Friday 30 December 2011

Inventário


Há os que gravam no vento e sonham
para se iludir apenas. Sonham
que finalmente tudo corre bem,
que uma manhã arrancam os pregos
que os pregam ao muro, que por fim
podem mover as pernas livremente...

Tísicos do sonho tossem imaginação.
Parece que isso os ajuda a passar
a noite, a imaginar o pão barato,
os dentes menos cariados, o almoço
mais rico em calorias.

Há os que não sabem sonhar. Esses
bebem às vezes arsénico, penhoram
o último alento, deixam-se frigir
panados de escórias e amargura.

O ópio grava no vento. Valem
apenas os sonhos que na pedra gravam.


Egito Gonçalves

Tuesday 27 December 2011

O amor, a poesia...


O tempo rola; os vossos rostos crescem
no sulco das lágrimas; vossos longos cabelos
cobrem, na noites difíceis, o nosso frio.

Sopram os ventos na planície, fecundando
hectare a hectare um solo adubado
pelas nossas esperanças.

As pupilas da liberdade boiam em grandes olhos
desmedidos
abertos ao futuro.

Entre a noite e a tempestade
um barco de milagres busca um porto seguro:
um rosto de abrigo.


Egito Gonçalves

Saturday 24 December 2011

A propósito do Natal


Após o bem conhecido episódio da Estrela do Oriente
o colérico Herodes gritou aos seus sicários:
«Matem as crianças;
matem todas as criancinhas!»
Redigiu uma proclamação bilingue: judeu e latim,
e como gostava muito de provérbios, declamou:
«Mais vale prevenir do que remediar!»

Os sicários dispersaram em todas as direcções;
contrataram auxiliares
e sem perda de tempo iniciaram a matança
de que falam os livros da especialidade.

Várias espadas partiram com o uso excessivo;
durante algum tempo os cofres dos armeiros
receberam o sorriso das fortunas.

Apesar disso
nada serviu a Herodes o saber de ofício:
como bem se recordam a Criança escapou.
..........................................................................

Hoje Herodes empregaria armas modernas:
radar, cães-robots, espiões magnéticos,
aviões de pesquisa meteorológica...
E por certo a Criança uma vez mais
cresceria saudável e robusta.

Herodes voltaria a não compreender nada.
Mas estaria seguro de si aos microfones
e os directores de cemitérios enviariam
belas mensagens e flores de parabéns.


Egito Gonçalves

Wednesday 21 December 2011

Variações da política


Foi preso pela Bauxite
interrogado pelo Aço
condenado pelo Petróleo
fuzilado pelo Urânio.

No dia seguinte caíu o governo!

A Bauxite, o Aço, o Petróleo, o Urânio
fuzilaram os fuziladores
e passaram a tomar comboios na direcção oposta.


Egito Gonçalves

Sunday 18 December 2011

Vietnam


Haverá, meu amor, ainda pássaros no céu
entre aviões e aviões,
crianças com o sorriso ao ombro
entre bombas e bombas?

Tão longe,
podes imaginar, amor, desta ponta
da Europa
aquela morgue
onde morremos indefesos,
aquela invasão de bactérias, uma
putrefacção armada,
tentando impor a lei,
a destruição à sua imagem?

Cai a tarde. O vento
anula o peso dos teus pés na areia
mas na tua cabeça
mantém-se a raiva, a pedra
em que ameaças transformar-te
de impotência.
O ódio que marca a tua cinta
é o único remédio. Alimenta-o
em cada colher de sopa se não queres
ser apenas o gato, a rã, o mineral
cibernético
que querem modelar no espaço do teu corpo.


Poderás, sem isso,
imaginar a paz de que precisam
os filhos que te esperam?


Egito Gonçalves

Thursday 15 December 2011

O ponto de vista do espectador


Pensa ele que mereceu
de algum modo a cadeira,
ou pagando ou de borla,
de algum modo adquiriu,
pensa ele, um direito.

Parece-lhe que, sentado,
o que no palco vê apenas
é um espectáculo. Num minuto
sairá, poderá historiar
aquilo que fixou, outros
verão através dele, até
talvez o invejem, afinal
foi ele que viu, sim, foi ele
quem esteve lá.

No entanto não sai, algo
o perturba, um dos actores
aponta, e é para ele,
e é a ele que já levam
de rastos pela coxia,
- que rede o envolveu?,
temia todo o gesto, era
um simples espectador -
estava tão quieto, vai
agora para onde, para
o cárcere, para a morgue,
para o segredo que não é dos deuses...?


Egito Gonçalves

Monday 12 December 2011

Morte no interrogatório


Às três da madrugada eu dormia sem sonhos.
Minha mulher dormia a meu lado. Eu tinha
uma da mãos pousada sobre a sua coxa.

Uma lua de outono brilhava sobre as ruas;
um ar agreste preparava as noites para o inverno.

Às três da madrugada os companheiros
dormiam quase todos. Um deles, porém,
regressava, fatigado, de um trabalho nocturno.

Era a hora dos fogos-fátuos sobre as campas;
a hora em que os exilados buscam o sono em comprimidos.

Às três da madrugada sua mulher ainda velava.
Embrulhada num xaile tinha um livro entre as mãos;
insone, acendera a luz havia meia hora.

Na sala o interrogatório atravessava o tempo;
lâmpadas de mil vátios tornavam a vida irrespirável.

Às três da madrugada o coração fraquejou
e os dois comissários ficaram perante um homem morto
e dois cinzeiros com trinta pontas de cigarros.


Egito Gonçalves

Friday 9 December 2011

De que falo!


Falo das ruas e do amor,
do teu ventre sobre os lençóis,
falo da cidade que amo
onde a conjura amadurece.

Falo dos papéis que se rasgam
na hora do primeiro alarme,
da mão aberta para a esmola
onde germinará a vingança.

Falo do sangue de desejo
que abre em mim quando sorris,
e do carvão e da lareira
onde o combate aquece as mão.

Falo dos motores que já vibram
na expedição contra o anátema
e dos dentes com que mordisco
os intervalos do teu riso.


Egito Gonçalves

Tuesday 6 December 2011

PRIMEIRO RETRATO DO NATURAL


Ela queria perceber o que se passa.
Queria?

Passa a rua às risadas.
«Uscumunistas?»

Gritam flores da jarra.
Estão inocentes?

O telefone terrinta.
É o destino?

Na bandeja de prata, o sedativo.
Por tomar?

Na sala das porcelanas, a senhora.
Por viver.

*

De sentinela à porcelana
está Inês ou Teresa ou Ana
(Maria, deixa-se ver).
Tem à mão uma bengala
para o que der ou vier:
«Se os bolchevistas entrarem,
vão ver, vão ver!
As porcelanas inteiras
é que eles não hão-de ter!»

*

Porcelana implora
Senhora insiste.
Até que a levam prà cama,
pauzinho em riste, zangada.

É uma terrina vazia
que em sonhos se suicida
à bengalada.

Alexandre O'Neill

Saturday 3 December 2011

E onde param os desaparecidos?


E onde param os desaparecidos,
os mortos enterrados sem ritos,
em silêncio, no escuro?

Que madeira tiveram para os seus caixões?
Que rezas amigas, que flores de homenagem?

Onde pára a sua seiva, a fonte de energia
que levou a noite a suprimi-los?

Terão eles a resposta?

É preciso encontrá-los, esses mortos.


