Saturday 30 September 2017

Casquinha e Caravela

27 DE SETEMBRO DE 1979

O primeiro governo constitucional, chefiado por Mário Soares, deu início, em 1976, a uma brutal ofensiva contra as conquistas da Revolução, tendo como objectivo destruir tudo o que de mais avançado e progressista tinha sido alcançado - ofensiva que foi prosseguida por todos os governos que lhe sucederam ao longo de 32 anos.

A Reforma Agrária foi o primeiro alvo dos inimigos de Abril.
Contra ela foi lançada uma operação cheia de ódio de classe que se desenvolveu através de ilegalidades, de roubos de terras e de gado, de sabotagens e de violenta repressão policial.
A resistência dos trabalhadores foi heróica.

No dia 27 de Setembro de 1979, uma força da GNR - comandada pelos capitães Martins e Faria e pelo sargento Maximino, todos conhecidos pelo seu ódio à Reforma Agrária - acompanhada por um grupo de agrários e por funcionários do Ministério da Agricultura, procedeu a um roubo de um rebanho de vacas na UCP Bento Gonçalves, no concelho de Montemor-o-Novo.
Os trabalhadores resistiram.
A GNR - agindo, como no tempo do fascismo, a mando dos agrários... - disparou, ferindo vários trabalhadores e assassinando dois:
ANTÓNIO CASQUINHA, de 17 anos e JOSÉ CARAVELA, de 54 anos - ambos militantes comunistas.

O Governo - na altura chefiado por Maria de Lurdes Pintasilgo - mandou instaurar um inquérito.
A principal conclusão desse inquérito também fazia lembrar as conclusões tiradas pelos ministérios do interior no tempo do fascismo quando as forças repressivas matavam:
a GNR disparou, sim, mas para o ar...

O Cravo de Abril assinala, hoje, o assassinato dos dois camaradas com um poema escrito no dia do seu funeral - que se realizou para o cemitério de Escoural e ao qual acorreram dezenas de milhares de pessoas.


(Em memória de José Caravela e António Maria Casquinha, mortos em Montemor-o-Novo pela Guarda)

1
Aqui
nesta planície de sol suado
dois homens desafiaram a morte, cara a cara,
em defesa do seu gado
de cornos e tetas.

Aqui
onde agora vejo crescer uma seara
de espigas pretas.

2
Quando os dois camponeses desceram às covas,
ante os punhos cerrados de todos nós,
chorei!

Sim, chorei
sentindo nos olhos a voz
do que há de mais profundo
nas raízes dos homens e das flores
a correrem-me em lágrimas na face.

Chorei pelos mortos e pelos matadores
- almas de frio fundo.

Digam-me lá:
para que serviria ser poeta
se não chorasse
publicamente
diante do mundo?

José Gomes Ferreira

Wednesday 27 September 2017

O VOO DE SUA ALTEZA

O rei vai partir.
Seu avião a jacto de platina
ronca em estereofónico
e de suas turbinas
jorra uma disenteria de rubis.

Mas um bode pára na pista
e sua barbicha que não é a jacto
desafia o avião do rei.

É um bode subversivo
- gritam milhares de pessoas
simetricamente quadradas.
E o bode é enquadrado
na lei que protege os soberanos
e é fuzilado por ter tido a ousadia
de roubar ao rei um minuto de voo.

Mais um bode fuzilado
por crime de lesa-majestade
- pensam os reis.

Mais um rei que voa
por crime de lesa-bode
- respondem os bodes.

(Questão de pontos de vista)

A verdade é que ser bode
não oferece garantia nenhuma.

Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Sunday 24 September 2017

SURDINA DE NATAL PARA OS MEUS NETOS


Ó David Ó Inês
vamos ver o menino
inda mais pequenino que vocês

Vamos vê-lo tapado
sob o céu do futuro
com a sombra de um muro
a seu lado

Vamos vê-lo nós três
novamente a nascer
vamos ver se vai ser
desta vez

David Mourão Ferreira

Thursday 21 September 2017

OS AMIGOS COERENTES

Minha geração
tem os gestos rudes
do semeador
e as mãos calejadas
de quem dá aos sonhos
contornos precisos
dos dois pés na terra,
da quilha que singra,
do arado que rasga,
do rasgo que cria.

