Sunday 27 February 2022

lógica


que deus algum nos negue a existência
é existirmos que a todos nega.

na vida não invertemos a ordem dos factores. 
 
Miguel Tiago

Thursday 24 February 2022

sem título


há morangos, maçãs e laranjas. era o que podia ler-se na tabuleta de madeira à beira da estrada. a poucos metros à frente, as mãos engelhadas do frio e curtidas pelo vento salgado dos anos contavam algumas moedas para fazer um troco. o cliente satisfeito já levava um belo saco de laranjas e sorria. claro que não faço ideia se foi assim a estória, mas é o que dá gosto depreender pela tabuleta de madeira.
sei que as margens do Mondego foram vencidas pelo volume e pela torrente e que acabaram por ceder. ao viajar por entre o vale da livraria, o rio serpenteava em sentido contrário e nunca o tinha visto tão alto ou tão revolto. um rio revolto é sempre inspirador. e aqueles peixes que pensavam sossegar e permitir que o frio lhes petrificasse as preocupações eis que dão por si a ter de sair da letargia do gelo e a esbracejar para vencer os remoinhos. alguns cansaram-se e sucumbiram. outros não. já dos que ficaram a ver, como a nêspera, não reza a história. também não tenho a certeza de que tenha sido exactamente assim, mas é o que dá ter este gosto pelo impressionismo: uma pessoa vê um rio revolto e fica com a impressão de que há lá sempre mais qualquer coisa. claro que se podia sempre dizer "prateado o céu plúmbeo, escondia a cor barrenta do rio que, agitado, o reflectia" e pronto. mas é também o desafio das impressões, ver para além delas.
é por isso que posso escrever "o teu beijo pousou leve no meu peito" e saber que a verdade escreve assim: "o meu coração pulsa o sangue da tua alma."
 
Miguel Tiago

 

Monday 21 February 2022

sem título


para serem expulsas do paraíso
que mal terão feito as aves
e não me digam que comeram uma maçã
por ouvir sibilar uma serpente 
 
Miguel Tiago
 

Friday 18 February 2022

Porto, Abril de 2016


cidades-lágrimas são calor no meio das pedras.


as gotas da chuva reflectem, cada uma, todo o mundo ao ser redor e, enquanto a gravidade as vence, reflectem na superfície a paisagem cada vez mais pequena que, ainda assim, partilha sempre metade de cada uma com o céu de onde vieram.


até que na terra se desfaçam em mil outras gotas ou se infiltrem pelos espaços vazios entre os grãos de areia, siltes ou argilas que convivem com a morte e a vida dos que jazem e dos que dos que jazem se alimentam. ou que, por vezes, na nossa pele salpiquem a temperatura das alturas a que pertenciam quando sucumbiram, por falta de agitação molecular que lhes permitisse vencê-la, à inexorável força da massa terrestre que as não deixa fugir.


no dorso do vento frio, que enche os espaços deixados pela baixa pressão, a memória dos teus lugares preferidos é o sangue do teu calor, da tua ilha, neste arquipélago onde, ao contrário dos geológicos, cada ilha faz o seu próprio vulcão.

 Miguel Tiago

Tuesday 15 February 2022

lugar


quando volto aos meus lugares
entendo novamente aquela distância imensa
entre nós e o horizonte
como entre solidão e estar sozinho.
quando regresso aos meus lugares
sinto na polpa dos dedos o toque da pele
indígena
que nos reveste
por dentro. 
 
Miguel Tiago

Saturday 12 February 2022

kōan


germinar duas vezes a mesma semente de infinitas mortes.

 Miguel Tiago

Wednesday 9 February 2022

sem título


talvez já não haja morangos. há cerejas, maçãs e laranjas era o que agora se podia ler na mesma placa de madeira erguida na beira da estrada. por perto, o sol só permitia uma pequena sombra junto ao balcão improvisado na lateral da camioneta. e as cerejas, algumas ao sol, reflectiam o vermelho da luz solar com fulgor. não consigo já distinguir na memória se alguém se preparava para trazer cerejas, maçãs ou laranjas a dois euros o quilo, mas espero que sim, para que não desistam de anunciar fruta à beira das estradas e para que nos dias de verão a minha irmã possa sempre parar o carro para provar uma melancia fresca, mesmo que a não compre.
foi longo o vendaval do inverno. mas tudo tem o seu fim, ainda que temporário. a superfície do mondego não estava agitada e a água podia assim reflectir sem perturbação o verde das margens vivas, o cinza da livraria litológica e o azul do céu. se é bonito o quadro que a a luz reflectida e a paisagem pintam no encaixe do mondego algures entre os distritos duros de coimbra e viseu, é porque ainda não vimos o que faz a luz refractada pelo rio adentro. aqueles raios oblíquos do sol que perfuram com novo ângulo a superfície e vão iluminar os olhos sempre abertos dos peixes que aproveitam a corrente laminar para descansar. os que lutaram, claro, porque dos outros não reza a história. e as algas, que na torrente do inverno mal se prendem na rocha do leito, agora ondulam como uma seara verde no vento suave. são assim mesmo as coisas: o mesmo rio que arrancou pedras e agitou o próprio coração de quem o viu, é o que agora permite que o espelho à sua superfície reflicta almas tranquilas. 
o mesmo rio que levantava pedras, areias, siltes e argilas, não tem agora força para turvar a água com a mais pequena partícula. voltará a ter, é certo. mas só quando os finos assentam, podemos ver através da água. desta vez, parece que me terei deixado levar pela simplicidade das impressões. e eis que, assente a poeira, também se desfazem ilusões: não há meias palavras para dizer a verdade.
 
Miguel Tiago

Sunday 6 February 2022

sem título


tinha na mesa servidas frias as asas mortas de um corvo que alavam um coração. o meu.
 
Miguel Tiago

Thursday 3 February 2022

trigonometria


a liberdade mede-se em graus
como os ângulos
se o seno for menor que um
estas cativo da tua inclinação.
 
Miguel Tiago

Tuesday 1 February 2022

H.


serenas as fúrias com o tom da tua voz que recordo ainda dos telefones antigos,
não serás vítima da fraqueza de ninguém porque as fortalezas, como tu, só sucumbem ao abandono
quem nunca abandona, não é abandonado.
o teu fogo azul, a tua alma marinha não são refúgios para quem está perdido. são as maiores riquezas de quem sabe o caminho.
 
Miguel Tiago