Friday 30 November 2018

Ainda que


Ainda que mal pergunte,
Ainda que mal respondas;
Ainda que mal te entenda,
Ainda que mal repitas;

Ainda que mal insista,
Ainda que mal desculpes;
Ainda que mal me exprima,
Ainda que mal me julgues;

Ainda que mal me mostre,
Ainda que mal me vejas;
Ainda que mal te encare,
Ainda que mal te furtes;

Ainda que mal te siga,
Ainda que mal te voltes;
Ainda que mal te ame,
Ainda que mal o saibas;

Ainda que mal te agarre,
Ainda que mal te mates;
Ainda assim te pergunto
E me queimando em teu seio
Me salvo e me dano: Amor.

Carlos Drummond de Andrade

Tuesday 27 November 2018

No silêncio da noite


 
Às vezes no silêncio da noite
Eu fico imaginando nós dois
Eu fico ali sonhando acordado, juntando
O antes, o agora e o depois

Por quê você me deixa tão solto?
Por quê você não cola em mim?
Tô me sentindo muito sozinho!

Não sou nem quero ser o seu dono
Mas é que um carinho às vezes cai bem
Eu tenho meus desejos e planos secretos
Só abro pra você mais ninguém

Por quê você me esquece e some?
E se eu me interessar por alguém?
E se ela de repente me ganha?

Quando a gente gosta é claro que a gente cuida
Fala que me ama só que é da boca para fora
Ou você me engana ou não está madura
Onde está você agora?

Caetano Veloso

Saturday 24 November 2018

Rifão Quotidiano


Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse:
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece

Mário-Henrique Leiria

Wednesday 21 November 2018

Eu não sei quem te perdeu


Quando veio,
Mostrou-me as mãos vazias,
As mãos como os meus dias,
Tão leves e banais.
E pediu-me
Que lhe levasse o medo,
Eu disse-lhe um segredo:
Não partas nunca mais.

E dançou,
Rodou no chão molhado,
Num beijo apertado
De barco contra o cais.

E uma asa voa
A cada beijo teu,
Esta noite
Sou dono do céu
E eu não sei quem te perdeu.

Abraçou-me
Como se abraça o tempo,
A vida num momento
Em gestos nunca iguais.
E parou,
Cantou contra o meu peito,
Num beijo imperfeito
Roubado nos umbrais.

E partiu,
Sem me dizer o nome,
Levando-me o perfume
De tantas noites mais.

Pedro Abrunhosa

Sunday 18 November 2018

Porta Aberta


Porta aberta a quem bater
Quem mo havia de dizer
Que isso seria verdade
Esse teu corpo sonhado
O teu corpo bem-amado
Aberto a toda a cidade

Braço dado com a aventura
Vais de rua a outra rua
Em busca doutros amores
És de todos, de ninguém,
És a imagem de quem
Vende um punhado de flores

E dizer que te quis tanto
Que foste todo o encanto
Todo o sol do meu jardim
Quem sabe como eu te quis
Sabe bem que em ti perdi
Mais de metade de mim.

António Calém

Thursday 15 November 2018

Partida


Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.

A minha alma nostálgica de além
Cheia de orgulho, ensombra-me entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar a bruma,
Correr no azul à busca da beleza.

Mário de Sá-Carneiro

Monday 12 November 2018

As facas


Quatro facas nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome
Quatro facas meu amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome

Este amor é de guerra de arma branca
amando ataco amando contratacas
este amor é de sangue que não estanca
quatro letras nos matam quatro facas

Amando estou de amor e desarmado
morro assaltando morro se me assaltas
e em cada assalto sou assassinado

Ninguém sabe porquê nem como foi
e as facas ferem mais quando me faltas
quatro letras nos matam quatro facas
quatro facas meu amor com que me matas.

Manuel Alegre

Friday 9 November 2018

Um homem na cidade


Agarro a madrugada
como se fosse uma criança
uma roseira entrelaçada
uma videira de esperança
tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem por força da vontade
de trabalhar nunca se cansa.

Vou pela rua
desta lua
que no meu Tejo acende o cio
vou por Lisboa maré nua
que desagua no Rossio.

Eu sou um homem na cidade
que manhã cedo acorda e canta
e por amar a liberdade
com a cidade se levanta.

Vou pela estrada
deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresça na vela da canoa.

Sou a gaivota
que derrota
todo o mau tempo no mar alto
eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.

E quando agarro a madrugada
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada
um malmequer azul na cor.

O malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém
o malmequer desta cidade
que me quer bem que me quer bem!

Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis que me quer bem!

José Carlos Ary dos Santos

Tuesday 6 November 2018

O mar fala de ti


Eu nasci nalgum lugar
Donde se avista o mar
Tecendo o horizonte
E ouvindo o mar gemer
Nasci como a água a correr
Da fonte

E eu vivi noutro lugar
Onde se escuta o mar
Batendo contra o cais
Mas vivi, não sei porquê
Como um barco à mercê
Dos temporais

Eu sei que o mar não me escolheu
Eu sei que o mar fala de ti
Mas ele sabe que fui eu
Que te levei ao mar quando te vi
Eu sei que o mar não me escolheu
Eu sei que o mar fala de ti
Mas ele sabe que fui eu
Quem dele se perdeu
Assim que te perdi

Vou morrer nalgum lugar
De onde possa avistar
A onda que me tente
A morrer livre e sem pressa
Como um rio que regressa
À nascente

Talvez ali seja o lugar
Onde eu possa afirmar
Que me fiz mais humano
Quando, por perder o pé,
Senti que a alma é
Um oceano.

Tiago Torres da Silva

Saturday 3 November 2018

Não disse nada amor


Não disse nada, amor, não disse nada
Foi o rio que falou com a minha voz
A dizer que era noite e é madrugada
A dizer que eras tu e somos nós

A dizer os mil rostos de Lisboa
Ao longo do teu rosto se te beijo
À luz de um pombo chamo Madragoa
E Bairro Alto ao mar se te desejo

Não disse nada, amor, juro, calei-me
Foi uma voz que ao longe se perdeu
Cuidei que era Lisboa e enganei-me
Pensei que éramos dois e sou só eu.

António Lobo Antunes

Thursday 1 November 2018

Sombra do desejo


Não vês a sombra do desejo
Furtiva em cada esquina do teu gesto
Não vês que tudo aquilo que em ti vejo
É tudo em que o amor é manifesto

Não vês que as mariposas no cabelo
E a rosa que em teus lábios se desnuda
Não vês que o teu olhar é o modelo
Das vinte madrugadas de Neruda

Não vês no teu sorriso fogo posto
Que lavra nos fados onde morei
Se não vês tudo isto no teu rosto
Perdoa meu amor porque sonhei.

João Monge