Friday 30 October 2015

IMPRESSÃO DIGITAL


Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros com outros olhos,
Não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas
Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,
Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes,
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.


António Gedeão

Tuesday 27 October 2015

ESTOU AQUI

Pai, então!
Tens de aprender a andar.
Vou-te ensinar
a ti.
Segura a minha mão
ou o meu dedo.
Vá, não tenhas medo.

Eu estou aqui.

Mário Castrim

Saturday 24 October 2015

Kyrie


Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!


José Carlos Ary dos Santos

Wednesday 21 October 2015

CADASTRADO

Uma vez, aos sete anos,
partiu à pedrada a lanterna da porta da igreja.

Dez anos depois, conduzindo um carro,
não parou num cruzamento de rua
onde havia um sinal de stop.

Dois anos depois, teve uma briga
num bar, e partiu a cabeça de um amigo
com uma garrafa de cerveja.

Quando se recusou a combater no Viet-Nam,
o seu cadastro provava como desde a infância,
sempre manifestara sentimentos
nitidamente de traidor à pátria.

Jorge de Sena

Sunday 18 October 2015

O Operário em Construção


E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

Vinicius de Moraes

Thursday 15 October 2015

O CORREIO

O correio, com um carrinho, transporta dezenas de cartas
para cada casa. Recebidas as cartas,
as pessoas sentam-se a abri-las uma a uma.
Ofertas de livros obscuros, bónus para compra das coisas mais heteróclitas
(comprando uma fica-se comprando outras pela vida inteira),
de empréstimos bancários, de seguros de vida, etc. etc.
pedidos dos índios pobrezinhos, dos rapazes abandonados,
das crianças da Coreia, da propaganda da Bíblia, etc. etc.
Com isso, ao fim de uma hora, encheu-se o cesto de papéis.

Mas qualquer americano sentiria que o mundo o abandonara,
se o correio lhe não trouxesse essa hora
de saber-se destacado em listas de moradas
(que as entidades aliás, permutam entre si).

Jorge de Sena

Monday 12 October 2015

*


Do que a vida é capaz!
A força dum alento verdadeiro!
O que um dedal de seiva faz
A rasgar o seu negro cativeiro!

Ser!
Parece uma renúncia que ali vai,
— E é um carvalho a nascer
Da bolota que cai!

Miguel Torga

Friday 9 October 2015

Dia 267


O galo é um artista. Consagrado artista já sem palco, já sem público, crista roxa, rasa, sem rito nem relâmpago. Amo o galo pelo seu entendimento do tempo, pelo seu coração de fábula, o sangue quente, e o furor do pressentimento escavando a noite, enterrando os esporões nos flancos da vigília. Nada resta ao galo que não seja produto de conquista, orgulho e sapiência. Por isso recebe ainda a manhã como terra de irmãos, sem desânimo nem abandono.
O galo, aqui se sente, aqui se sabe. Alma louca e usada, ousada teimosia que não guarda lembranças, que escuta os vermes da terra em espaço de sombra, que acende o bico justo com suprema alegria. A si mesmo se inventa o galo, vestido de limites, coxas fixadas como gritos, e um canto vermelho e jovem contemplando o mais ínfimo cansaço de Deus. No corpo de vertigem, agitam-se mil bandeiras, mil penas, mil palavras.
Um veneno de giestas matará o galo. No momento em que se encontre a moer alegrias, a discutir com a noite em pleno dia.
O galo há de morrer da nossa inquietação. E da nossa infeliz vontade de condenar o mais imparcial dos corações livres.


Joaquim Pessoa

Tuesday 6 October 2015

Mano a Mano


Vim chorar a minha pena
No teu ombro e afinal
A mesma dor te condena
Choras tu do mesmo mal

Irmãos gémeos num tormento
Filhos da mesma aflição
Nenhum dos dois tem alento
P'ra dar ao outro uma mão

O amor não nos quer bem
E quem nos há-de valer
Se um perde aquilo que tem
E o outro não chega a ter

Só no resta um mano a mano
Se não queremos ficar sós
Deixa lá o teu piano
Namorar a minha voz

O amor não nos quer bem
E quem nos há-de valer
Se um perde aquilo que tem
E o outro não chega a ter

Só no resta um mano a mano
Se não queremos ficar sós
Deixa lá o teu piano
Namorar a minha voz


Maria do Rosário Pedreira

Saturday 3 October 2015

É IMPOSSÍVEL DISCUTIR...

É impossível discutir seja o que for.
Se se tem razão, ou não tem
é totalmente indiferente:
ou se aceitam as regras do jogo, ou se muda de vida e de lugar.

Jorge de Sena

Thursday 1 October 2015

Poema de um casamento «branco» no Forte de Peniche em 4/1/59


Como está pronta a terra para a semente
assim estavas debaixo do meu braço:
os nossos corações estavam tão juntos
que não ficava entre eles o menor espaço.

Na botoeira do meu fato escuro
pregaste um cravo branco.
Não sabia que no teu peito
nasciam cravos de uma tal brancura.

Um funcionário cansado
leu em voz monótona os papéis.
Dissemos: - Sim!-
E cumpriram-se as leis.

O sol deitava bagos de arroz amarelo
ondas pequenas vinham rebentar
na muralha
como garotos endiabrados
a pedir rebuçados.

As gaivotas pelo céu piavam.
Voltei para a cela só olhando o mar:
a tua falta era um cravo branco cortado
no meu peito a sangrar.

António Borges Coelho
in No mar oceano

(Fotografia do casamento de Isaura e António Borges Coelho realizado na Cadeia do Forte de Peniche em 1959 - Na exposição "Por teu livre Pensamento" - “Havia uma mesa, ela estava de um lado e eu do outro, separados. Estava o meu sogro, estavam os meus padrinhos de um lado - o O’Neill e a Maria Amélia Padez – e estavam os meus cunhados do outro, que eram os padrinhos dela. O meu sogro começou a passear na sala e a dizer que não havia direito e, por fim, passaram-na para o meu lado. Lá estivemos até ao fim da refeição que o meu sogro tinha levado.” (António Borges Coelho, in: Jornal Público, 16 de dezembro, 2018))