Friday 30 December 2022

HOMEM, ABRE OS OLHOS E VERÁS


Homem,
abre os olhos e verás
em cada outro homem um irmão.

Homem,
as paixões que te consomem
não são boas nem são más.
São a tua condição.

A paz,
porém, só a terás,
quando o pão que os outros comem,
homem,
for igual ao teu pão.

Armindo Rodrigues

Tuesday 27 December 2022

O MONSTRO JULGADO


Desenterremos o monstro
e, mesmo morto, o julguemos.
Mais nojento o foi em vida.
Mais nojento o foi em vida,
com as suas falas mansas,
os seus melífluos gestos,
o seu perfil de navalha,
o seu sonho imperial.
Julguemo-lo pela vergonha
com que nos enlameou.
Julguemo-lo pelos ladrões
que à sua sombra roubaram.
Pois roubaram, prestem contas.
Pois roubaram prestem contas.
Julguemo-lo pelos bandidos
que mataram a seu soldo.
Pois mataram, não mais tenham
ocasião de matar.
Erguei-vos, assassinados,
para o frio julgamento,
em que é forçoso que soe
a vossa condenação.
Julguemo-lo pelos assaltos
às nossas casas quietas,
às horas do nosso sono
merecido e sem remorso.
Julguemo-lo pela traição
que a nós próprios nos impunha
de nos pautarmos por ele,
sob pena de punição.
Julguemo-lo pela suspeita
a que nos habituou
de em tudo espreitarem perigos,
de todos serem espiões.
Julguemo-lo pela incerteza
de cada dia futuro,
no curso dos dias tristes
de miséria e cobardia,
apenas iluminados
pela teimosia heróica
dos militantes da esperança,
ousados e clandestinos.
Julguemo-lo pelas torturas
dos seus carrascos cruéis,
os seus juízes submissos,
os seus campos de concentração.
Julguemo-lo pela maldade.
Julguemo-lo pela frieza.
Julguemo-lo pela mentira,
sua única paixão.
Julguemo-lo pela fé falsa
de antigo seminarista,
com que aos fiéis iludidos
iludia a boa fé.
Julguemo-lo pela herança
de abandono e esgotamento
em que nos deixou os campos,
em que nos deixou as fábricas,
em que nos deixou a pródiga
e vasta leira do mar,
a que nos levou as escolas,
cuja cultura tolheu,
vazias de camponeses,
operários, pescadores,
professores e alunos,
que obrigou a emigrar.
Julguemo-lo pelo cuidado
de guarda-livros mesquinho,
com que serviu os interesses
só da grande burguesia,
a nação espezinhando
com os seus pés descomunais.
Julguemo-lo pela perfídia.
Julguemo-lo pela vaidade.
Julguemo-lo pelos palhaços
que escolheu para ministros,
que nomeou deputados,
que de pobres tornou ricos,
e diante dele tremiam,
e lhe lambiam o cu.
Para sempre o apaguemos
de nosso compatriota,
e até de homem simplesmente,
visto que nunca homem foi.

Armindo Rodrigues

Saturday 24 December 2022

«NINGUÉM SE MEXA! MÃOS AO AR!»



«Ninguém se mexa! Mãos ao ar!», disse o histérico
e frívolo homenzinho com mais medo
da arma que empunhava que de nós.
«Mãos ao ar!», repetiu para convencer-se.

Mas ninguém se mexeu, como ele queria...
Deu-lhe então a maldade. Quase à toa,
escaqueirou o espelho biselado
que tinha as Boas Festas da gerência

escritas a sabão. Todos baixámos,
medrosos, a cabeça. Se era um louco,
melhor deixá-lo. (O barman escondera-se
por detrás do balcão). Ali estivemos

um ror de medo, até que o rabioso
virou a arma à boca e disparou.

Alexandre O'Neill

Wednesday 21 December 2022

TOMA TOMA TOMA


Ainda prefiro os bonecos de cachaporra,
contundentes, contundidos, esmocados,
com vozes de cana rachada e um toma toma toma
de quem não usa a moca para coçar os piolhos
mas para rachar as cabeças.

O padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, a velha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista,
tramavam para nós a estafada estória
da nossa própria vida.

Mundo de pasta e de trapo
que armava barraca em qualquer canto
e sem contemplações pela moral de classe
nem as subtilezas de quem fica ileso
desancava os maus e beijocava os bons.

Ainda prefiro os bonecos de cachaporra.

Ainda hoje esbracejo e me esganiço como esses
matraquilhos da comédia humana.

Alexandre O'Neill

Sunday 18 December 2022

A CAMA QUENTE


Homenagem aos mineiros do Chile
que dormem, singelo,
pelo sistema da «cama quente»


Na mina trabalha-se por turnos.
Quando se volta, nem se tiram os coturnos.

Bebido o café negro e trincado o casqueiro,
joga-se o corpo ao sono, mas primeiro,

enxota-se o camarada da cama ainda quente,
que não há camas, no Chile, pra toda a gente.