Egito Gonçalves

Thursday 1 December 2011

A solução religiosa


Muitos anos bissextos se passaram
em que adoraram o abutre negro
como se fosse do verdadeiros Deus
o seu criado-mudo.

Quando se iluminaram os estuques
do falso altar no qual se prosternavam
fulminou-os o espanto: «Impossível!
Tão longo erro, como acontecera?»

A fé remove cordilheiras. Agora
acreditam possuírem a verdade
e em Seu Nome a terem descoberto.

O passado? Partidas do Diabo!
Esquecem com água benta e «Tarrenegos!»


Egito Gonçalves

Wednesday 30 November 2011

Expulso, e com razão


Eu cresci como filho
de gente abastada. Os meus pais puseram-me
um colarinho ao pescoço e criaram-me
nos costumes de ser servido
e ensinaram-me a arte de mandar. Mas
quando já era crescido e olhei à minha roda,
não me agradou a gente da minha classe,
nem o mandar nem o ser servido.
E eu abandonei a minha classe e juntei-me
à gente pequena.

Assim
criaram eles um traidor, educaram-no
nas suas artes, e ele
atraiçoa-os ao inimigo.

Sim , eu divulgo segredos. Entre o povo
estou eu e explico
como eles enganam, e predigo o que vai vir, pois eu
estou iniciado nos seus planos.
O latim dos seus padres corruptos
traduzo-o palavra a palavra para a língua comum,
e então se descobre que é tudo pantomina.
A balança das sua justiça
tiro-a pra baixo e mostro os pesos falsos.
E os seus informadores vão dizer-lhes
que eu estou com os roubados que conjuram
a revolta.

Admoestaram-me e tiraram-me
o que ganhei com o meu trabalho. E quando eu não melhorei,
deram-me caça, porém
já só havia
escritos em minha casa, que descobriam
os seus conluios contra o povo. E assim
perseguiram-me com um mandato de captura
que me acusava de opiniões baixas, isto é:
de opiniões dos de baixo.

Aonde chego, fico marcado
pra todos os possidentes, mas os que nada têm
lêem o mandato e
dão-me abrigo.
«A ti» - ouço eu dizer -
«Expulsaram-te eles, e
com razão».


Bertold Brecht

Sunday 27 November 2011

Estou mais perto de ti porque te amo


Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
...
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.

Joaquim Pessoa

Thursday 24 November 2011

Edital


Já estão a funcionar os moinhos da morte,
prontos,
oleados,
com motores novos e peças de reserva.

A instrução militar é muito vagarosa
e é urgente inventar um novo método.
Ainda não há soldados bastantes este verão,
é preciso incorporar mais cedo.

Não é possível perder tempo, ouviram!
Os moinhos da morte estão prestes a iniciar a sua tarefa,
os depósitos de bombas estão repletos,
as rampas de lançamento distribuídas pelos pontos estratégicos.
Tudo está a postos para o próximo dia M.

Os soldados, porém, são ainda insuficientes.

É necessário acabar com os cursos de Botânica,
de Arqueologia, Belas-Artes e Direito Civil.

É preciso queimar os escritos de Malthus,
destruir o método de Ogino-Knaus,
fuzilar um ou outro poeta recalcitrante.

Não ouvem as velas dos moinhos cortando a atmosfera
nos últimos, definitivos, ensaios?

É necessário inventar uma gigantesca correia-sem-fim
que produza diariamente milhares de soldados,
que taylorize o exército e bata os recordes de produção.

Sábios, estudantes, estadistas, pais de família,
homens e mulheres de boa vontade,
onde quer que habitem
seja qual for o vosso trabalho,
parem de perder tempo, de tomar chá,
de jogar o xadrez, a canasta, a bisca lambida,
parem de ter ócios, ler jornais, fazer ginástica:
atendam este apelo desesperado;
dediquem-se à solução deste problema.

As Escolas de Guerra vão diminuir de dois anos o seu curso.
Os moinhos estão prontos.

Não querelem,
não discutam a Arte pela Arte,
não frequentem exposições:
transmitam-nos ideias - nada é desaproveitável.
A mais humilde sugestão,
a mais aparentemente inútil,
pode ser a faísca reveladora do Grande Acontecimento.

Na doença ou na saúde,
na febre delirante, no banho quente,
na praia, no consultório médico,
nas salas de espera, na paragem dos eléctricos,
trabalhem sem descanso,
tentem,
contribuam.

Não leiam livros, não ouçam música,
não pintem - É UMA ORDEM.
Trabalhem sem hesitação;
o problema é urgente.


Egito Gonçalves

Monday 21 November 2011

Não canto porque sonho


Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
O teu sorriso puro,
A tua graça animal.

Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
somente um bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinha.

Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
Por vê-los nus e suados.

Eugénio de Andrade

Friday 18 November 2011

Notícias do bloqueio


Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos - contrabando - aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas e granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva

e a esperança reproduz-se.


Egito Gonçalves

Tuesday 15 November 2011

POÉTICA


Quando se nos acabam as palavras,
no momento preciso em que nos fartamos de Saint John Perse
e J.R.J.
(poetas decididamente respeitáveis)
quando vamos olhando as coisas, vivendo entre as coisas
com um amor profundo
e uma melancolia que deve qualificar-se ainda assim de
"profunda sem dúvida",
no instante em que recebemos uma estranha espécie de patada
no peito e as coisas nos correm bem e estamos bem,
quando estamos entre gente e estamos sós,
se estamos sós e todo o mundo está connosco,
se ficamos a olhar um ponto fixo -
há que continuar.
Apesar dos que prefeririam palavras mais tranquilas,
talvez por eles mesmos,
pelo que vale tudo para todos,
pelos que choram e não são ouvidos,
pelo que fazemos juntos, enquanto restem
tantos sofrimentos, tantas decepções -
há que continuar.
Digo: estender o pescoço, cerrar os dentes
e continuar
digam os comemerdas o que quiserem.
Ou para o dizer de uma maneira definitivamente mais clara:
cagar-se na notícia.

Guillermo Rodriguez Rivera

Saturday 12 November 2011

Nova vassalagem


Subitamente os periódicos, a rádio,
propõem virilmente a indignação.

Doloroso é o instante em que a fissura
ameaça a ordem, abala a tradição,
golpeia a calma espessa que sugere
falsamente uma paz.

É preciso de novo, é necessário
confirmar.

Aqui, além, os esteios renem.
Falam do tempo, dos seus vários comércios;
pesam o valor do susto que os ronda.

Redigem o impresso, a anestesia. Assinam
em rigorosa ordem hierárquica.

O telegrama parte.


Egito Gonçalves

Wednesday 9 November 2011

LOUVOR DO REVOLUCIONÁRIO


Quando a opressão aumenta
muitos se desencorajam
Mas a coragem dele cresce.
Ele organiza a luta
pelo tostão do salário, pela água do chá
e pelo poder no Estado.
Pergunta à propriedade:
Donde vens tu?
Pergunta às opiniões:
A quem aproveitais?

Onde quer que todos calem
ali falará ele
e onde reina a opressão e se fala do Destino
ele nomeará os nomes.

Onde se senta à mesa
senta-se a insatisfação à mesa
a comida estraga-se
e reconhece-se que o quarto é acanhado.

Pra onde quer que o expulsem, para lá
vai a revolta, e donde é escorraçado
fica ainda lá o desassossego.


