Friday 30 December 2016

BREL


Sinto crescer rápidas amendoeiras sobre o coração
e esta tristeza é mais súbita e profunda do que todas as outras
chegando com uma voz carregada de cansaços e de feridas
chamando por Jeff em mim que recuso a solidão
e procuro alguém com quem partilhar a ternura ou conversar um pouco;
essa voz que se me prendeu aos dedos e aos cabelos e me disse
por vezes as coisas mais insuportáveis
outras vezes dirigiu a minha angústia para o mar
e fez sentir-me frágil e perdido e quase deslumbrado
embebedando-me à mesa de um Bar do porto de Amesterdão
vagueando pelos canais em busca desse irmão marinheiro que jaz
de costas numa rua húmida
com a boca fria cheia de palavras inúteis e uma camisa de riscas
cor do céu
onde tu estarás agora desafiando o Coro dos Arcanjos
para que cante as tuas canções enquanto ris das próprias lágrimas

Num pequeno quarto abre-se do teu poster uma rua para o Mundo
e saberás através desse sorriso se acaso não te for possível assistir
que por aqui continuamos a construir fábricas e fábricas de Dinheiro
povoamos o Espaço com cabines envidraçadas à espera de encontrar
a Pedra Redonda do Poder
adoramos Napalm o deus das mil cabeças esfrangalhadas
enquanto no teu País Onde Nunca Chove se tocam ainda trémulas
mãos cobertas de Pérolas de Chuva
reinventando o amor e colocando no Prato Universal
a Chanson des Vieux Amants
num gesto clandestino e admirável de um Lento Suicídio Lírico
e eu como tu repito apalermado
Ne me quittes pas! Ne me quittes pas! Ne me quittes pas!

Joaquim Pessoa

Tuesday 27 December 2016

OLHO-TE DAQUI, MIGUEL...


Olho-te daqui, meu filho, vejo-te brincar com os
pequenos cubos que a tua imaginação rapidamente
transformou em comboio, e interrogo-me:
Que destino é o teu? Que futuro temos nós para te dar?
E haverá futuro com tantos mísseis apontados ao
coração?
Ao interrogar-me assim, imediatamente
me censuro: Como posso eu consentir à roda dos
teus três anos de idade a sombra espessa e
inquieta destas interrogações? Mentir? E como
poderia eu pactuar com a mentira, ocultar esta
inquietação, este medo de te ver crescer num
lugar tão precário como é a terra? Como deixar
de pensar que contigo crescem no mundo milhões
de crianças sem ternura, e que tantas outras morrem
simplesmente de fome? - enquanto os homens,
e quando digo homens tenho em mente os responsáveis
pelos nossos destinos, continuam numa desenfreada
corrida a armamentos cada vez mais dispendiosos e
mortíferos, a construir reactores e centrais que não
tardarão a pôr-nos o lixo nuclear à porta, comprometendo
assim toda a economia do planeta, o seu equilíbrio ecoló-
gico, a sobrevivência das espécies, multiplicando a
angústia, o terror de uma catástrofe atómica, fazendo-se
da vida a negação da própria vida, transformando-se o
homem, esse «prodígio» de que falavam os gregos,
no «monstro» de que fala Pascal.
E tudo isto para manter a mais bárbara, a mais vil,
a mais hipócrita das sociedades - uma sociedade
meramente mercantil, cujo objectivo único é o lucro,
sem qualquer finalidade moral.

Olho-te daqui, Miguel, vejo-te brincar com os
pequenos cubos, juntando-os e empurrando-os,
comboio seguindo viagem para um qualquer lugar
onde se não chegue dilacerado ou amputado
da alegria de o homem se sentir nascer para
um amor novo, uma imaginação nova, distante já,
e vamos dizê-lo com tremendas palavras de
Nietzsche, desse asilo de alienados que
durante tantos anos foi a terra.

Eugénio de Andrade

Saturday 24 December 2016

TEMPO DE RUSGAS


IEra tempo de rusgas.
Havia ordens terminantes
mas era preciso não andar desarmado.

A revista nas estradas era intensa.

Bem armado
passei sem licença de porte de arma
minha mão comprimindo no bolso
as coronhas de três poemas.

IIOs que não são poetas
ignoram o que é estarmos em reclusão
armados de conluios até aos dentes.

E na sua imprevidência
não sabem que um poema detido
mesmo de cor na cabeça
também é uma forma
dialéctica
de lhes armar o cerco.

IIISou daquela raça
dos revolucionários mais perfeitos.
A raça dos homens ao natural
que amam o amor sem as mil
fictícias boas maneiras
burguesas.

Raça
dos revolucionários mais puros
no amor à beleza feminina
na adoração pelas crianças
no respeito pela velhice
no ódio à mendicidade.

Raça de revolucionários cheios de defeitos
e apenas uma pequeníssima qualidade:
Mesmo inseridos em molduras de alvenaria
com uma força de segurança no exterior
não compramos o Amor
e não nos vendemos!


José Craveirinha
(In Cela 1)

Wednesday 21 December 2016

CABO DA BOA ESPERANÇA


Na feira da África do Sul
os racistas brancos exibem
um casal de negros

Obrigam-nos a trepar a uma árvore
e aos uivos
a arrastarem-se de gatas
e a pastar

A mim só me resta escolher
Diz o meu amigo poeta

Ou arrancar a pele branca que tenho
e dependurá-la num prego
Ou

Vasko Popa
(Tradução de Eugénio de Andrade)

Sunday 18 December 2016

NOS RAMOS DOS SALGUEIROS


E como poderíamos nós cantar
com o pé estrangeiro sobre o peito,
abandonados os mortos pelas praças
na dura erva gelada,
o balido impotente das crianças,
o uivo negro da mãe que tropeçava contra o filho
crucificado no poste telegráfico?