Do calor que sobrou o nosso se acrescenta
pra dar calor ao próximo que entra.

Vós, que dormis em camas, como reis,
tantas horas por dia, não sabeis

como é bom dormir ao calor de um irmão
que saiu ao nitrato ou ao carvão

e despertar ao abanão (é o contrato!)
de um que chega do carvão ou do nitrato!

É a este sistema, minha gente,
que se chama no Chile «a cama quente»...

Alexandre O'Neill

Thursday 15 December 2022

AMIGOS PENSADOS: BELARMINO


Tiveste jeito, como qualquer de nós,
e foste campeão, como qualquer de nós.

Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?
Também na poesia não se janta nada,
mas nem por isso somos infelizes.

Campeóes com jeito
é nossa vocação, nosso trejeito.

Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, não se levante
- e a gente levanta-se, pois pudera, sempre.

Mas do miudame levámos cada soco!
Achas que foi pouco?

Belarmino:
quando ao tapete nos levar
a mofina,
tu ficarás sem murro,
eu ficarei sem rima,
pugilista e poeta, campeões sem jeito
a amadores da má vida.

Alexandre O'Neill

Monday 12 December 2022

A VIDA DE FAMÍLIA

A vida de família tornou-se um bem difícil
com as contas a pagar os filhos a fazer
ou a evitar a ranhoca a limpar
a vida de família não tem razão de ser
não tem ração de querer

a vida de família jangada da medusa
é o tablado da antropofagia

mas ficam os retratos cristo virgem maria
e os sobreviventes, que vão chupando os dentes

Alexandre O'Neill

Friday 9 December 2022

A BICICLETA


O meu marido saiu de casa no dia
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior.

Alexandre O'Neill

Tuesday 6 December 2022

TAÇA DO MUNDO DE FUTEBOL

(Argentina, 1978)

O estádio River Plate situa-se a 700 metros de
um edifício pertencente à Marinha argentina
onde se praticavam as piores torturas.


Em Buenos Aires, no River Plate,
a seis campos de futebol (medidas máximas)
do Centro onde, entre outros primores de jogo,
se chutavam testículos, mamas e cabeças,
a Taça do Mundo ferverá nas mãos de quem a ganhar,
de quem a empunhar, de quem por ela beber
A MERDA DE TER LÁ IDO.

Alexandre O'Neill

Saturday 3 December 2022

O CICLO DO ÁLCOOL

 

Quando seu Silva Costa
chegou na ilha
trouxe uma garrafa de aguardente
para o primeiro comércio.

A terra era tão vasta
havia tanto calor
que a água
parecia não ter potência
para acalmar a sede da sua garganta.

Seu Silva Costa
bebeu metade...

E a sua garganta ganhou palavra
para o primeiro comércio...


A lua batendo nos palmares
tem carícias de sonho
nos olhos de Sam Màrinha.
Silêncio!
O mar batendo nas rochas
é o eco da ilha.
Silêncio!
Lá no longe
soluçam as cubatas
batidas dum luar sem sonho.
Silêncio!
No canto da rua
os brancos estão fazendo negócios
a golpes de champagne!


Mãe-Negra contou:
«eu disse:
filhinho
beba isso coisa não...
Filhinho riu tanto tanto!...»

Nhá Rita calou-se.
Só os olhos e as rugas
estremeceram um sorriso longínquo.

- E depois Mãe-Negra?

«Oh!
filhinho
entrou no vinhateiro
vinhateiro entrou nele...»

Os olhos de nhá Rita
estão avermelhados de tristeza.

«Hum!
filhinho
ficou esquecendo sua mãe!...»


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo») 

Thursday 1 December 2022

ILHA DE NOME SANTO

 
Terra!
das plantações de cacau de copra de café de coco a perderem-se de vista
que vão morrer numa quebra ritmada
num mar azul como o céu mais gostoso de todo o mundo!

Onde o sol bem amarelo bem redondo incendeia as costas
dos homens das mulheres agitando-lhes os nervos
num cadenciar mágico mas humano: capinar sonhar plantar!

Onde as mulheres que têm os braços mais grossos e mais tortos que ocá
são negras como o café que colhem depois de torrado
trabalham ao lado de seu homem numa ajuda toda de músculos!

Onde os moleques vêem seus pais no ritmo diário
deixando correr gostosamente pelo queixo quente
o sabor e a seiva húmida do sàfu maduro!

Onde nas noites estreladas
e uma lua redonda como um fruto
os negros as sangués os moleques os caçô
- mesmo o branco e a sua mulata -
vêm no socopé de uma sinhá
ouvir um malandro tocando no violão
cantando ao violão!

E o som fica ecoando pelo mar...

Onde apesar da pólvora que o branco trouxe num navio escuro
onde apesar da espada e duma bandeira multicor
dizerem poder dizerem força dizerem império branco
é terra de homens cantando vida que os brancos jamais souberam
é terra do sàfu do socopé da mulata
- ui! fetiche di branco! -
é terra do negro leal e forte e valente que nenhum outro!


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo»)