Wednesday 30 May 2018

Areia por entre os dedos


Descalço corri
desertos marés palavras e ventos
só para te ver
formosa duna
estavas de vigília em vão
colar de limos ao pescoço
quase vegetal nas areias
O mar já tinha invadido
os teus barcos mais restritos
a luz ardia na praia
os nossos barcos preferidos
Descalço corri
só para te ver
formosa duna
estavas a dormir silvestre
no chão das memórias
areia
tão livre de fronteiras
por entre os dedos

eufrázio filipe

Sunday 27 May 2018

No princípio dos pássaros


Nunca foi importante
salvar o mundo
construir poemas
com palavras ininteligíveis

saber se és vento
barco relâmpago
mulher incerta
metáfora
escarpa
ou flor de estação

importante é quando passas
corpo de seara
sem magoar os cravos

e dulcíssima te desfolhas

Sempre me apaixonei
por esta desordem de cores
quando passas

não pelos teus passos
mas pela sua leveza
como no princípio dos pássaros


Eufrázio Filipe

Thursday 24 May 2018

Cadeiras vazias


Em cardume
nos olhos dos peixes
lá estavam os pescadores

Na véspera dos relâmpagos
e outros afectos
dulcíssimos corações
clareavam as noites
e nós só podíamos fazer
o que fizémos

sentámos à mesa
os ausentes
levitámos em voz alta
o sussurro das marés
recolhemos metáforas
e algumas estrelas
no chão das águas

soltámos um grito

celebrámos as cadeiras vazias


eufrázio filipe

Monday 21 May 2018

Domingo no campo

Aos domingos, quando os sinos tocam
de manhã, o que neles se toca é a manhã,
e todas as manhãs que nessa manhã
se juntam, com os dias da infância que
nunca mais acabavam, as casas da aldeia
de portas abertas para quem passava,
as ruas de terra batida onde as carroças
traziam as coisas do campo, os cães que
corriam atrás delas, uma crença no sol
que parecia ter expulso todas as nuvens
do céu, e a eternidade desses domingos
que ficaram na memória, com o ressoar
dos sinos pelos campos para que todos
soubessem que era domingo, e não havia
domingo sem os sinos tocarem a lembrar,
a cada badalada, que os domingos não
são eternos, e que é preciso viver cada
domingo como se fosse o primeiro, para
que o toque dos sinos não dobre por
quem não sabe que é domingo.

Nuno Júdice

Friday 18 May 2018

Luta de classes: O quarto poder


Na primeira hipótese, há uma causa
que obriga a multidão a avançar pela rua,
sabendo o que tem pela frente. As suas vozes
esperam que alguém as acorde com uma fórmula
que dê sentido ao seu movimento; mas
nem isso é preciso, quando olhamos o conjunto
e encontramos uma lógica que
determina cada passo.
Na segunda hipótese, a expressão do rosto
transporta uma decisão que ultrapassa o objectivo
do grupo. Poderia falar-se de uma metafísica
colectiva, e recorrer à dialéctica do Hegel para
descobrir esta violência serena que antecede
o grande combate que o filósofo descreveu como
simples antítese. A abstracção do raciocíonio
liberta-nos da realidade.
O que não vemos é o que está à sua
frente, e nunca tem rosto. A devastação
do mundo é, no fundo das coisas, a terceira
hipótese, mesmo quando uma planta ainda nasce
no terreiro vazio, depois da batalha.

Tuesday 15 May 2018

Luta de classes: Movimento de massas


Na sua definição de um movimento de massas,
marx não viu a individualidade do sujeito, nem
a sua realidade única, como se a pessoa não fosse mais
do que uma peça no conjunto que poderia viver
sem ela, substituindo-a quando fosse preciso. Mas
ao olhar os rostos que fazem parte da multidão,
encontro as diferenças que nascem de cada vida, com
aquilo que as distingue, do nascimento à morte. Dentro
do grupo, porém, essas diferenças esbatem-se: e
se a multidão é a tese, cada um desses corpos
representa uma antítese que leva consigo
o problema que a dialéctica não resolve: dramas
e alegrias que não existem para além deles,
e que ouço quando me aproximo de cada rosto,
como se a tese nascesse de uma surpresa nos olhos,
ou na inesperada confidência de um sentimento. Mas
marx não precisava de saber o que havia na cabeça
de cada um para definir o pensamento colectivo;
e a revolução rolou pelos impérios, levando atrás
dela os destinos de que nada sabemos.

Saturday 12 May 2018

Luta de classes: O campesinato



 A chave do campo está na mão das mulheres
que o lavraram, desfazendo os nós do inverno
com a exactidão da pá. Vi estas mulheres no
grande caminho da História, perdendo as suas
vidas em cada nova colheita. O sol tisnou
a sua pele; o frio enrugou os seus rostos. À
noite, quando o vento batia nas janelas
de madeira, os seus olhos atravessavam
a treva e perdiam-se em destinos que
não conheciam, como se tivessem outra
saída. Ouvi as suas queixas no murmúrio
das árvores que as abrigaram; e vi os
seus corpos deitados nas igrejas, sem
ninguém que os velasse, a caminho da vala
comum. Amei-as, sem que o soubessem;
e ouço o ruído das pás na terra, quando os
seus rostos me atravessam a memória,
e o inverno cai sobre a lama dos campos.

Nuno Júdice

Wednesday 9 May 2018

Dia 146.


Era uma vez duas vezes. E como nunca há duas sem, três, algum
castigo tens guardado para mim. Não sei se me roubarás os livros,
se me esconderás os melros, se me negarás os beijos.
Alguma coisa destas tu farás.
Podes roubar-me os livros.
Hei-de recuperá-los, verso a verso, como a aranha que reconstrói
a teia, como o pensamento que reconstrói a ideia, como o vento que reconstrói a duna.
Podes esconder-me os melros.
Saberei cantar. Darei asas à minha esperança para a ver poisar em
todos os verdes, brilhar em todos os muros, debicar todos os desejos.
Não me negues os beijos.
Morrerei de fome. E de sede. E de saudade.
Morrerei de te ver e não te ter.
Morrerei de não morder a tua boca.
Morrerei de não viver.
Morrerei.


Joaquim Pessoa

Sunday 6 May 2018

A velha juventude


Não caio, mesmo que as forças me faltem,
cruzo-me com a tarde e com o assombro do mar
onde o meu coração aguardará a noite como as aves
nos ninhos construídos no interior da falésia.


Será uma noite surpreendente, uma noite sem ti,
porque será mais noite ainda, sem aquele brilho azul
que só as nossas noites tinham. E eu sinto-me vazio
como uma criança que fugiu de casa e não sabe voltar.

O meu olhar é uma pedra acesa na tua recordação,
a minha carne sente a falta da tua, e nas minhas mãos
o sol deixa os últimos raios de âmbar, as tímidas marcas
que os meus dentes costumavam gravar na tua pele.

Quando a noite vier fechar as suas portas,
lembrar-me-ei do interior da nossa casa, quando
esperava por ti, doente de esperar, mas fascinado
como só poderia sentir-se um amante faminto.

Caminho e não caio, mesmo que me faltem
as forças que me trouxeram para longe de ti. Sou
esse velho amante cheio de juventude, a quem a vida
não quis renovar mais que os próprios versos.

Joaquim Pessoa

Thursday 3 May 2018

Congresso Internacional do Medo



Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.


Carlos Drummond de Andrade

Tuesday 1 May 2018

abril


abril

seremos maio até que abril vença.

Miguel Tiago