Bertold Brecht

Sunday 6 November 2011

ELOGIO DA DIALÉCTICA


A injustiça avança hoje a passo firme.
Os tiranos fazem planos para dez mil anos.
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são.
Nenhuma voz além da dos que mandam.
E em todos os mercados proclama a exploração:
isto é apenas o meu começo.
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem:
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos.

Quem ainda está vivo nunca diga: nunca.
O que é seguro não é seguro.
As coisas não continuarão a ser como são.
Depois de falarem os dominantes
falarão os dominados.
Quem pois ousa dizer: nunca?
De quem depende que a opressão prossiga? De nós.
De quem depende que ela acabe? Também de nós.
O que é esmagado que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, quem há aí que o retenha?
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.
E nunca, será: ainda hoje.


Bertold Brecht

Thursday 3 November 2011

Quem é o teu inimigo?


Ao que tem fome e te rouba
o último pedaço de pão, chama-lo teu inimigo.
Mas não saltas ao pescoço
do teu ladrão que nunca teve fome.


Bertold Brecht

Tuesday 1 November 2011

Fábula


O lobo foi ter
com a galinha
e disse-lhe:

«Devíamos conhecer-nos
melhor para vivermos
com amor e confiança»

A galinha achou bem
e foi com o lobo.

Foi por isso que as suas
penas ficaram espalhadas
por todo o lado.


Bertold Brecht

Sunday 30 October 2011

(O Sonho é a nossa arma.)


Há quem julgue que nos venceu
só porque estamos para aqui, famintos e nus,
de novo sem terra nem céu,
a apanhar do chão,
às escondidas do luar,
os frutos podres caídos dos ramos.

Mas não.

Temos ainda uma arma de luz
para lutar:
SONHAMOS.

... enquanto os outros, os traidores,
sem lutas nem cicatrizes
entregam a terra ao rasto dos gamos
e douram os olhos dos velhos senhores
com voos de perdizes...

Sim, sonhamos.
o sonho quem o derrota?
- mesmo quando vamos
perdidos na rota
de um barco sem remos
na tempestade de um vulcão.

Sim, camaradas, sonhamos.

Sonhemos!

O Sonho é também acção.


José Gomes Ferreira

Thursday 27 October 2011

ESPERAREMOS CEM ANOS...

(Em frente da estação do Rossio,
quando os ponteiros do relógio
se aproximam da meia-noite.)


Amigos: vai passar mais um ano no relógio luminoso do Rossio.

E a nossa Revolução
cada vez mais sonho frio,
eterna paisagem
de merda sem canos
em que os homens continuam como são
com bocas de granizo
numa repetição de poços de ecos.

Deixá-lo!

Se for preciso
teremos a coragem
de esperar mais cem anos
pela transformação do mundo
no relógio dos Séculos.

(Cem anos que voem nos relógios com asas de um segundo.)


José Gomes Ferreira

Monday 24 October 2011

(Neste Bairro da Ferrugem.)


Neste Bairro da Ferrugem
feito com barrotes podres, tábuas bichosas, canas,
roupa estendida onde fulgem
sóis rotos, toalhas, lenços lavados por lágrimas humanas...

Neste Bairro de barracas-armazéns de dores
em que talvez um dia rebente
a desarmonia
de folhas, asas, raízes, frutos, bichos de flores...

Sim, surgirá enfim o paraíso de outra primeira manhã
de um dia qualquer
de primavera
sem serpente
nem maçã,
ma apenas com um homem e uma mulher
à espera
do mundo final
- em que a miséria
deixe de nos unir num sonho igual.


José Gomes Ferreira

Friday 21 October 2011

Poema

(Quem dirigirá o Socialismo no futuro,
quando o sistema capitalista morrer?
Os proletários ou os pequeno burgueses?
Eis o segredo da luta actual, a madre da traição.)


A televisão
contribuiu muito para a minha educação
nas horas mais ingratas
da contra-revolução.

Ensinou-me sobretudo
a aguçar o gosto de usar gravatas
de seda e de veludo
- para enforcar a imaginação.


José Gomes Ferreira

Tuesday 18 October 2011

DEIXO AO MIGUEL AS COISAS DA MANHÃ


Deixo ao Miguel as coisas da manhã -
a luz (se não estiver já corrompida)
a caminho do sul,
o chão limpo das dunas desertas,
um verso onde os seixos são
de porcelana,
o ardor quase animal
de uma romã aberta.

Eugénio de Andrade

Saturday 15 October 2011

Segunda «Poesia de Parede»


Meu filho, queres saber
porque recusei fazer o papel de paisagem
e não entrei no elenco
da farsa que houve aí de homenagem
a Ievtuchenko?

Primeiro: porque já estou velho para pagem.
Depois, porque quase chorei quando vi
que foram fotografá-lo
debaixo do galo
do S.N.I.

Ah! Ievtuchenko,
que pensarão das tuas fotografias
e desse galo torto
(que tão bem te define)
as raivas do coração fundo
dos presos de Caxias!

E Lenine?

Que pensará o camarada Lenine
que - sabias? -
até depois de morto
fez a revolução no outro mundo?

Conclusão, meu rapaz:
nunca queiras ser cartaz.


José Gomes Ferreira
(1967 - quando da vinda a Portugal do poeta soviético Ievtuchenko)

Wednesday 12 October 2011

Poema

(E subiu ao Trono o primeiro Governo
da Contra-Revolução.)


E agora
que os gigantes do avesso
nos querem transformar em subgente?

Que nos resta? O recomeço
do frio das algemas
e os grilhões desumanos,
para voltar inutilmente
a escrever poemas
recusando-me outra vez a ter mais de vinte anos?

Que fazer agora,
se até o Sonho nos querem roubar?

Exigir talvez
ao sol que, todas as noites dorme na lua e chora
com melancolia,
ouse de súbito acordar
- para que brilhe sempre o Espanto da Haver um Eterno Dia.


José Gomes Ferreira

Sunday 9 October 2011

Poema

(De um entrevista qualquer num jornal
inquiridor: «Mas estarão os comunistas
dispostos a aceitar o princípio da "alternância no poder"?»


«Democracia é alternância»
repetiu de novo a embalar tédio,
um senhor de sono espesso.

Como se fosse possível - ó glória! ó ânsia! -
construir um prédio,
mudando de vez em quando
os mesmos tijolos do avesso.


José Gomes Ferreira

Thursday 6 October 2011

IDENTIFICAÇÃO

Vai a barca do mundo à flor das vagas
no seu mar de tormentas;
Gemem os remadores,
mordidos pelo beijo do chicote;
E tu, poeta, como um sacerdote
da bonança,
a conjurar o mal,
a pregar confiança,
a cantar,
a cantar,
sem nenhum desespero
te desesperar!

Sabe cada ternura a pão azedo,
os acenos são ódios disfarçados;
E os teus versos, gratuitos, desfolhados
sobre as chagas da vida
como pensos sagrados
de beleza calmante e condoída!

Que humanidade tens, irmão?
De onde te vem a força, a decisão,
e esse gosto de nunca desertar?
És o Cristo, talvez...
Um Cristo sem altar
que ficasse a lutar
junto de nós,
tão presente, real e natural,
que podemos ouvir-lhe a própria voz.

Miguel Torga

Monday 3 October 2011

(Carta mental para o filho preso.)


Agora que estás sozinho,
chora com coragem de homem
o teu destino insubmisso,
a ouvir a chuva nas grades,
caída de olhos alheios.

