Friday 30 August 2013

UMA GOTA NO CAUDAL


Sozinhos, que somos nós?
Gota de água diminuta
sumida da terra enxuta.
Nem a sede de uma boca
pode assim ser saciada,
porque sós não somos nada,
nem fonte de nenhum rio,
nem onda do mar ou espuma,
maré de coisa nenhuma.

Gota a gota a terra bebe,
rompe o ventre e verte um fio,
cresce a fonte e faz-se rio.
Quantas rotas tem o mar?
Quantas vagas a maré?
Quem as conta perde o pé.
Gota a gota. Cada é pouca.
Mas se a vida é una e vária
cada gota é necessária.

Mesmo sós sejamos sempre
uma gota no caudal,
diminuta, fraternal.

Carlos Aboim Inglês

Tuesday 27 August 2013

O CAMPONÊS TRATA DAS LEIRAS


1
O camponês trata das leiras
mantém em forma as vacas, paga impostos
faz filhos pra poupar criados e
está dependente do preço do leite.
Os da cidade falam do amor do camponês ao torrão
da sadia vida campesina e
que o camponês é o fundamento da Nação.

2
Os da cidade falam do amor do camponês ao torrão
da sadia vida campesina e
que o camponês é o fundamento da Nação.
O camponês trata das leiras
mantém as vacas em forma, paga impostos
faz filhos pra poupar criados e
está dependente do preço do leite.


Brecht

Saturday 24 August 2013

INVOCO


Claridade, não te afastes
dos meus olhos, não humilhes
a razão que me alenta
a prosseguir. Escuta
por trás das minhas palavras
o grito dos homens
que não podem falar.

Pelos seus esforços,
pela luta que sustentam
contra o muro de sombra,
eu te peço: persiste
no teu fulgor, ilumina
a minha vida, permanece
comigo, claridade.

José Agustin Goytisolo

Wednesday 21 August 2013

CRIAÇÃO



Criar não é sonhar, mas, ao invés,
atento construir o que se sonha.
Fugir alguém ao sonho é que é vergonha,
pois sonhar é fugir à pequenez.

Armindo Rodrigues

Sunday 18 August 2013

O MENINO NEGRO NÃO ENTROU NA RODA


O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas - as crianças brancas
que brincavam todas numa roda viva
de canções festivas, gargalhadas francas...

O menino negro não entrou na roda.

E chegou o vento junto das crianças
- e bailou com elas e cantou com elas
as canções e danças das suaves brisas,
as canções e danças das brutais procelas.

E o menino negro não entrou na roda.

Pássaros, em bando, voaram chilreando
sobre as cabecinhas lindas dos meninos
e pousaram todos em redor. Por fim,
bailaram seus voos, cantando seus hinos...

E o menino negro não entrou na roda.

«Venha cá, pretinho, venha cá brincar»
- disse um dos meninos com seu ar feliz.
A mamã, zelosa, logo fez reparo;
e o menino branco já não quis, não quis...

E o menino negro não entrou na roda.

O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas. Desolado, absorto,
ficou só, parado com olhar de cego,
ficou só, calado com voz de morto.


Geraldo Bessa Victor

Thursday 15 August 2013

Anos de seca, menos nos olhos dos pobres


Vem, sol,
doirar cinicamente
os cabelos de hoje
destas crianças esfarrapadas
que se atrevem a ser loiras
com olhos de trono azul.

Vem, sol,
tu que secas os rios
e os segredos dos poços
- e não deixas na terra
um charco para as estrelas
tremerem de luz despida...

Vem, sol,
secar estas lágrimas
dos olhos dos pobres.

Torna-os duros, implacáveis e frios
como canos de pistolas
nas manhãs coléricas de lobos.

José Gomes Ferreira

Monday 12 August 2013

A PORTUGAL


Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, de vileza,
de mesquinhez, de fátua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol caiada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:

eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço: mas seres minha, não.

Jorge de Sena

Friday 9 August 2013

NÃO VALE A PENA PISAR



O capim não foi plantado
nem tratado,
e cresceu. É força
tudo força
que vem da força da terra.
Mas o capim está a arder
e a força que vem da terra
com a pujança da queimada
parece desaparecer.

Mas não! Basta a primeira chuvada
para o capim reviver.

Manuel Rui

Tuesday 6 August 2013

TRÊS QUADRAS


Os que vivem na grandeza
dizem, vendo alguém subir:
- Há que manter a pobreza,
p'rá grandeza não cair.

A ninguém faltava o pão,
se este dever se cumprisse:
ganharmos em relação
com o que se produzisse.

Quem trabalha e mata a fome,
não come o pão de ninguém,
mas quem não trabalha e come,
come sempre o pão de alguém.

António Aleixo

Saturday 3 August 2013

ESTE CAOS ORGANIZADO...


Este caos organizado que é o capitalismo,
esta triunfante infâmia,
este nojo dos nojos,
com a sua opulência agressiva
e os seus lacaios sem imaginação,
quando virá o grande vendaval que o varra
para dar a todos conforme as suas necessidades,
e não a miséria repartida
pelas mãos parasitas e ávidas dos ricos?
Quando virá essa ofuscante claridade,
essa lúcida paz amassada de suor,
e de contentamentos para além
do agudo contentamento da alvorada?

Armindo Rodrigues

Thursday 1 August 2013

MAR DE PENICHE


1
Todos os dias
acordam
violadas
estas praias
que dizemos
virgens.

2
A chuva
esse suor
do mar
já não desfaz
a solidão dos homens
ou o piar dos corvos.

3
Mar de Peniche
onde os peixes se atiram
contra os barcos
e as grutas dos rochedos
nada acoitam.

4
As traineiras
juntaram-se a dormir.
Mas o mar não esquece
e grita
contra a fortaleza.

5
O mar
sorveu
todo este dia
exausto.
E o que fica
da praia
são estas pedras
lassas
transidas
pelo sono.

6
O que fica
das pedras
é este mar
de sono
que os homens
já submersos
sorvem
a curtos haustos.

7
O que fica
da noite
são os presos
exaustos
que as pedras
dissimulam
e o mar
absorveu.


Armando Silva Carvalho