Wednesday 30 December 2020

O enforcado


No gesto suspensivo de um sobreiro,
o enforcado.

Badalo que ninguém ouve,
espantalho que ninguém vê,
suas botas recusam o chão que o rejeitou.

Dele sobra o cajado.

Alexandre O'Neill

Sunday 27 December 2020

VOLTA AO MUNDO


Júlio verme deu a
volta ao mundo em 80 mil dias
e agora que chegou prepara-se para assentar
o rastejantraseiro na presidência do que estiver
vacante de presidentes
é o costume há sempre um júlio ainda por cime verme
que vem ver-me ver-te ver-nos
que saíu longetempo do buraco
da mãe para um feio dia limpar
pública meticulosamente os óculos
pô-los no nariz entalar o arreganho dum sorriso
entre as duas faiscantes vidraças
e dizer doravante quem manda
sou eu pelo menos até ao próximo
verme que a providência já fez partir do seu buraco
e ao qual cederei
o poder dentro de 8o mil dias
quando a situação estiver normalizada
quando o povo encontrar praza a deus a cloaca
onde evacuar os seus filhos espúrios
causa de todo o mal

(e nós a vermos)

Alexandre O'Neill

Thursday 24 December 2020

SALDOS NO VIETNAME


Bombas de esferas:
cachos de bombas nascem de uma só bomba-mãe.
Cada bomba-filha ejecta, à altura do homem,
300 esferas que vão penetrar na carne aos ziguezagues.

Parente deste sanguinário jogo de berlinde
é o jogo das setas: um polegar de tamanho,
aletas que lhe permitem
entrar em parafuso carne dentro,
pontas de arpão,
o que torna a sua extracção muito difícil.

(Agora, as setas, quando já no corpo
- é um melhoramento! - fragmentam-se.)

Também há projécteis de plástico
não detectáveis pelos raios x;
e a bomba dita de nuvem explosiva.

Quando entra em cena o seu papel é este:
introduzir, primeiro, por escâncaras ou frinchas,
no teatro onde está a actuar,
uma expansiva nuvem de etileno.
Só depois explode: então, o fogo
pega-se ao etileno e... cai o pano!

E mais uma invenção: as minas-aranhiços,
que desenrolam patas de 6 metros
quando tocam no chão.

Ai de quem tropeçar numa das patas:
nem a mosca da alma terá tempo
de se evolar!

A TV veio também colaborar
com «directos» bem sofisticados:
realizador-bombista, o pessoal-piloto
a um só tempo fabrica e realiza a própria acção
e faz-vê, em grande plano, o seu desfecho.

Outros sinetes deixou o americano
no texto Vietname.
Um dos mais velhos: a incandescente lepra
à procura de pessoas que se chama napalm;
um dos mais novos: a bomba
devoradora de todo o oxigénio
250 metros em derredor
do ponto onde cair.

E onde o americano espera nunca estar.

Alexandre O'Neill

Monday 21 December 2020

AUTO-RETRATO


O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse...

Alexandre O'Neill

Friday 18 December 2020

NEM A SETE CHAVES


Nem a sete chaves
de mim separado,
de ti separado,
guardado dos outros,
em mim conseguiram,
no tempo das trevas,
nas trevas das celas,
as trevas murchar
os cravos solares
floridos em mim,
em mim ateados,
do meu pensamento,
da minha certeza,
da minha vontade.

Armindo Rodrigues

Tuesday 15 December 2020

NÃO QUERER NADA...


Não querer nada do que os outros querem,
não fazer nada do que os outros fazem,
não é afirmação de independência,
não é afirmação de liberdade,
mas um capricho apenas de burguês,
birrento, pretensioso, negligente,
mal-educado, ocioso e insensato.

Armindo Rodrigues

Saturday 12 December 2020

A longa espera


Até onde chegará a nossa
resistência?
Até onde
suportaremos nós,
homens de carne e osso,
a tortura inumana?
Até onde, pacientes,
metódicos,
secretos,
seremos capazes de levar
as nossas palavras
firmes e consoladoras?
Até onde ecoarão elas,
e em que ouvidos?
Até onde teremos de mascarar-nos,
de mentir,
de fingir?
Revolução
porque tardas?
Já escarva o chão,
pronto a investir,
o gigantesco toiro,
de baba espessa,
de olhos chispantes
e frementes músculos.
Já desabrocham cravos
no silêncio contido.
Já as ocultas labaredas
se preparam para desfraldar-se
resgatadoras,
ao vento solto.
Já as multidões,
com a sua ira,
quebram em estilhaços
o lavado cristal do dia atento.
Revolução,
porque tardas?
Desdobra, cotovia amável,
como um harmónio,
a tua alacridade,
sob o frio dos escombros.
Semeia, sol,
a luz e o calor fertilizadores
pelos campos lavrados.
Dai as mãos e anunciai,
trabalhadores de todo o mundo,
o grande recomeço.
Soldados,
quebrai com ímpeto
as vossas armas arrependidas
e pisai-as.
E tu, menino, proclama,
com a tua voz de alvorada,
para além dos teus desejos,
os teus sonhos realizados.


Armindo Rodrigues

Wednesday 9 December 2020

Porque revelam...


Porque revelam,
ainda por cima, tanto ódio
os possuidores da terra
pelos que pedem trabalho,
se estes querem, pelo contrário,
a terra para todos?

Armindo Rodrigues

Sunday 6 December 2020

HOMEM


Homem
que mate um homem não é homem.
Homem
que explore um homem não é homem.
Nem homem é
homem que imponha a um homem
nem falsa exaltação
nem cobardia.

Armindo Rodrigues

Thursday 3 December 2020

Porque havemos de o esquecer?


Por que havemos de o esquecer?
Foi a exemplo secreto dos espectaculares
autos-de-fé piedosos
da por igual maldita abjecção
católica-romana,
que a um punhado de cinza
e fumo pelo espaço,
nauseabundo e sufocante
se reduziram milhões de corpos dolorosos
nos fornos crematórios
dos campos de concentração
de recordação recente.

Armindo Rodrigues

Tuesday 1 December 2020

LIVRE


Livre de todas as servidões me sinto,
livre de todas as servidões me quero,
conquanto acusado
de servir constantemente a liberdade.
E servidor constante da liberdade o sou,
o que é, a par, a libertação possível,
o que é, a par, a libertação total.

Armindo Rodrigues