Thursday 30 October 2014
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Fica dentro de mim, como se fosse
eterno o movimento do teu corpo,
e na carne rasgada ainda pudesse
a noite escura iluminar-te o rosto.
No teu suor é que adivinho o rastro
das palavras de amor que não disseste,
e no teu dorso nu escrevo o verso
em pura solidão acontecido.
Transformo-me nas coisas que tocaste,
crescem-me seios com que te alimente
o coração demente e mal fingido;
depois serei a forma que deixaste
gravada a lume com sabor a cio
na carícia de um gesto fugidio.
António Franco Alexandre
Monday 27 October 2014
Cassandra particular
Amanhã de manhã lereis no jornal uma nova guerra
e formulareis o desejo de vitória de um dos lados...
amanhã desejareis uma nova mulher,
fechareis um negócio, comprareis bilhete para o cinema,
passareis em revista as vossas ambições,
suareis, tereis cóleras, jogareis brídge...
Amanhã a Morte olhar-vos-á um passo mais de perto;
amanhã o Amor olhar-vos-á um passo mais de longe.
Continuará a haver estrelas, rosas,
o luar, as dálias, as crianças,
os jardins, o crepúsculo, a poesia
- os livros dos poetas bem baratos...
Mas amanhã não tereis tempo
um minuto sequer
Amanhã vendereis ao Diabo mais um comboio de mercadorias.
Egito Gonçalves
Friday 24 October 2014
ESPERANÇA
Sei o teu nome, e chamo-te em silêncio.
Não quero despertar
o rancor assassino
dos guardas vigilantes
que te negam...
Vem, se puderes passar
através do seu ódio secular,
a única tarimba onde sossegam.
Ah, que festa haveria nos meus braços,
se batesses à porta, como outrora!
Toda a casa acredita nessa hora,
e ouve, em sobressalto,
cada leve rumor que se aproxima...
Vem, se puderes passar.
Vem, se puderes, mostrar
a eterna juventude que te anima.
Miguel Torga
Tuesday 21 October 2014
A EXISTÊNCIA ALHEIA...
A existência alheia,
a alheia dignidade,
os direitos alheios pouco são
para os orgulhosos governantes
de hoje, como de sempre.
Por isso,
toda a ordem que de um mando provém,
e, em consequência, toda a dominação
são um abuso e um esbulho.
Na sociedade de classes é a lei
a grande prostituta.
Armindo Rodrigues
Saturday 18 October 2014
Aqui ficam as coisas
Amar é a mais alta constelação.
Os sapatos sem dono
tripulando
na correnteza-espaço
em que deitamos.
As minhas mãos telhado
no teu rosto de pombas.
Os corpos circulando
na varanda dos braços.
É a mais alta constelação.
Carlos Nejar
Wednesday 15 October 2014
Sunday 12 October 2014
Somo-nos
e afinal é isto e só isto
será? que seja, quero
dias todos assim, assim
boca, assim duas mãos
seguras por beijos e medo
da luz um corpo amanhecido
de muito mudas as palavras
e tão dentro dos teus olhos
vemos tudo o que não era
e somos o que não fomos
porque adormecemos inteiros
por dentro de dentro de nós
ao fundarmos um nosso verbo
Nuno Camarneiro
Thursday 9 October 2014
Os tempos modernos
Os tempos modernos não começam de uma vez por todas.
Meu avô já vivia numa época nova.
Meu neto talvez ainda viva na antiga.
A carne nova come-se com velhos garfos.
Época nova não a fizeram os automóveis
nem os tanques
nem os aviões sobre os telhados
nem os bombardeiros.
As novas antenas continuaram a difundir as velhas asneiras.
A sabedoria continuou a passar de boca em boca.
Brecht
Monday 6 October 2014
De ti só quero o cheiro dos lilases
De ti só quero o cheiro dos lilases
e a sedução das coisas que não dizes
De ti só quero os gestos que não fazes
e a tua voz de sombras e matizes
De ti só quero o riso que não ouço
quando não digo os versos que compus
De ti só quero a veia do pescoço
vampira que já sou da tua luz
De ti só quero as rosas amarelas
que há nos teus olhos cor das ventanias
De ti só quero um sopro nas janelas
da casa abandonada dos meus dias
De ti só quero o eco do teu nome
e um gosto que não sei de mar e mel
De ti só quero o pão da minha fome
mendiga que já sou da tua pele.
Rosa Lobato de Faria
Friday 3 October 2014
Casa na chuva
A chuva, outra vez a chuva sobre as oliveiras.
Não sei porque voltou esta tarde
se minha mãe já se foi embora
já não vem à varanda para a ver cair
já não levanta os olhos da costura: ouves?
Oiço, mãe, é outra vez a chuva,
a chuva sobre o teu rosto.
Eugénio de Andrade
Wednesday 1 October 2014
Não tenho para ti quotidiano
Não tenho para ti quotidiano
mais que a polpa seca ou vento grosso,
ter existido e existir ainda,
querer a mais a mola que tu sejas,
saber que te conheço e vai chegar
a mão rasa de lona para amar.
Não tenho braço livre mais que olhar
para ele, e o que faz que tu não queiras.
Tenho um tremido leito em vala aberta,
olhos maduros, cartas e certezas.
Neste comboio longo, surdo e quente,
vou lá ao fundo, marco o Ocupado.
Penso em ti, meu amor, em qualquer lado.
Batem-me à porta e digo que está gente.
Pedro Tamen
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