Rumor frio
que tanto aquece os sonhos
e dá à morte
a intimidade adormecida dos seios.


José Gomes Ferreira

Saturday 1 October 2011

(Outro edital.)



Não afoguem o inimigo em lágrimas
embrulhadas em algodão em rama.

Não odeiem
como que ama.


José Gomes Ferreira

Friday 30 September 2011

Poema


(No túnel antes de chegar à estação
de S. Bento, no Porto.)


Ousaram
fechar um homem na treva
promovê-lo ao silêncio
impor-lhe muros de sede.

E agora?

Ei-lo sozinho,
terror de olhos secos
com uma lâmpada de lágrimas no coração
a furar um túnel de névoa na parede.

Ousaram
iluminar a treva com homens.


José Gomes Ferreira

Tuesday 27 September 2011

Poema

(A meu lado na carruagem-restaurante,
um pedante faz muitos gestos para exibir
o brasão do anel.)


Também tenho brasão.
Este:

Em campo agreste,
oculta na bainha,
uma espada
com altivez de cipreste
- a lutar sozinha
contra a morte a fingir de acordada.

(Lema do meu brasão)

Viva a solidão!
que cerra mais e mais
os punhos dos homens
- para terem a ilusão
dos dedos iguais.


José Gomes Ferreira

Saturday 24 September 2011

Poema

(«Ó papoilas da vingança/a nova cor da esperança/é a vossa cor».
A mãe cantava-lhe estes versos.
Entretanto consta que no Baleizão mataram uma camponesa:
Catarina Eufémia.)


Toda a noite cantaste em voz baixa,
para adormecer o menino,
a canção do Graça:
«Ó papoilas dos trigais...»

Canta, canta,
para o acordares mais.

(Transforma-lhe os dedos
em pátrias de punhais.)


José Gomes Ferreira

Wednesday 21 September 2011

O INIMIGO


Grandes olhos frios espiam esta calma
fictícia em que vives. Olhos de inimigo
que chove sobre ti a sua areia,
migalha-te o futuro, cobiça-te os joelhos,
oferece longas jornas de fome, salários
feitos de medo e asco.

Sobre os campos, as fábricas, o inimigo
sopra no teu querer uma paralisia.
Inventa sombras, disfarça a sua imagem;
a linha que o define, fugidia,
em vão a pensarás, em vão teu lápis
tentará aprisionar o seu contorno.

Mas se avanças um passo logo o vês
nesses olhos que tentam fascinar-te.


Egito Gonçalves

Sunday 18 September 2011

Poema

(Ao porco que todo o dia e toda a noite
grunhe em forma de símbolo debaixo
do meu quarto, na casa da senhora Rosinha.)


Eh! vizinho porco
todo o dia de borco
a foçar na terra onde nasceu!
Ensine ao aldeão
a sua lição
de pensar menos no céu
e mais no chão.

(Na terra, camponês,
também há estrelas
que tu não vês...
Mas hás-de vê-las.)


José Gomes Ferreira

Thursday 15 September 2011

(A um morto soviético.)


A ave da morte
cantou numa bala
e o homem tombou
no silêncio de trapos...

Eh! morto: não fiques aí
deitado de costas
à espera que o céu
te caia nos olhos!

Volta-te e olha para a terra
- a carne da tua sombra
de flores acesa.

Céu para quê?

O céu é para os que esperam
e tu morreste por uma certeza.


José Gomes Ferreira

Monday 12 September 2011

Poema

(À Eterna Criança que me persegue a pedir esmola.
Grito de cólera.)


Ouve, Não-sei-quem:

recuso-me a viver
num mundo assim de lua podre
disfarçado de flores
com repetições de esqueletos
e a Eterna Voz Faminta
aqui na minha frente
- pálida de existir!

Ouve, Não-sei-quem:

e se, depois de tudo isto,
ainda há céu e inferno
ou outra sombra intermédia,
recuso-me terminantemente a morrer
e a entrar nessa comédia!


José Gomes Ferreira

Friday 9 September 2011

Poema

(Um jovem comunista, recém-saído da cadeia,
procurou-me para me dizer: «vou para Espanha
bater-me ao lado dos republicanos».)


Adeus!

Tu que arrancaste da treva dos dias e das noites
o sol subterrâneo das flores ocultas nas raízes.
Tu que nunca viste o luar completar os olhos das mulheres
- e a tua mãe só te beijava em fotografia.

Tu que vais morrer pelos outros com vinte anos de desdém ardente
e o futuro nunca saberá o teu nome para maior glória.
Tu que vais conhecer finalmente a verdadeira morte: a nossa.
Não a vida covarde atirada para as nuvens,
mas sombra sem frestas,
frio sem portas...

Tu: adeus!

Morre orgulhosamente
o teu destino de relâmpago
que afoga nos abismos
o eco longo
do silêncio das águias.


José Gomes Ferreira

Tuesday 6 September 2011

Uma certa maneira de cantar


Nunca ouvi um alentejano cantar sozinho
com egoísmo de fonte.

Quando sente voos na garganta
desce ao caminho
da solidão do monte
e canta
em coro com a família do vizinho.

Não me parece pois necessária
outra razão
- ou desejo
de arrancar o sol do chão -
para explicar
a reforma agrária
no Alentejo.

É apenas uma certa maneira de cantar.


José Gomes Ferreira

Saturday 3 September 2011

Poema

(UM MOMENTO DE FILOSOFIA BARATA)

Para além do «ser ou não ser» dos problemas ocos,
o que importa é isto:
- Penso nos outros.
Logo existo.



(ARTE POÉTICA)

Liberdade
é também vontade.

Benditas roseiras
que em vez de rosas
dão nuvens e bandeiras.


(XLII)

E se eu se súbito gritasse
nesta voz de lágrimas sem face:

Eh! companheiros da plataforma
presos ao apagar do mesmo pavio!
Porque não nos amamos uns aos outros
e damos as mãos
- sim, as nossas mãos
onde apodrecem aranhas de bafio?

Eh! companheiros da plataforma!
(Não empurrem, Irmãos.)


José Gomes Ferreira
(três poemas de Eléctrico)

Thursday 1 September 2011

Bandeirinhas


Parei a olhar o mapa da guerra; tinham-no afixado
na frontaria dos escritórios do jornal.
Bandeirinhas - vermelhas e amarelas bandeirinhas,
azuis e pretas bandeirinhas - são deslocadas para trás
e para diante sobre o mapa.
Um rapaz sorridente, cheio de sardas,
sobe a escada, atira uma piada
a alguém que está entre a multidão,
depois espeta uma bandeirinha amarela
uma polegada para oeste
e atrás da amarela espeta uma preta, uma polegada para oeste.

(Dez mil rapazes contorcem-se num lago de sangue
à margem de um rio,
feridos, em convulsões, implorando água,
alguns já no estertor da morte).

Quem perguntará a si mesmo
quanto custou deslocar uma polegada
duas bandeirinhas aqui, no mapa da guerra,
na frontaria do jornal,
onde um jovem sardento nos sorri?


Carl Sandburg

Tuesday 30 August 2011

Canção burguesa

Consolo e delícia
da vida burguesa...

Sete horas em ponto
o jantar na mesa;
café bem quentinho,
conversa tranquila,
e um lençol de linho
esperando o seu dono
para um belo sono...
(Que bom não ter sonhos,
dormir sossegado!)
Já estou acordado,
já salto da cama,
- Maria, Maria,
traga os meus chinelos,
traga o meu pijama...
A alma lavada,
o corpo limpinho,
- Bom dia, vizinha!
- Bom dia, vizinho!