Nos ramos dos salgueiros, como um voto,
também as nossas cítaras pendiam
levemente oscilando ao triste vento.


Salvatore Quasimodo

Thursday 15 December 2016

O MESMO CORAÇÃO E A MESMA CABEÇA


Não é para me gabar,
mas atravessei de um jacto, como uma bala,
os meus dez anos de prisão.

E se deixarmos de lado as dores no fígado,
o coração está igual,
a cabeça é a mesma de antes.

Nazim Hikmet

Monday 12 December 2016

PROFECIA


Quando o palhaço, a quem os barões do carvão
deixam fazer de Chefe na nossa terra, tiver feito
de Chefe tempo bastante,
vai empreender no Continente todo
o papel de Chefe.

Quantos mais canhões tiver
mais ameaças vai soltar.
vai julgar: eles receiam a guerra, mas
um dia há-de ele ter a sua guerra.

Há-de berrar: a velha França
está cansada e quer sossego.
E virão contra ele esquadras de tanques da França.
Há-de berrar: para o povo inglês de merceeiros
a guerra é cara de mais.
E virá contra ele o ouro do Transvaal
e de ambas as Índias.
Há-de berrar: a América
fica muito longe, não tem exército.
E virá contra ele muito próximo
o exército da vasta América que constroi cidades
que têm cem andares.
Há-de berrar: só a União Soviética
espera por nós.
E hão-de vir contra ele os aviões
dos povos soviéticos, quatro vezes consecutivas.
Há-de berrar: os nossos amigos italianos
hão-de vir ajudar-nos.
E não virá ninguém.

E a Alemanha, que na última guerra
ganhou as batalhas todas menos a última,
nesta guerra, tirante a primeira,
há-de perdê-las todas.


Brecht

Friday 9 December 2016

CELEBRAÇÕES


Celebrou Dona Ema seu aniversário natalício.
Santos & Santos, banqueiros, o trigésimo quinto ano do ofício.
Encerrou-se o emprego para celebrar a data do Poder.
Carlos e Branca celebraram nó doirado
ainda firme, já um tanto empoeirado.
Clandestinamente, estralejou o foguete
a celebrar o dia de que se querem esquecer:
(a História tem folhas asas
que às vezes não podem poisar.)

Num âmbito vigente de agasalho
celebrou-se o Contrato Colectivo do Trabalho:
quarenta e cinco páginas brancas,
oito capítulos novos,
noventa cláusulas gordas
- e uns salários negros, velhos, magros...

Francisco Viana

Tuesday 6 December 2016

A NOSSA HUMANIDADE


Quando não deixarmos tudo nas mãos dos políticos
e os despojarmos de todas as auréolas míticas,
quando afirmarmos, convictos, que somos todos iguais
e ninguém nos diga que o axioma é falso,
quando resolvermos os problemas sentados a uma mesa
e, recusando a violência, aceitarmos o diálogo,
quando nos unirmos todos, se é um doido quem manda,
e o internarmos, decididos, em menos de uma semana,
quando as pessoas souberem de facto amar o seu próximo,
seja negro ou chinês, esquimó ou argelino,

então teremos alcançado o privilégio
da plena humanidade e verdadeira democracia.


Francesc Vallverdú

Saturday 3 December 2016

CORAGEM


Paris tem frio Paris tem fome
Paris já não come castanhas na rua
Paris anda vestido de velha
Paris dorme de pé sem ar no metropolitano
Maior ainda a miséria imposta aos pobres
E a sabedoria e a loucura
de Paris infeliz
é o ar puro é o fogo
é a beleza é a bondade
dos seus trabalhadores famintos
Não peças socorro Paris
estás vivo de uma vida sem igual
e atrás da nudez
da tua palidez da tua magreza
tudo o que é humano se revela nos teus olhos
Paris minha bela cidade
fina como uma agulha forte como uma espada
ingénua e sábia
tu não suportas a injustiça
para ti a única desordem
Vais libertar-te Paris
Paris bruxoleante como uma estrela
nossa esperança sobrevivente
vais libertar-te da fadiga e da lama
Irmãos tenhamos coragem
nós que não usamos capacetes
nem botas nem luvas nem somos bem educados
Um raio se acende em nossas veias
os melhores de nós morreram por nós
e eis que o sangue dos que morreram nos volta
ao coração
e de novo é a manhã uma manhã de Paris
o extremo da libertação
o espaço da primavera que nasce
A força idiota está na mó de baixo
estes escravos nossos inimigos
se compreenderem
se forem capazes de compreender
vão levantar-se.

Paul Éluard
(Tradução de António Ramos Rosa)



Thursday 1 December 2016

De ramo em ramo


O branco do linho ou dos muros
do sul,
o carmim matutino,

o claro azul mediterrâneo, o limão
húmido ainda,
o laranja, o verde das oliveiras

prateado, o amarelo exausto
de glória, o violeta adormecido
da flor que lhe dá nome,

o ocre do trigo ceifado
o negro quase
materno da terra lavrada,

é nos olhos que são ave
de ramo em ramo concertada.

Eugénio de Andrade