Friday 30 September 2016

ABRIL ABRIL



Abril Abril Abril novo
Riso aberto na cidade
Porta de passar o povo
Águas mil de Liberdade

As portas que Abril abriu
viram coisas do Diabo
Mouro não saiu nenhum
mas entrou muito ladrão
a gritar por Santiago

As portas que Abril abriu
são portuguesas castiças
Nunca mais levaram tinta
nem óleo nas dobradiças

Vasco Costa Marques

Tuesday 27 September 2016

PEQUENA ELEGIA DE SETEMBRO

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos poisados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de Setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.


Eugénio de Andrade

Saturday 24 September 2016

AINDA NÃO DISSEMOS TUDO


A serpente persegue a sombra da águia
até ao lugar onde é mais profunda a raiz da água.
Porque escondes o teu livro
quando folheias o coração?
Em que lugar amadurecem cachos de surpresa
durante a ausência dos teus dedos?Esta manhã é soberba
de sonhos e de cães.
Espero por ti depois das horas de ternura
para mais ternura ainda.
Espero por ti depois do amor
para fazermos mais amor.
Façamos café, depois do fogo.
Temos, dos outros, as nossas mãos.
Herdámos a vida de mulheres e de homens antes de nós
e a outros homens e a outras mulheres não deixaremos
o vento como herança.
O que vês na água?
Com quê construíste a tua casa?
Em que manhã fizeste perguntas ao teu filho?
A serpente continua perseguindo
a sombra da águia.
De quem é o objecto que detens em tua mão?
Porque cresce a tristeza nos teus ombros?
Esse rio que passa à tua porta e chama por ti
é um rio de sangue
com um caudal de corpos inocentes.
As suas margens são agrestes mas a tua infelicidade
não deixa que lhes descubras os punhais.
Há em ti o mesmo rio.
Não poderás dar um passo, longe ou perto,
sem que firas a tua carne
ou magoes mais os ossos já antes magoados.
Tu tens as tuas próprias margens.
Por favor, destrói as tuas margens.
Acende uma fogueira para que dentro dos teus olhos
possas sentar-te comigo em redor do fogo.
A lua calou-se. Está morta.
Morreram com ela metade dos poetas
e a nova poesia será escrita pelos que sobreviveram.
Verás passar pela tua noite
os mais humildes, os mais sacrificados, aqueles que,
conhecendo o medo, não aceitam as privações
e a miséria. Não podes voltar-te
para o lado e adormecer. Não deves
voltar-te para o lado e tentar esquecer.
Há quanto tempo não escutas a tua fala?
Que espécie de claridade adquiriste para as tuas janelas?
Hoje não é o último dia?
Corre agora a serpente sobre a sombra da águia.
Para lá da tua bebida
morrem povos com sede.
Há milhares de crianças mortas
nos restos das tuas refeições.
Ajudas a assassinar rios, pássaros, e muitos dos teus irmãos
com um simples encolher de ombros.
Constroem-se toneladas de bombas na tua indiferença.
Envenenam-se oceanos para teu conforto.
Por toda a parte se polui o ar de vales e montanhas
para fabricar a tua asfixia.
De onde retirarás mais diamantes? Da boca dos cadáveres?
Em que morte
deixarás apodrecer a tua vida?
A serpente desafia
a sombra da águia.
A nossa manhã continua soberba
de sonhos e de cães.
Façamos café, depois do fogo.
E conversemos. Ainda não
dissemos tudo.

Joaquim Pessoa
in
PAIOL DE PÓLEN

Wednesday 21 September 2016

RETRATO DE MANUEL DA FONSECA

Eram campos campos campos
abertos de humanidade
era um vento que rasgava
apenas a claridade.

Eram palavras jorrando
de um olhar de escaravelho
era um homem inventando
a grandeza de ser velho.

Era terra fome sede
urze tojo trigo vinho
alcateia e almocreve
alfazema e rosmaninho.

Era um fogo aprisionado
uma explosão de romãs.
Era um menino alumbrado
entre as pernas da manhã.

José Carlos Ary dos Santos

Sunday 18 September 2016

Sabra Y Chatila


¿A dónde estaba el sol cuando sonaron
los ecos desatados de la ira?
¿No será que las sombras lo apagaron
en Sabra y Chatila?

¿A dónde estaba Dios, cuando la gente
fue sometida a hielo en las pupilas?
¿No será que se ha vuelto indiferente
en Sabra y Chatila?

¿A dónde estaba yo, en qué galaxia,
insensible leyendo la noticia?
¿No seré uno más en la falacia
de Sabra y Chatila?

¿A dónde estabas tú, con tu arrogancia,
poderoso señor que en la mochila
llevas todo el cadáver de la infancia
de Sabra y Chatila?

¿A dónde está la voz del abogado
fiscal de la razón y la justicia?
¿No será que sus leyes derogaron
en Sabra y Chatila?