Consolo e delícia
da vida burguesa...
Se isto continua,
morro, com certeza!


Raul de Carvalho

Saturday 27 August 2011

Amostra sem valor


Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível;
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosas da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.


António Gedeão

Wednesday 24 August 2011

Acenda-se na noite...


Acenda-se na noite o facho silencioso.
Enquanto sobre a terra impere a iniquidade,
ninguém poderá ser inteiramente livre.


Armindo Rodrigues

Sunday 21 August 2011

No fim


Quando terminarmos à dentada
esta tão longa, salitrosa noite,
os sorrisos descerão nos rios,
darão flor na oliveira as lágrimas.

Quando se firmem as águas movediças
a alegria cunhará moeda;
vozes longínquas abrirão janelas;
estaremos vestidos sob o céu.


Egito Gonçalves

Thursday 18 August 2011

Retrato de Catarina Eufémia


Da medonha saudade da medusa
que medeia entre nós e o passado
dessa palavra polvo da recusa
de um povo desgraçado.

Da palavra saudade a mais bonita
a mais prenha de pranto a mais novelo
da língua portuguesa fiz a fita encarnada
que ponho no cabelo.

Trança de trigo roxo
Catarina morrendo alpendurada
do alto de uma foice.
Soror Saudade Viva assassinada
pelas balas do sol
na culatra da noite.

Meu amor. Minha espiga. Meu herói.
Meu homem. Meu rapaz. Minha mulher
de corpo inteiro como ninguém foi
de pedra e alma como ninguém quer.


José Carlos Ary dos Santos

Monday 15 August 2011

Instruções para os superiores


No dia em que o soldado desconhecido morto na guerra
foi enterrado com salvas de canhão,
de Londres a Singapura parou
ao meio dia ao mesmo tempo,
das doze horas e dois às doze horas e quatro,
durante dois minutos completos,
todo o trabalho,
só com o fim de honrar o
Soldado Desconhecido Morto na Guerra.

Mas, apesar disso tudo, talvez
se devesse ordenar
que ao Trabalhador Desconhecido
das grandes cidades dos Continentes povoados
se prestassem também honras finalmente.
Um homem qualquer da rede do tráfico,
cuja face não fora notada,
cujo ser secreto passara despercebido,
cujo nome não fora ouvido distintamente,
um tal homem devia,
no interesse de todos nós,
ser contemplado com honras de excepção,
com uma alocução na rádio
«Ao Trabalhador Desconhecido»
e
com um pausa no trabalho de todos os homens
por todo o Planeta.


Bertold Brecht

Friday 12 August 2011

Cantiga do ódio


O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração,
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
Ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
Que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?


Carlos de Oliveira

Tuesday 9 August 2011

ORGIA

Foi uma festa de truz.
Música, alegria, cor.
Cada vestido era luz
de riqueza, de esplendor.

Vendo tantos risos nobres
numa pergunta me fico:
Quantos milhares de pobres
nos custará este rico?

Mário Castrim

Saturday 6 August 2011

A bomba



O primeiro sopro arrancou-lhe a roupa;
o imediato levou também a carne.
Ao longo da rua
durante alguns segundos correu o esqueleto.
Mas a rua já não estava,
estava toda no ar;
de lá caíam bocados de prédios, bocados
de crianças, restos de cadilaques...
O esqueleto não compreendia sozinho
aquela situação:
deixou-se tombar sobre algumas pedras radioactivas
e permitiu na queda o extravio de alguns ossos.

(Caso curioso: o coração
pulsou ainda três ou quatro vezes
entre o gradeamento das costelas.)


Egito Gonçalves

Wednesday 3 August 2011

(SERENATA CÍNICA PARA O BETTENCOURT CANTAR)


Menino que vais na rua,
não cantes nem chores: berra!
Cospe no chão e na lua
e aprende a pisar a terra.

Aprende a pisar o mundo,
deixa a lua aos violinos
dos olhos dos vagabundos
e dos poetas caninos.

Aprende a pisar a vida.
Deixa a lua às costureiras
- pobre moeda caída
de quem não tem algibeiras.

Aprende a pisar no chão
o silêncio do luar
sem sentir no coração
outras pedras a gritar.

Pisa a lua sem remorsos,
estatelada no solo...
Não hesites! Quebra os ossos
dessa criança de colo.

Pisa-a, frio, com coragem,
sem olhos de serenata:
que isso que vês na paisagem
não é ouro nem é prata.

Menino que vais na rua,
não chores, nem cantes: berra!
ou, então, salta prá lua
e mija de lá na terra.


José Gomes Ferreira

Monday 1 August 2011

Um conto de inverno


Amigos, quero compor para vós uma canção,
uma canção nova, uma canção melhor!
Queremos instaurar aqui na terra,
agora mesmo, o reino dos céus.

Queremos ser felizes nesta terra,
aqui queremos derrotar a fome
e que o ventre preguiçoso não devore
o que mãos trabalhadoras produziram.

Cresce, aqui em baixo, pão que chega
para os filhos dos homens
e ainda há rosas e mirtos,
beleza, alegria e ervilha-de-cheiro.

Sim, ervilhas-de-cheiro para todos.
Logo ao abrir das vagens!
O céu, não o queremos para nada,
fiquem com ele os anjos e os pardais.


Heinrich Heine

Saturday 30 July 2011

Palavras


Queria chamar-te tanta coisa bela

pássaro, fogo, vento, caravela
terra, semente, pão

Chamar-te amigo
e inventar as palavras que não digo
com medo de as dizer sem ter razão.


Maria Eugénia Cunhal

Wednesday 27 July 2011

O mastro de Maio dos trabalhadores

Trabalhadores de todo o mundo, seja qual for
o vosso trabalho, suspendei-o neste dia:
deixai para trás as nuvens de inverno,
avançai ao sol com alegria.

Agora que de novo a verde terra rejubila
nos rebentos e nas flores de Maio
levantai os corações e a voz
na alegria universal do Dia do Trabalho.

Desfraldai bandeiras de terras longínquas
com a mesma mensagem de luta e esperança:
levantai o mastro de Maio e as suas grinaldas
que a vossa causa envolve na causa de todos.

Em cada faixa que esvoaça está escrito
o doce alvoroço do coração da liberdade
por distantes que estejam a coroa e o prémio
cada um com todos os outros os há-de alcançar.

A vossa causa é a esperança do mundo
a vossa luta é a vida do homem,
a Liberdade, bandeira desfraldada dos trabalhadores,
é um véu na luminosa face do futuro.

Sejais vós muitos ou poucos, reunidos,
que seja clara a vossa mensagem neste dia;
sejamos pássaros da primavera, mesmo com uma só pena,
cantemos o Primeiro de Maio.

Uma vida nova está ainda oculta,
mas projecta-se já a sua sombra;
um novo renascer da esperança seguramente
aí vem, como o mar chega à praia.

Fincai pé, trabalhadores, com firmeza,
fortes e unidos, puxai em conjunto:
juntai as mãos numa cadeia ao redor do mundo
se quereis realizar a vossa esperança.

Quando os Trabalhadores do Mundo, irmãos e irmãs,
construírem, no tempo novo que aí vem,
a casa comum para si próprios,
então, será sua a terra inteira.


