Wednesday 30 March 2016

O progresso das ciências


Conseguiram encerrar o vento,
retirar a pouco e pouco o ar
e - maravilha! - o povo
resiste ainda e vive.

A asfixia é lenta e os que morrem
parecem ir de morte natural.

Hoje porém os sábios consideram
enganosa essa fórmula que reduz
o paciente à condição de peixe triste.

Pois no repouso fictício a onda
aguarda o luar da maré cheia.

Nas manhãs da terra
as manchas de sangue ganham punhos;
a viva carne cobre o inesperado.

Egito Gonçalves

Sunday 27 March 2016

DA CONTRADIÇÃO

Por contradições se avança.
Na constante contradança
de negar e ser negado,
mudança atrás de mudança,
nunca a mudança se cansa,
nada está nunca acabado.

Armindo Rodrigues

Thursday 24 March 2016

Sigilo poético


Peço-vos sigilo sobre os meus versos.

Bem sei que arrisco não constar
nos tops de vendas
mas como é sabido
nos dias que correm
tudo o que é feito com amor
deve ser tratado com a máxima discrição
até porque se os meus versos
forem bons
destruo toda a minha reputação
de diletante e promessa adiada

Por isso vos peço
respeitem a natureza clandestina
dos meus versos
não falem deles a ninguém
nem amigos nem família nem colegas

só aos amantes

Tiago Rodrigues

Monday 21 March 2016

Pauta

O que do intento à acção
for capaz de se mover,
com mais ou menos alarde,
soberba, ou despretensão,
sem a prudência o tolher,
sem a consciência perder,
podem-lhe os joelhos tremer,
podem-lhe os dentes bater.
O que não é é cobarde.

Armindo Rodrigues

Friday 18 March 2016

Expulso, e com razão


Eu cresci como filho
de gente abastada. Os meus pais puseram-me
um colarinho ao pescoço e criaram-me
nos costumes de ser servido
e ensinaram-me a arte de mandar. Mas
quando era já crescido e olhei à minha roda,
não me agradou a gente da minha classe,
nem o mandar nem o ser servido.
E eu abandonei a minha classe e juntei-me
à gente pequena.

Assim
criaram eles um traidor, educaram-no
nas suas artes, e ele
atraiçoa-os ao inimigo.

Sim, eu divulgo segredos. Entre o povo
estou eu e explico
como eles enganam, e predigo o que vai vir, pois eu
estou iniciado nos seus planos.
O latim dos seus padres corruptos
traduzo-o palavra a palavra para a língua comum,
e então se descobre que é tudo pantomina.
A balança da sua justiça
tiro-a para baixo e mostro
os pesos falsos. E os seus informadores vão dizer-lhes
que eu estou com os roubados quando conjuram
a revolta.

Admoestaram-me e tiraram-me
o que ganhei com o meu trabalho. E quando eu não melhorei,
deram-me caça.
Porém
já só havia escritos em minha casa, que descobriam
os seus conluios contra o povo.
E assim
perseguiram-me com um mandato de captura
que me acusava de opiniões baixas, isto é
de opiniões dos de baixo.

Aonde chego, fico marcado
para todos os possidentes,
mas os que nada têm lêem o mandato e
dão-me abrigo.
«A ti» - ouço eu dizer -
«expulsaram-te eles, e
com razão».

Brecht

Tuesday 15 March 2016

ARRANCA DA CABEÇA O PENSAMENTO...

Arranca da cabeça o pensamento,
esvazia o coração de simpatia,
e, morto, viverás com alegria,
neste triste lugar, neste momento.
Mas se a isto preferes o tormento
de uma luta constante, amarga e fria,
da tua noite romperá o dia
em que à afronta a levará o vento.
Não te importe se à voz te não responde
sempre outra voz ardente como a tua,
nem te importe sequer porque se esconde.
Crê só que no silêncio a raiva estua,
e amanhã, sem saberes como e donde,
ela virá bradar em cada rua.

Armindo Rodrigues

Saturday 12 March 2016

Elegia por antecipação à minha morte tranquila



Vem, morte, quando vieres.
Onde as leis são vis, ou tontas,
não és tu que me amedrontas.
Troquei por penas prazeres.
Troquei por confiança afrontas.
Tenho sempre as contas prontas.
Vem, morte quando quiseres.

Armindo Rodrigues

A morte veio no dia 8 de Agosto de 1993.
O POETA tinha «as contas prontas».

Wednesday 9 March 2016

IDEIAS BOAS OU MÁS

Ideias boas ou más,
actos maus ou actos bons,
é a vida quem os faz,
ou são os seus próprios dons?
A quem negue a liberdade
vá-se ao extremo de a impor.
Não é com meia verdade
que uma verdade dá flor.
E não se tenha receio
de perder para ganhar.
A liberdade é um meio
de a vida se libertar.

Armindo Rodrigues

Sunday 6 March 2016

Prisão de Caxias, 1949


Como fantasmas, sem repouso,
no corredor andam os guardas,
de pistola à cinta, dia e noite.
Nuvens vazias lhes pesam.
Um vinho azedo os corrompe.
O corredor é longo e estreito.
longo e sujo,
longo e escuro.
Do tecto baixo as lâmpadas exaustas
dir-se-ia que de remorsos lhe põem mais sombras
na atmosfera sombria de remorso.
Só nas salas, fechados, os presos falam,
os presos riem,
os presos cantam.
Não há remorso na lembrança deles.
Na desgraça deles não há remorso.
O remorso ficou lá fora,
no corredor onde andam os guardas,
de pistola à cinta, dia e noite,
a manchar de vergonha a vida
e a fazer nojo aos escarradores
alinhados contra a parede.
O remorso ficou lá fora,
na felicidade e na cobardia
dos que se alheiam do combate.

Na minha sala há treze presos.
Treze são as salas que dão
para o corredor onde andam os guardas,
de pistola à cinta, dia e noite.
Maldita seja a maldição
com que à honra se responde.
Cada sala tem uma janela
que nem finge de fingimento,
porque além da barreira das grades
em frente um talude nos cobre
a despreocupação de ave
do horizonte desdobrado,
e lá fora andam outros guardas,
de carabina ao ombro, dia e noite.

Na minha sala há treze presos,
com treze protestos erguidos,
mas erguida uma só bandeira.
São criminosos de querer,
num tempo torpe de prisões,
as torpes prisões arrasadas.
Os outros presos, nas outras salas,
sangram das mesmas feridas,
ardem de desejo igual.
Estão aqui presos, mas são livres,
porque neles a justiça
sopra como os vendavais.
A prisão ficou lá fora,
nos felizes e nos cobardes.

Armindo Rodrigues

Thursday 3 March 2016

NA MINHA COURELA...

Na minha courela, enquanto a lavro,
é sempre manhã, mesmo se já noite.
O meu ofício farto
é o de cultivar sonhos.
Deito trigo à terra e nasce-me luz.
Deito luz à terra e nasce-me trigo.
Nem há mais exacta semente que esta,
que dá a colheita ao sabor da fome.

Armindo Rodrigues

Tuesday 1 March 2016

A FLOR DA SOLIDÃO



Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos

Ruy Belo