¿A dónde está el orgullo de los hombres,
o acaso hay que decir ""hipocresía""?
¿Por qué tanto dolor no tiene nombre
en Sabra y Chatila?

¿De qué me estás hablando amigo mío?
¿No ves que mi conciencia está tranquila?
¿Qué tengo yo que ver con lo ocurrido
en Sabra y Chatila?

¿O acaso estaba yo con los soldados
metido a la distancia, entre sus filas
aceptando los hechos consumados
en Sabra y Chatila?

Es tiempo de dictar comunicados
que limen lo espinoso de la espina.
¿Qué harán para ocultar lo que ha pasado
en Sabra y Chatila?

¿Qué harán para que amengüe la condena
histérica, total y colectiva?
¿Qué harán para que cese la gangrena
de Sabra y Chatila?

Aunque yo siga ausente en mi galaxia
comentando en canciones la noticia,
el ángel del horror sigue su marcha
en Sabra y Chatila.

Deambula por Beirut y en otras lunas,
reptando sin parar, como una anguila.
Insaciable y cegado por la gula
de Sabra y Chatila.

Tal vez quiera llegar hasta mi puerta.
Quizá ya esté a la vuelta de la esquina.
Ya fue abierta la herida y sigue abierta
en Sabra y Chatila.

Alberto Cortez

Thursday 15 September 2016

INFÂNCIA


Não minha mãe. Não era ali que estava.
Talvez noutra gaveta. Noutro quarto.
Talvez dentro de mim que me apertava
contra as paredes do teu sexo-parto.

A porta que entretanto atravessava
talhada no teu ventre de alabastro
abria-se fechava dilatava.
Agora sei: dali nunca mais parto.

Não minha mãe. Também não era a sala
nem nenhum dos retratos de família
nem a brisa que a vida já não tem.

Talvez a tua voz que ainda me fala...
... o meu berço enfeitado a buganvília...
Tenho tantas saudades, minha mãe!

José Carlos Ary dos Santos

Monday 12 September 2016

- sem título -


de um naufrágio podem salvar-se as almas
havendo arrependimento
mas salvam-se corpos
havendo terra firme

tu és terra firme.

Miguel Tiago

Friday 9 September 2016

MEMÓRIA


Gotejam sangue as estrelas
(e a noite vai tão calma!...)
Rasgue-se a noite só para vê-las
que a treva basta já na nossa alma.

Companheiro morto à beira do caminho
que milhões de caminhantes já pisaram.
Tu não estarás jamais sozinho,
que contigo estão os que ficaram.

Orlando de Albuquerque
(In Poetas de Moçambique)

Tuesday 6 September 2016

PERDIMENTO


É como se nós os dois
dançássemos
o perdimento

Tu de rojo a meus pés
e eu erguida num ímpeto
a tentar turbar o tempo

As minhas mãos
a suster
e as tuas a empurrar

num mesmo gesto sedento

A entrega e a recusa
o corpo e o pensamento

Maria Teresa Horta

Saturday 3 September 2016

Poema

(Hora da visita. A Sra. Ermelinda também
estava à entrada com a cestinha onde ia aquela
sopa tão boa que ferveu desde as seis da manhã)


Entretanto cá fora
as mães aquecem com os dedos
as merendas nos cestos.

Outras sorriem
com inquietação de cilada.

São as que esconderam limas de sonho no pão
para os filhos cortarem as grades
e fugirem esta noite
pelos lençóis
da solidão rasgada.

José Gomes Ferreira

Thursday 1 September 2016

Meu galope é em frente


Direis que não é poesia
e a mim que importa?
Eu canto porque a voz nasce e tem de libertar-se.
E grito porque respondo
às lanças que me espetam
e aos braços que me chamam,
E porque, dia e noite, minhas mãos e meus olhos,
por estranhas telegrafias,
dos cantos mais ignotos
e das linhas perdidas
e dos campos esquecidos
e dos lagos remotos,
e dos montes,
recebem longas mensagens e comunicações:
para que grite e cante.
O meu grito e meu canto é a voz de milhões.
Por isso que me importa?
Eu canto e cantarei o que tiver a cantar
e grito e gritarei o que tiver a gritar
e falo e falarei o que tiver a falar.
Direis que não é poesia.
E a mim que importa
se eu estou aqui apenas para escancarar a porta
e derrubar os muros?
E a mim que importa
se vós sois afinal o que hei-de ultrapassar
e esmigalhar
em nome
de todos os futuros?
Eu sigo e seguirei,
como um doido ou um anjo,
obstinado e heróico a caminho de nós
em palavras e acções
por todos os vendavais
e temporais
e multidões
nos cantos mais ignotos
e nas linhas perdidas
e nos campos esquecidos
e nos lagos remotos
e nos montes
- por terra, mar e ar.
Direis que não é poesia
E a mim que importa!
Convosco ou não, meu galope é em frente.
Pertenço a outra raça, a outro mundo, a outra gente.
É andar, é andar!


Mário Dionísio