Walter Crane
(Inglaterra, 1845-1915)

Sunday 24 July 2011

Para Bellum


Protestos, livros, poemas, sacrifícios,
a história analisada e desmascarada: a paz
e não a guerra desde sempre a guerra.
É velho tudo isto. Há malandros
para ganhar com as guerras, há patriotas
para mandar os outros morrer nelas, há
heróis ou não heróis que morrem nelas,
há multidões para serem massacradas.
Eu protesto, tu protestas, ele protesta, etc.
E nada muda, ou muda para mais.
Antigamente, os faraós ao contar os mortos inimigos
(nunca os próprios mortos) exageravam - evidente.
Hoje, os comunicados cometem sempre esse exagero
(e a mesma distracção discreta). Mas há sempre
humanidade com vocação para matar e multidões
com vocação vacum para cadáver.
E neste cheiro a podre milenário - vale a pena
sequer dizer que são filhos da puta?


Jorge de Sena

Thursday 21 July 2011

ÀS RUAS NO PRIMEIRO DE MAIO


Às ruas no Primeiro de Maio!
A rugir nas Praças!
Tremam torres no centro da cidade!
Estilhace-se a atmosfera da Baixa!
Vinde com uma tempestade de bandeiras,
vinde com a passada de um terramoto,
Sinos, abandonai o campanário,
Bandeira vermelha, salta fora do teu vermelho!
Para fora das oficinas e das fábricas,
levantai a foice e o martelo,
Camaradas, são estas as nossas ferramentas:
uma canção e uma bandeira!
Canção, ondula no mar dos nossos corações,
Bandeira, salta e liberta-te;
Canção e Bandeira unidas.
Abaixo a burguesia!
Varram a grande cidade, avante!
Este dia é uma barricada;
Lancemos a brilhante bomba do sol,
e a lua como uma granada de mão.
Derramai-vos com uma segunda inundação!
Trovejai, montanhas do ar!
Milhares dos nossos rugem no metropolitano -
Camaradas, todos à praça!


Alfred Hayes
(Inglaterra, 1857-1936)

Monday 18 July 2011

Destino


A ser cão,
antes vagabundo
sem pão,
passadas firmadas,
lés a lés,
no mundo
a meus pés.


Carlos Aboim Inglez

Friday 15 July 2011

Esta gente / Essa gente


O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente

Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unhas e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente


Ana Hatherly

Tuesday 12 July 2011

Contratados


Longa fila de carregadores
domina a estrada
com os passos rápidos

Sobre o dorso
levam pesadas cargas

Vão
olhares longínquos
corações medrosos
braços fortes
sorrisos profundos como águas profundas

Largos meses os separam dos seus
e vão cheios de saudades
e de receio
mas cantam

Fatigados
esgotados de trabalhos
mas cantam

Cheios de injustiças
caladas no imo das suas almas
e cantam

Com gritos de protesto
mergulhados nas lágrimas do coração
e cantam

Lá vão
perdem-se na distância
na distância se perdem os seus cantos tristes

Ah!
eles cantam...


Agostinho Neto

Saturday 9 July 2011

A Elionor


A Elionor tinha
catorze anos e três horas
quando começou a trabalhar.
Estas coisas ficam
registadas para sempre no sangue.
Ainda usava tranças
e dizia: «sim, senhor» e «boas tardes».
As pessoas gostavam dela,
da Elionor, tão meiga,
e ela cantava enquanto
fazia correr a vassoura.
Os anos, porém, dentro da fábrica,
diluem-se no opaco
griséu das janelas,
e ao fim de pouco a Elionor não teria
sabido dizer donde lhe vinha
a vontade de chorar,
nem aquele irreprimível
aperto de solidão.
As mulheres diziam que aquilo
era porque estava a crescer e que aqueles males
se curavam com marido e filhos.
A Elionor, de acordo com a mui sábia
predição das mulheres,
cresceu, casou-se e teve filhos.
O mais velho, que era uma rapariga,
só havia três horas
fizera os catorze anos
quando começou a trabalhar.
Ainda usava tranças
e dizia: «sim, senhor» e «boas tardes».


Miquel Marti I Pol

Wednesday 6 July 2011

Canção dos que vivem das suas mãos


Não peço o de ninguém.
Apenas o meu pão,
meu ar.

Apenas a flor,
o fruto do que fazem minhas mãos.


Jesus Lopez Pacheco

Sunday 3 July 2011

Os grandes amigos


São como as árvores
de grande porte.
Quando elas partem
as raízes ficam
aquém da morte.


Luís Veiga Leitão

Friday 1 July 2011

(A «INTERNACIONAL»)


Acabou o comício.
E, como de costume,
no final,
todos de braço dado cantámos
o embalar de lume
da «Internacional»...

... esse hino
que um marceneiro
compôs durante a sua guerra
pelo Destino
de operário verdadeiro
- melodia
arrancada certo dia
da raiz de uma flor
no coração da Terra.

(Da Terra futura
sem amos,
mas só com amor.)

Entretanto cantamos.


José Gomes Ferreira

Thursday 30 June 2011

Ana e António


A Ana e o António trabalhavam
na mesma empresa.
Agora foram ambos despedidos.
Lá em casa, o silêncio sentou-se
em todas as cadeiras
em volta da mesa vazia.

«Neo-Realismo!», dirão os estetas
para quem ser despedido
é o preço do progresso.

Os estetas, esses, nunca
serão despedidos.

Ou julgam isso, ou julgam isso.


Mário Castrim

Monday 27 June 2011

O PONTO DE VISTA DO ESPECTADOR


Pensa ele que mereceu
de algum modo a cadeira,
ou pagando ou de borla,
de algum modo adquiriu,
pensa ele, um direito.

Parece-lhe que, sentado,
o que no palco vê apenas
é espectáculo. Num minuto
sairá, poderá historiar
aquilo que fixou, outros
verão através dele, até
talvez o invejem, afinal
foi ele que viu, sim, foi ele
quem esteve lá.

No entanto não sai, algo
o perturba, um dos actores
aponta, e é para ele,
é a ele que já levam pela coxia,
- que rede o envolveu?,
temia todo o gesto, era
um simples espectador -
estava tão quieto, vai
agora para onde, para
o cárcere, para a morgue,
para o segredo que não é
dos deuses...?


Egito Gonçalves

Friday 24 June 2011

O primeiro astronauta


O primeiro astronauta
devia ter sido
Silvestre José Nhampose

Só ele
teria sacudido os pés
à entrada da Lua

Só ele
teria pedido
com suave delicadeza:
- dá licença?


Mia Couto

Tuesday 21 June 2011

ROMANCE DE SINHÁ CARLOTA


Na beira do caminho
sinhá Carlota
está pitando no seu cachimbo.

Um círculo da cuspo
a seu lado...

Veio do sul
numa leva de contratados.
Teve filhos negros
que trocam hoje o peixe
por cachaça.

Teve filhos mestiços.
Uns
forros de a. b. c.
perdidos em rixas de navalhas.
Outros foram no norte
com seus pais brancos
e o seu coração
já não lembra o rostinho deles!

Sinhá Carlota
veio há muito do sul
numa leva de contratados.

Assim
embora pra seu branco
o seu corpo não baila mais no sòcòpé
ele ao passar
fica sempre dizendo:
sàbuá?

Sinhá Carlota
nos seus olhos cansados e vermelhos
solta um achô distante
enquanto vai pitando
no seu cachimbo carcomido...

