Tuesday 30 April 2013

OS MEDOS


É a medo que escrevo. A medo penso,
a medo sofro e empreendo e calo.
A medo peso os termos quando falo.
A medo me renego, me convenço.

A medo amo. A medo me pertenço.
A medo repouso no intervalo
de outros medos. A medo é que resvalo
o corpo escrutador, inquieto, tenso.

A medo durmo. A medo acordo. A medo
invento. A medo passo, a medo fico.
A medo meço o pobre, meço o rico.

A medo guardo confissão, segredo,
dúvida, fé. A medo. A medo tudo.
Que já me querem cego, surdo, mudo.

José Cutileiro
(In Versos da Mão Esquerda)

Saturday 27 April 2013

MASSA


No final da batalha,
e morto o combatente,
aproximou-se dele um homem
e disse-lhe: «Não morras, amo-te tanto!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Aproximaram-se dele dois homens e repetiram-lhe:
«Não nos deixes! Coragem! Volta à vida!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Acudiram-lhe vinte, cem, mil, quinhentos mil,
clamando: «Tanto amor, e não poder nada contra a morte!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Milhões de homens o rodearam,
num pedido comum: «Não nos deixes, irmão!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Então, todos os homens que há na terra
o rodearam; viu-os o cadáver triste, emocionado;
soergueu-se lentamente,
abraçou o primeiro homem.
E começou a andar...

César Vallejo

Wednesday 24 April 2013

Um momento de filosofia barata



Para além do «ser ou não ser» dos problemas ocos,
o que importa é isto:
- Penso nos outros.
Logo existo.


José Gomes Ferreira

Sunday 21 April 2013

DA «CARTILHA DE GUERRA ALEMû



A guerra que aí vem
não é a primeira. Antes dela
houve outras guerras.
Quando a última acabou
houve vencedores e vencidos.
Entre os vencidos, o povo baixo
passou fome. Entre os vencedores
passou fome também o povo baixo.

Na parede estava escrito a giz:
«Queremos a guerra».
O que escreveu isto já caíu morto.

As raparigas
à sombra das árvores da aldeia
escolhem os namorados.
A morte
escolhe também.

É noite.
Os casais vão deitar-se nas camas.
As mulheres novas
vão parir filhos órfãos.

Brecht

Thursday 18 April 2013

GRITO NEGRO



Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.

Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder, sim
e queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão
até não ser mais a tua mina, patrão.

Eu sou carvão
Tenho que arder
queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu serei o teu carvão, patrão!

José Craveirinha

Monday 15 April 2013

AMOR A DOER


Beijos.
Carícias.
Este infinito sentimento
no recíproco amor homem e mulher
para jamais nos esquecermos de vez
do amor dos amores mais amados
o amor chamado pátria!

Mordaças
Palmatoadas
Calabouços
Anilhas de ferro nos tornozelos.

E no infinito amor a doer
também o infantil beijo dos filhos
a magoada ternura incansável da esposa
um cobertor grande e um pequeno para os quatro
e numa tábua despregada no chão
escondido o jornal a falar do Fidel.

E nem que nos caia em cima o argumento
de cigarro na boca e lúgubre revólver em cima da mesa
não mostraremos o papel guardado na tábua do soalho
ali a fazer do amor escondido
o futuro de um povo.

(1958)

José Craveirinha
(In Cela 1)

Friday 12 April 2013

NÃO SEI SE É UMA MEDALHA


Alguma vez
um cigarro aceso sentirá o delicioso
sabor de te fumar de repente
o ombro direito?

Pois
sobre isso eu juro
que tudo é pura mentira.

Juro
que nunca um cigarro LM
apagou sua idiossincrásica boca de lume
no calor escuro da minha omoplata.

E também juro
que nunca plagiei um cinzeiro moçambicano
sentado a cheirar o bafo da própria cinza
com o subchefe de brigada Acácio
um deus fantasmagórico envolto
na especial nuvem de tabaco
mistura de Virgínia com pele.

E também confesso
que se esta invenção tivesse acontecido
muito provavelmente seria em mil novecentos
e sessenta e seis à tarde numa certa Vila Algarve
enquanto pela duodécima vez
eu abanava a cabeça
e dizia: - Não sei!

Por acaso
a mancha desta mentira está.
Não sei se é uma medalha.
Mas não sai mais.

(1967)

José Craveirinha
(In Cela 1)

Tuesday 9 April 2013

OS DOIS MENINOS MAUS ESTUDANTES


- Zeca-e-Stélio!
- Mamã!
- São horas da escola.
- !!!

- Vocês não ouvem? São horas.
- Não queremos ir à escola, mamã.
- O quê? Não vão à escola? Vão, sim-senhor!
- Não vamos à escola, mamã.
- Mas não vão à escola porquê? Não estudaram, não é?
- É a sôra professora, mamã.
- É a sôra professora o quê?
- !!!

- Olhem, amanhã é dia de visita e vou queixar ao vosso pai.
- Não vai queixar, mamã.
- Queixo, sim, vocês vão ver.
- A sôra professora chama... a sôra professora cha...
- A sôra professora não chama nada, vou queixar.
- A sôra professora chama-nos filhos de uma turra, mamã.
- !!!

- Está bem, mamã, não chore.
Não chore, mamã. Nós vamos à escola, mamã.

(Agosto de 1967)

José Craveirinha
(In Cela 1)

Saturday 6 April 2013

DA PRISÃO DE ISTAMBUL


Em Istambul, no pátio da prisão,
depois da chuva, num dia soalheiro de Inverno,
ao mesmo tempo que
as nuvens,
as telhas vermelhas,
os muros
e o meu rosto
tremelicam nas poças do chão,
assumindo
toda a coragem
toda a cobardia
toda a força
toda a fraqueza
que há em mim,
pensei no universo,
no meu país,
pensei em ti.


Nazim Hikmet
(Prisão de Istambul, Fevereiro de 1939)

Wednesday 3 April 2013

Viver sempre também cansa!


O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
 
O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
 
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
 
Tudo é igual, mecânico e exacto.
 
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
 
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
 
E obrigam-me a viver até à Morte!
 
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?
 
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
 
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."
 
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...
 
José Gomes Ferreira

Monday 1 April 2013

NO QUINTO DIA DE UMA GREVE DA FOME


Meus irmãos,
se eu não conseguir dizer correctamente o que tenho para vos dizer,
desculpar-me-eis, irmãos.
Estou levemente embriagado, a cabeça um pouco a andar à roda,
não de aguardente,
de fome, um nadinha.

Meus irmãos
da Europa, da Ásia, da América,
não estou na prisão, em greve da fome,
é como se estivesse deitado na relva, à noite, neste mês de Maio,
os vossos olhos brilham como estrelas à minha beira.
E as vossas mãos, uma só dentro da minha
como a da minha mãe,
como a mão da minha amada,
como a de Memet,
como a de Mémet.

Meus irmãos,
convosco eu nunca nunca estive sozinho:
não apenas eu,
mas também o meu país e o meu povo.
Porque vós amais os meus tanto quanto eu os vossos,
obrigado, irmãos, meus irmãos,
obrigado.

Meus irmãos,
não faço tenção de morrer.
Meus irmãos, continuarei a viver junto de vós, sei que sim:
estarei no verso de Aragon,
no teu verso que fala dos belos dias que hão-de vir.
Estarei na pomba branca de Picasso.
Estarei nas canções de Robeson.
E sobretudo
e melhor do que tudo,
entre os estivadores de Marselha,
estarei no riso vitorioso dos meus camaradas.

Numa palavra, meus irmãos,
sou feliz, feliz a mais não poder.

Nazim Hikmet