cozer o pãozinho,
senão no domingo, ó rei,
vamos comer-te inteirinho.
Georg Weerth
(poeta
alemão, nascido em 1822. Foi companheiro de luta de Marx e Engels, com
os quais manteve estreito contacto. Preso a dada altura pelo conteúdo
revolucionário dos seus escritos, viria a fugir para Inglaterra, onde
acompanhou Engels no estudo da vida e da luta do proletariado inglês.
Entre os dois criou-se uma sólida amizade. Engels considerava-o o maior e o mais importante poeta do proletariado alemão. Weerth morreu em 1856, com apenas 34 anos de idade)
Saturday 18 April 2015
Os Amigos
Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.
Eugénio de Andrade
in "Coração do Dia"
Wednesday 15 April 2015
O SUCESSO
Dentro da conhecida lógica
começou a operação psicológica
do «diz-se que».
E que diz o «se que»? diz que os aumentos
andam no vento
estão por um triz...
E talvez não - dizem alguns jornais -
talvez ainda demore uns dias mais...
Água, pão, luz - aí vêm os arremessos.
Cavaco aperfeiçoa o seu governo.
Em aumentos de preços
vai ser mesmo um governo de sucesso.
Mário Castrim
Sunday 12 April 2015
Dedicado ao deputado João Morgado
Já que o coito - diz o Morgado
Tem como fim cristalino
Preciso e imaculado
Fazer menina e menino,
E cada vez que o varão
Sexual petisco manduca
Temos na procriação
Prova que houve truca-truca.
Sendo pai de um só rebento
Lógica é a conclusão
De que o viril instrumento
Só usou - parca ração! –
Uma vez. E se a função
Faz o órgão - diz o ditado –
Consumada essa operação
Ficou capado o Morgado.
Natália Correia
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