Francisco José Tenreiro

Saturday 18 June 2011

Cela 1


Aqui estou neurasténico
como um cão
danado a lamber a salgada
crosta das velhas feridas.

E em que língua
e com que rosto
aos meus filhos órfãos de pai
eu vou dizer que se esqueçam?


José Craveirinha

Wednesday 15 June 2011

Marcha


Lá vem o cortejo
pela rua fora
tocando os seus gritos
de que está na hora.
Estremecem vidraças
tremem os portões
na casa da praça
e a velha transida
com medo da morte
por medo da vida
lá vai aos baldões
estreitar-se ao pescoço
do seu cão de caça.

Vêm baionetas
correndo em tropel
mais metralhadoras
gargalhando triste
e tinta a granel
de mangueira em riste.
Lá vêm a passo
os lacrimogéneos
os arquimausgénios
capacetes de aço.
Lá vêm em bicha
defender vidraças
defender portões
defender a praça
defender a velha
defender o cão
defender a caça.

E viva o poeta
que tem tanta graça.


Francisco Viana

Sunday 12 June 2011

NATAL


Hoje é dia de Natal.
O jornal fala dos pobres
em letras grandes e pretas,
traz versos e historietas
e desenhos bonitinhos,
e traz retratos também
dos bodos, bodos e bodos,
em casa de gente bem.

Hoje é dia de Natal.

- Mas quando será de todos?


Sidónio Muralha

Thursday 9 June 2011

Canção de guerra


Aos fracos e aos covardes
não lhes darei lugar
dentro dos meus poema.
Covarde já eu sou.
Fraco, já o sou demais,
e se entre fracos for
me perderei também.

Quero é gente animosa
que olhe de frente a Vida,
que faça medo à Morte.
Com esses quero ir,
a ver se me convenço
de que também sou forte.
Quero vencer os medos...
Vencer-me - que sou poço
de estúpidos terrores,
de feminis fraquezas.
Rir-me das sombras, rir-me
das velhas ondas bravas,
rir-me do meu temor
do que há-de acontecer.

Venham comigo os fortes...
Façam-me ter vergonha
das minhas cobardias.
E de seus actos façam
(seus actos destemidos)
chicotes prós meus nervos.
Ganhe o meu sangue a cor
das tardes das batalhas.
E eu vá - rasgue as cortinas
que velam o Porvir.
Vá - jovem e confiado,
cumprindo o meu destino
de não ficar parado.


Sebastião da Gama

Monday 6 June 2011

Balada del que nunca fué a Granada


¡Qué lejos por mares, campos y montañas!
Ya otros soles miran mi cabeza cana.
Nunca fui a Granada.

Mi cabeza cana, los años perdidos.
Quiero hallar los viejos, borrados caminos.
Nunca vi Granada.


Dádle un ramo verde de luz a mi mano.
Una rienda corta y un galope largo.
Nunca entré en Granada.

¿Qué gente enemiga puebla sus adarves?
¿Quién los claros ecos libres de sus aires?
Nunca fui a Granada.

¿Quién hoy sus jardines aprisiona y pone
Cadenas al habla de sus surtidores?
Nunca vi Granada.

Venid los que nunca fuisteis a Granada.
Hay sangre caída, sangre que me llama.
Nunca entré en Granada.

Hay sangre caída del mejor hermano.
Sangre por los mirtos y aguas de los patios.
Nunca fui a Granada.

Del mejor amigo, por los arrayanes.
Sangre por el Darro, por el Genil sangre.
Nunca vi Granada.

Si altas son las torres, el valor es alto.
Venid por montañas, por mares y campos.
Entraré en Granada.


Rafael Albertí

Friday 3 June 2011

Solidariedade


Vamos, dêem as mãos.

Porquê esse ar de desconfiança?
esse medo, essa raiva?
Porquê essa imensa barreira
entre o EU e o NÓS na natural conjugação do verbo ser?

Vamos, dêem as mãos.

Para quê esses bons-dias, boas-noites,
se é um grunhido apenas e não uma saudação?
Para quê esse sorriso
se é um simples contrair de pele e nada mais?

Vamos, dêem as mãos.

Já que a nossa amargura é a mesma amargura,
já que a miséria para nós tem as mesmas sete letras,
já que o sangrar dos nossos corpos é o vergão da mesma chicotada,
fiquemos juntos,
sejamos juntos.

Porquê esse ar de eterna desconfiança?
esse medo, essa raiva?

Vamos, dêem as mãos.


Mário Dionísio

Wednesday 1 June 2011

ADVENTO

Deixa descer à Terra o espírito do céu!
Deixa encarnar o que desencarnou!
Porque a folha tremeu,
é que a brisa passou...

Só com raízes se alimenta a vida.
Só do chão se levanta o pensamento.
Só a dor que é sentida
resgata o sofrimento.

Todo o sonho que paira quer pousar.
Deixa pousar a pomba imaculada,
que já daqui partiu, imaginada,
e teima em regressar.

Miguel Torga

Monday 30 May 2011

Itinerário


Os milhares de anos que passaram viram
a nossa escravidão.

NÓS carregámos as pedras das pirâmides,
o chicote estalou,
abriu rios de sangue no nosso dorso.
NÓS empunhámos nas galés dos césares
os abomináveis remos
e o chicote estalou de novo na nossa pele.
A terra que há milhares de anos arroteámos
não é nossa,
e só NÓS a fecundamos!
E quem abriu as artérias? quem rasgou os pés?
quem sofreu as guerras? quem apodreceu ao abandono?

E quem cerrou os dentes, quem cerrou os dentes
e esperou?

Spartacus voltará: milhões de Spartacus!

Os anos que aí vêm hão-de ver
a nossa libertação.


Papiniano Carlos

Friday 27 May 2011

Poema

(De uma entrevista qualquer num jornal inquiridor: «Mas estarão os comunistas dispostos a aceitar o princípio da "alternância" no poder?»)



«Democracia é alternância»
repetiu de novo a embalar o tédio,
um senhor de sonho espesso.

Como se fosse possível - ó glória! ó ânsia! -
construir um prédio,
mudando de vez em quando
os mesmos tijolos do avesso.


José Gomes Ferreira

Tuesday 24 May 2011

D. QUIXOTE


O cavaleiro da eterna juventude
ao atingir os cinquenta foi atrás
da razão que batia no seu coração.
Uma bela manhã de Julho partiu
à conquista da beleza, da verdade e da justiça.
Diante dele estava o mundo
com os seus gigantes absurdos e abjectos
e por baixo o Rocinante
triste e heróico.

Bem o sei,
uma vez que essa paixão se apodere de nós
e se tenha um coração de um peso respeitável
não há nada a fazer, meu D. Quixote, nada a fazer.
Há que enfrentar os moinhos de vento.

Tens razão,
Dulcineia é a mulher mais bela do mundo.
Claro que era preciso lançar tudo isto
à cara dos pequenos comerciantes de ninharias.
Claro que eles iam atirar-se a ti
e moer-te de pancadaria.
Mas tu és o invencível cavaleiro da sede.
Tu continuarás a viver como uma chama
dentro da pesada armadura de ferro.
E Dulcineia será cada dia mais bela.

Nazim Hikmet

Saturday 21 May 2011

A ARREPENDIDA


Padre:
há quinze dias que não durmo com ninguém.

