Sunday 30 January 2022

sem título


esse vendaval somos nós.

somos nós que nos levantamos do chão
e aos que estendem a mão
arrancamos as raízes mortas
destruímos as prisões
e sopramos futuro sobre o calor húmido


do passado.

Miguel Tiago


Thursday 27 January 2022

Bocage


triste o mundo de farpelas de alfaiate
feitas à medida da mentira.
vãs conquistas e falso louvor
com que se lavra a terra estéril d'alma débil.

frágil o brilho dos faróis fingidos
sumido o destino dos que por esse s'iluminam.

de mim não esperem mais que o breu legítimo
e a venal ausência
onde as estrelas se firmam.

Miguel Tiago

 

Monday 24 January 2022

Arrábida


abrir um oceano no meio de continentes
e fazer da terra serra
do que era fundo do mar
elevar no ar uma onda e fúria latentes
um penedo de infinitas conchas
que ousam levantar-se
verticais
e ter no extremo ocidente o mais belo cais
uma rocha um substrato um convento
convento, o retiro dos homens que querem estar mesmo ali
à mão de semear do deus que lhes sopra o vento
no rosto, na encosta sul, na face do azul
e do tempo
do tempo que esculpiu escarpas e algares
e povoou de folhas o solo que aceita filtrados os raios do sol
sobre o musgo
talvez do suão ainda nasçam aqueles medronhos
a semente mediterrânica de alecrim
e da pedra humedecida veja nascer o brilho
de onde vim
árabe
mas mais antigo que as regiões as religiões
um refúgio, mãe, uma concha nossa
a placenta. 
 
Miguel Tiago

Friday 21 January 2022

turno da noite


esse café da manhã à noite
a luz do sol só reflectida na lua
e um dia assim de repente 
a enchente
de luz e de gente
vigilante no sono 
ter uma arritmia na vida
uma hora preferida
para morrer
que resta estar disponível 
escreves a vida em código binário
acende apaga
e eu sou o teu turno da noite.
 
Miguel Tiago

ensaio sobre a natureza da ameaça


os abutres despedaçam-nos o corpo
coberto de repelente de insectos. 
 
Miguel Tiago

Saturday 15 January 2022

kaiseki


a pedra quente
o calor sacia a fome
sobre o ventre. 
 
Miguel Tiago

Wednesday 12 January 2022

komorebi


o ar vaporizado

no bosque
as árvores
sobre os fetos rentes
os rasgos de uma estrela incandescente
demasiado próxima
uma cortina
um sopro do nascente
ao ocaso.

Miguel Tiago

Sunday 9 January 2022

cordas

 nas cordas tecer o tempo
vibrante de uma melodia
de madeira embebida
no verniz das décadas
poder nas mãos de abrir asas
de abrir almas
de encher casas
um vórtice
sem vazio
uma escala plena
de pétalas cadentes
que te cobrem o sorriso quando entras na sala
um vendaval
e tu um salgueiro. 

 Miguel Tiago

Thursday 6 January 2022

sem título


da chuva
sabemos tudo até que
a terra a transpire
da vida
sabemos o que nos deixam as mortes
até que sábios e poetas o desmintam
de nós
nunca poderemos saber coisa alguma
até que o tremor nos tome
a chuva nos respire
e a vida nos ame.
 
Miguel Tiago

Monday 3 January 2022

quantidade e qualidade


gosto da imagem do copo cheio de água turva pelas argilas em suspensão. em repouso as argilas tendem a pousar, quando a gravidade vence finalmente a agitação e a entropia do sistema baixa ao ponto de a água se separar dos pequenos pedaços de mineral.
é o mesmo copo, é a mesma água, são as mesmas argilas. contudo, pela quantidade de energia que se introduz no sistema, ou que se lhe retira, a alteração é de qualidade. água turva sem depósito no fundo do copo, água límpida e cristalina com as argilas em camadas tranquilas e opacas depositadas.
assim somos nós, um recipiente de lama cuja absorvância depende da agitação. 
 
Miguel Tiago

 

Saturday 1 January 2022

lembro-me do futuro


escrevi estes versos para os meus filhos
cujos nomes são desconhecidos
da maior parte
o tempo deixa-nos na memória apenas o passado que se acumula sob as finas camadas do presente
mas sabe seus nomes quem luta pelo futuro.
e nós, nós habitamos todo o tempo, e somos daquela porção da humanidade cuja memória guarda já o brilho da luz, o cheiro, e a história de amanhã. nós somos aqueles de quem as mãos, na verdade, são asas.
 
Miguel Tiago