Tuesday 30 August 2022

sem título

chegará o tempo
de ser tudo nosso
caralho
das casas ao pão
bandeiras e palavras não serão alibi
nem justificação
tão culpado é o que lucra
como o que lhe dá a mão.
 
Miguel Tiago

Saturday 27 August 2022

sem título

talvez eu seja as dez primeiras páginas do livro
que decidiste a custo ler
porque era um clássico
e apenas possas das minhas linhas conhecer os nomes de um ou dois protagonistas
talvez eu seja o orvalho
que se demora nas folhas com o verde da manhã
os fugazes minutos da alvorada da meia-estação
talvez nem os relógios contem o tempo
do presente que trago nos braços e não dou a ninguém

talvez nem te lembres dos olhos semicerrados
ou dos beijos desamparados
talvez a música esteja para acabar
e eu seja aquele fim de noite
meio difuso
meio embriagado
sem manhã

nem por isso um minuto a menos
nem por isso um café por passar
nem que nos fechem o adamastor. 
 
Miguel Tiago

Wednesday 24 August 2022

falha astronómica

aquela poeta que te diz
que o mais importante da poesia 
é falar verdade, não para terceiros
senão para o próprio
e percorres um caminho 
de anos-luz e relâmpagos 
algumas órbitas 
em torno do teu coração 
um pulsar um quasar
uma volta no ar 
um horizonte de eventos que nem a luz deixa escapar
tantas léguas tantas lágrimas tantas verdades
que nunca escolherás a certa.
 
Miguel Tiago

Sunday 21 August 2022

*

faz-me uma pergunta
mas com as mãos em concha
enquanto guardam a água da chuva
ou enquanto fazes o pino
faz-me uma pergunta com a boca
e faz-me um pássaro com as mãos
no ecrã táctil da minha pele.
 
Miguel Tiago

Thursday 18 August 2022

sem título

tenho nas mãos o vento do teu sopro

e inteira nos lençóis uma galáxia.
 
 
Miguel Tiago

 

sem título

 
escreve um poema sem destinatário
entrega já colhido um coração
transportado a temperatura abaixo de zero
afinal de contas, o órgão nem notará diferença.
faz um filho fictício com o céu e as constelações todas
esconde uma galáxia no armário
dá apenas a epiderme no beijo mais fundo
todo de aço
inoxidável. 
 
Miguel Tiago

Monday 15 August 2022

sem passado se retorna ao passado

 
eis o ciclo venenoso da serpente que não matámos no ovo
as falsas bandeiras soprando ódio pelo túnel de vento 
construído com os tijolos das nossas escolas e os salários dos professores contratados 
os medos alastrando como uma doença pela pele afora contaminada pelo ar infecto dos esgotos construídos com o cimento dos nossos hospitais
a falta de tudo sentida assim no âmago de quem nunca teve nada
e essa voz que exige o fim da democracia mascarada de fim da corrupção
que anda pelas ruas de mão em mão sem morada fiscal 
mas sempre domiciliada no paraíso fiscal do aldrabão 

eis um veneno que se injecta nas veias da ignorância  
uma passadeira vermelha caminhada por ilusão 
um livro de estante dos destaques do hipermercado 
um imposto demasiado caro para um serviço que só apetece pedir o livro de reclamações
uma escola fechada um hospital com direito de admissão
um teatro igreja universal e um actor de esmola na mão 
uma ciência terraplanada e um doutor de bolsa não será possível agradecemos a sua compreensão
um polícia raivoso na fábrica ocupada e em auto-gestão e detectives brandos a ajudar a esconder as contas do patrão
uma mão na massa enquanto milhões amassam o pão

é nesse pântano que se torna ténue sem que nos apercebamos a luz
e ao contrário do que se passa com as igrejas
os museus iluminam bem mais quando não ardem.
 
Miguel Tiago

Friday 12 August 2022

sem título

esta merda não é um poema.
o fascismo não se vence com poemas. 

Miguel Tiago

Tuesday 9 August 2022

falas mansas

tanta palavra trocada
entre mestre e escravo
não vê o escravo
que a paz não é armistício
é rendição. 
 
Miguel Tiago

Saturday 6 August 2022

walk the (border)line

 
passeio no abismo
classificação do espectáculo:
maiores de dezoito.
 
Miguel Tiago

Wednesday 3 August 2022

sem título

por minha própria mão
o fogo no coração dos outros
e nunca entrei na unidade de queimados
aquele problema dos incendiários
que ouvem sirenes e se julgam bombeiros
apesar das nuvens e bulcões que os perseguem
até que o sol não brilhe
eis-me sem a matéria em que assento os pés
eis a tremenda massa ígnea que nos ascende
do estômago à alma
que nos transcende da alma à boca
rasgando os tímpanos
de todas as orquestras do mundo
eis um descanso uma clareira uma vontade
onde os lagos reflectem a verdade


aquele velho problema dos incendiários
não têm imagem nos espelhos
e nem sentem o sabor do sangue

e as flores o espanto
é a verdade que muda quando falas verdade.  

Miguel Tiago

Monday 1 August 2022

epitáfio para um Comunista

nenhuma liturgia é revolucionária
premissas válidas são as que podemos testar
tudo o resto é idealismo e escuridão. 
 
Miguel Tiago