Thursday 30 September 2010

CONQUISTA

Livre não sou, que nem a própria vida
mo consente.
Mas a minha aguerrida
teimosia
é quebrar dia a dia
um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
que se afogou, e flutua
entre nenúfares de serenidade
depois de ter a lua.

Miguel Torga

Monday 27 September 2010

1936

Lembra-o tu e lembra-o aos outros,
quando enojados da baixeza humana,
quando furiosos pela dureza humana:
Este homem único, este acto único, esta fé única.
Lembra-o tu e lembra-o aos outros.

Em 1961, numa cidade estranha,
mais de quarto de século
depois. Vulgar a circunstância,
obrigado tu a uma leitura pública,
por causa dela conversaste com esse homem:
um antigo soldado
na Brigada Lincoln.

Há vinte e cinco anos, este homem,
sem conhecer a tua terra, para ele distante
e estranha, resolveu ir para lá
e nela, se chegasse o momento, decidiu apostar sua vida,
julgando que a causa que lá estava em jogo
então, digna era
de lutar pela fé que enchia a sua vida.

Que essa causa pareça perdida,
nada importa;
Que tantos outros, pretendendo crer nela,
apenas trataram de si mesmos,
importa menos.
O que importa e nos basta é a fé de alguém.

Por isso outra vez hoje a causa te parece
como naqueles dias:
Nobre e tão digna de lutar por ela.
E a sua fé, aquela fé, ele a manteve
através dos anos, da derrota,
quando tudo parece atraiçoá-la.
Mas essa fé, a ti mesmo dizes, é o que somente importa.

Obrigado, Companheiro, obrigado
pelo exemplo. Obrigado por me dizeres
que o homem é nobre.
Nada importa que tão poucos o sejam:
Um homem, um só, basta
como testemunho irrefutável
de toda a nobrez humana.

Luis Cernuda

Friday 24 September 2010

Contratados

Longa fila de carregadores
domina a estrada
com os passos rápidos

Sobre o dorso
levam pesadas cargas

Vão
olhares longínquos
corações medrosos
braços fortes
sorrisos profundos como águas profundas

Largos meses os separam dos seus
e vão cheios de saudades
e de receio
mas cantam

Fatigados
esgotados de trabalhos
mas cantam

Cheios de injustiças
calados no imo das suas almas
e cantam

Com gritos de protesto
mergulhados nas lágrimas do coração
e cantam

Lá vão
perdem-se na distância
na distância se perdem os seus cantos tristes

Ah!
eles cantam...

Agostinho Neto
In "Sagrada esperança"

Tuesday 21 September 2010

DESPERTAR

É um pássaro, é uma rosa,
é o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou mar,
tudo é ardor, tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa,
canto na ave, água no mar.

Eugénio de Andrade

Saturday 18 September 2010

A ELIONOR

A Elionor tinha
catorze anos e três horas
quando começou a trabalhar.
Estas coisas ficam
registadas para sempre no sangue.
Ainda usava tranças
e dizia: «sim, senhor» e «boas tardes».
As pessoas gostavam dela,
da Elionor, tão meiga,
e ela cantava enquanto fazia correr a vassoura.
Os anos, porém, dentro da fábrica,
diluem-se no opaco
griséu das janelas,
e ao fim de pouco a Elionor não teria
sabido dizer de onde lhe vinha
a vontade chorar,
nem aquele irreprimível
aperto de solidão.
As mulheres diziam que aquilo
era porque estava a crescer e que aqueles males
se curavam com marido e filhos.
A Elionor, de acordo com a mui sábia
predição das mulheres,
cresceu, casou-se e teve três filhos.
O mais velho, que era uma rapariga,
só havia três horas
fizera os catorze anos
quando começou a trabalhar.
Ainda usava tranças
e dizia: «sim, senhor» e «boas tardes».

Miquel Marti I Pol

Wednesday 15 September 2010

MAS QUEM É O PARTIDO?

Mas quem é o Partido?
Está ele numa casa com telefones?
São secretos os seus pensamentos, incógnitas as suas decisões?
Quem é ele?

Nós somos ele.
Tu e eu e vós - nós todos.
Está metade no teu fato, camarada, e pensa dentro da tua cabeça.
Onde eu moro é a sua casa, e onde tu és atacado, aí luta ele.

Mostra-nos tu o caminho que devemos seguir, e nós
segui-lo-emos como tu, mas
não sigas sem nós o caminho exacto.
Sem nós é ele
o mais errado.
Não te afastes de nós!
Nós podemos errar, e tu podes ter razão, portanto
não te afastes de nós!

Que o caminho curto é melhor que o comprido, ninguém o nega.
Mas quando alguém o conhece
e não é capaz de no-lo mostrar, de que nos serve a sua sabedoria?
Sê sábio connosco!
Não te afastes de nós!

Brecht

Sunday 12 September 2010

NÃO ME PEÇAM RAZÕES

Não me peçam razões, que não as tenho,
ou darei quantas queiram: bem sabemos
que razões são palavras, todas nascem
da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
a força de maré que me enche o peito,
este estar mal no mundo e nesta lei:
não fiz a lei e o mundo não o aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
deste modo de amar e destruir:
quando a noite é de mais é que amanhece
a cor de primavera que há-de vir.

José Saramago

Thursday 9 September 2010

DA SEMÂNTICA

Recentemente
na fábrica
melhoraram muito as relações humanas.
Agora, por exemplo,
ao tirar-se o prémio semanal
a uma operária,
por uma mistura de fios,
por exemplo,
ou por qualquer acto menor de indisciplina,
já não se diz impor um castigo;
diz-se:
estimular o sentido
da responsabilidade.

Miquel Martí I Pol

Monday 6 September 2010

HOMEM COM MÁQUINA


Estes homens que estão junto das máquinas
Estes homens que trabalham por causa das máquinas
Estes homens que choram por causa das máquinas
Estes homens que não vivem por causa das máquinas
Estes homens que morrem por causa das máquinas
Estes homens que não sabem a razão das máquinas
Estes homens que só sabem o preço das máquinas

Estes homens, quando chegar a hora, serão máquinas


Joaquim Horta

Friday 3 September 2010

VIAGEM ATRAVÉS DA FESTA

Reivindicamos a alegria.
Reivindicamos as canções de liberdade.
Reivindicamos a música ordenadora do universo.
Reivindicamos as mãos dadas dos amantes.
Reivindicamos o sabor descoberto de todas as coisas.
Reivindicamos as pontes tranquilas.
Reivindicamos a invenção das cidades habitáveis.
Reivindicamos a palavra, o poema, o livro.

Reivindicamos a festa.
Reivindicamos esta arma.

Mário Castrim
(In «Viagens»)

Wednesday 1 September 2010

QUERO FALAR DOS HERÓIS

Quero falar dos heróis
que fazem o edifício, dos homens
quero falar mas não para dizer
que são heróis mas para os citar
e pôr aqui uns com os outros
e comigo e com todos
o que semeia a cana,
o que a corta,
o que a carrega,
e que a leva de um lado para o outro
de camião, de carroça, de vagão,
o que enche a balança,
o que nutre a esteira,
o que alimenta os moínhos,
o que lubrifica as porcas,
o que trata dos fornos,
o que se ocupa do bagaço,
o que prepara a cal,
o cozinheiro,
o que vigia,
o que filtra a massa,
e que a clarifica,
o que controla a espessura com os dedos,
o que os enlouquece girando nas centrífugas,
o que dirige as operações
e todos os que ajudam estes homens
de uma forma ou de outra
- amando-os, citando-os.

David Chericián
(In Poesia Cubana da Revolução)