Fomos perseguidos
porque a nossa falta
era a lucidez
e a coragem de
apontar os crimes
sem lhes dar perdão,
porque perdoar
é ser conivente
e essa conivência
é igual ao crime.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Monday 18 September 2017

ESTRADA NOVA


Nós estamos jogando picaretas de aço,
ó montanha negra nós te venceremos!
Vimos em fúria dos confins do mundo,
vimos em fúria dos confins do mundo,
nós estamos jogando picaretas de aço!

É uma estrada nossa, é uma estrada nova
ó companheiros do sangue vermelho!
Nós estamos jogando picaretas de aço,
nós estamos jogando picaretas de aço,
é uma estrada nossa, é uma estrada nova!

Vimos em fúria dos confins do mundo,
picaretas vibrai, abatei a montanha!
Nós estamos rasgando uma estrada nova,
vimos em fúria dos confins do mundo.

Papiniano Carlos

Friday 15 September 2017

SONETO AO SENHOR CORREIO

Senhor Correio, Senhor Dom Correio,
por favor, por favor, Vossa Excelência
não abra as minhas cartas porque é feio
e tudo o que for feio falta à decência.

Eu leio as suas cartas? Não, não leio.
Se suas cartas lesse era demência.
Senhor Correio, veja se há um meio
de ter um pouco menos de inclemência.

Porque enfim o que escrevo a mim o devo,
Senhor Correio, é meu tudo o que escrevo,
é a tinta expressando as minhas falas.

É qualquer coisa mais que intimidade.
Senhor Correio, sabe que é verdade,
violar minhas cartas é matá-las.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Tuesday 12 September 2017

ANÚNCIO


Eu que cheguei em silêncio
falarei do Homem,
falarei dos homens sobre a terra,
do Rio dos homens sobre a terra.
E eu sei que não há dois homens iguais,
por isso eu os conheço todos um por um
e os chamo pelos seus nomes,
e no entanto eu sei que são o mesmo Homem,
espelho de mil faces.
Há alguma coisa mais admirável?
Eu que falo da multidão insolúvel como de um Rio,
falo do Homem cheio
de personalidade.
Eu falo do Homem jamais cativo
mesmo quando o fecharam com grades e paredes
e mordaças,
do Homem que nasceu livre e será livre
apesar de tudo!
e estou vendo a marcha invencível dos homens
e glorificando-a.


Papiniano Carlos

Saturday 9 September 2017

ACUSO


Vocês todos,
malditos
que nos roubaram a vida,
são, liricamente,
pesseguinhos

- filhos da fruta.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Wednesday 6 September 2017

PRIMEIRO DIA


Depois será como se nascêssemos de novo,
trouxéssemos para o dia
a nossa mais funda e mais bela face.

Dia de chuva solar em nossos cabelos ilimitados.
Ergueremos os ombros cansados.
E nos reveremos nas águas
do próprio rio que somos, inextinguível.

Pousarão as aves marinhas e as terrestres
nos nossos ombros escorrendo sol e limos,
e as rãs adormecerão nos paúis
onde nos diluímos sofregamente raízes.
E os peixes e os navios navegarão em nosso sangue,
na maior das navegações
de todos os tempos.

Erecto estará o nosso braço, e formidável.
Sob as nossas mãos
crescerão as formas anunciadas.
E as palavras nos brotarão dos lábios,
e serão searas
e aves do tamanho do mundo.


Papiniano Carlos

Sunday 3 September 2017

A CORJA

A vida é bonita,
mas alguém sujou
seus rios que riem,
roubou os seus pães
alvos e morenos,
queimou os seus livros
que eram livros livres,
cortou suas flores
que tinham sol dentro,
fechou os seus homens
com sede de fora,
degradou as grades
imundas o mundo.

A vida é bonita
fizeram-na feia,
quem for o culpado
que levante o dedo.

- E a corja impassível
de braços cruzados,
falando da lua,
fingindo que não.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Friday 1 September 2017

HERANÇA


Que rosa vermelha entre loureiros
há ressuscitado?
A pé, companheiros,
que os mortos estão de pé a nosso lado.

Roxos de fome, angústia, sede e morte
na solidão:
nada nos importe
senão a aurora que levamos no coração.

Que nos arranquem língua, veias, olhos, nervos,
a pele que reste.
Não é de servos
o relâmpago espantoso que nos veste!

Papiniano Carlos