Acuso-me
de não ter ganho a vida com as mãos,
de ter tido desnecessários luxos
e três maridos, Padre,
... eram maridos de outras mulheres.

Podia ter tido muitos filhos.
Não quero voltar a fazê-lo;
vou retirar-me do ofício.
Pode recomendar-me a algum reformatório?
Vocês têm sempre boas influências.
Não vou à missa
e como carne. Sempre.
Socorro as criadas e aos pobres do bairro
nunca lhes cobro grande coisa.

Também quero dizer-lhe
que sou muito infeliz.

Glória Fuertes

Wednesday 18 May 2011

Joeira!


Até quando te calarás, povo?
Até quando te quedarás irresoluto?
Até quando te verei receoso?
Até quando serás ingénuo?
Até quando escutarás
os pregadores
que exploram
a tua inefável candura?

Mestres e guias infalíveis...?
Há-os de voz potente
e de botas ferradas;
há-os mais suaves,
até angélicos
e muito sábios...
Há os que usam, com palavras demasiado escolhidas,
a tua língua.

Joeira, povo,
com uma peneira finíssima
e esfrega a pele
nos cardos que te rodeiam
até que a dor se torne insuportável,
até sentires a dor soar
como um clarim de combate.


Félix Cucurull

Sunday 15 May 2011

Fidelidade


Creio no homem. Já vi
costas rasgadas a golpes de chicote,
almas cegas avançando aos arrancos
(Espanhas a cavalo
da dor e da fome). E acreditei.

Creio na paz. Já vi
altas estrelas, incendiadas regiões
amanhecendo, rios ardentes
e profundos, caudal humano
para outra luz: Vi e acreditei.

Creio em ti, pátria. Digo
o que vi: relâmpagos
de raiva, amor falado e uma faca
rangendo, fazendo-se em pedaços
de pão: se bem que haja hoje apenas trevas
eu vi e acreditei.


Blas de Otero

Thursday 12 May 2011

Grito Negro


Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.

Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder, sim
e queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão
até não ser mais a tua mina, patrão.

Eu sou carvão!
Tenho que arder
queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu serei o teu carvão, patrão!


José Craveirinha

Monday 9 May 2011

1936


Lembra-o tu e lembra-o aos outros,
quando enojados da baixeza humana,
quando furiosos pela dureza humana:
Este homem único, este acto único, esta fé única.
Lembra-o tu e lembra-o aos outros.

Em 1961, numa cidade estranha,
mais de um quarto de século
depois. Vulgar a circunstância,
obrigado tu a uma leitura pública,
por causa dela conversaste com esse homem:
Um antigo soldado
na Brigada Lincoln.

Há vinte e cinco anos, este homem,
sem conhecer a tua terra, para ele distante
e estranha, resolveu ir para lá
e nela, se chegasse o momento, decidiu apostar a sua vida,
julgando que a causa que lá estava em jogo
então, digna era
de lutar pela fé que enchia a sua vida.

Que essa causa pareça perdida,
nada importa;
que tantos outros, pretendendo crer nela,
apenas trataram de si mesmos,
importa menos.
O que importa e nos basta é a fé de alguém.

Por isso outra vez hoje a causa te parece
como naqueles dias:
Nobre e tão digna de lutar por ela.
E a sua fé, aquela fé, ele a manteve
através dos anos, da derrota,
quando tudo parece atraiçoá-la.
Mas essa fé, a ti mesmo dizes, é o que somente importa.

Obrigado, Companheiro, obrigado
pelo exemplo. Obrigado por me dizeres
que o homem é nobre.
Nada importa que tão poucos o sejam:
Um homem, um só, basta
como testemunho irrefutável
de toda a natureza humana.


Luís Cernuda

Friday 6 May 2011

Balada daquele que cantou na tortura


E se houvesse que voltar
atrás eu voltaria
Uma voz sobe dos ferros
e fala de um outro dia

Dizem que na sua cela
dois homens tinham entrado
Sussurravam: Capitula
vê-se que estás cansado

Podes viver a vida
acata os nossos conselhos
diz a palavra que livra
e viverás de joelhos

E se houvesse que voltar
atrás eu voltaria
A voz que sobe dos ferros
fala já para o novo dia

Só uma palavra e a porta
abre-se logo e tu sais
Assim o carrasco exorta
sésamo: Não sofras mais

Uma palavra só mentira
o teu destino retém
na doçura das manhãs
pensa pensa pensa bem

E se houvesses que voltar
atrás eu queria ir
A voz que sobe dos ferros
fala aos homens do porvir


Aragon

Tuesday 3 May 2011

NA FÁBRICA ONDE EU TRABALHAVA


Na fábrica onde eu trabalhava havia muito frio
mas os meus camaradas sorriam e contávamos histórias
uns aos outros
de vez em quando encandeávamo-nos e esfregávamos os olhos
depois olhávamos admirados a perfeição da soldadura

medíamos dobrávamos batíamos o ferro
e era como se pouco a pouco algo dentro de nós se construísse
tínhamos ali as nossas entranhas e o nosso jardim

e aquilo era como a nossa horta ou a nossa casa à hora do almoço

José Vultos Sequeira

Sunday 1 May 2011

O NOVO MANDAMENTO


Está criado
o novo mandamento. Aos pássaros
dirás: não cantareis; às flores,
não florireis. E florirão
as bombas. E morrerão
as pombas. E ao sangue
dirás: rio
serás. E sobre
os escombros erguerás
o homem novo, o seu cadáver, desenharás
a ferro e fogo o mapa
do luto e das lágrimas. E imporás,
enfim,
a liberdade. A liberdade
do terror e das armas. A liberdade
para matar.


Albano Martins

Saturday 30 April 2011

Massa


No final da batalha,
e morto o combatente, aproximou-se dele um homem
e disse-lhe: «Não morras, amo-te tanto!
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Aproximaram-se dele dois e repetiram-lhe:
«Não nos deixes! Coragem! Volta à vida!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Acudiram-lhe vinte, cem, mil, quinhentos mil,
clamando: «Tanto amor, e não poder nada contra a morte!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Milhões de indivíduos o rodearam,
num pedido comum: «Não nos deixes, irmão!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Então, todos os homens que há na terra
o rodearam; viu-os o cadáver, triste, emocionado;
soergueu-se lentamente,
abraçou o primeiro homem. E começou a andar...


César Vallejo

Wednesday 27 April 2011

MÁQUINA DO MUNDO


O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto é a matéria.

Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.

António Gedeão

Sunday 24 April 2011

PAZ



De todas as pombas houve uma que partiu pelo mundo.
Ainda
continua a girar à volta do sol
ao compasso da terra.
Voo sem dono, sempre ameaçado.
Voltará alguma vez
ao velho pombal donde saiu um dia?


Rafael Alberti

Thursday 21 April 2011

A Federico García Lorca


Sal tú, bebiendo campos y ciudades,
en largo ciervo de agua convertido,
hacia el mar de las albas claridades,
del martín-pescador mecido nido;


que yo saldré a esperarte, amortecido,
hecho junco, a las altas soledades,
herido por el aire y requerido
por tu voz, sola entre las tempestades.

Deja que escriba, débil junco frío,
mi nombre en esas aguas corredoras,
que el viento llama, solitario, río.

Disuelto ya en tu nieve el nombre mío,
vuélvete a tus montañas trepadoras,
ciervo de espuma, rey del monterío.


Rafael Albertí

Monday 18 April 2011

OFÍCIO DE TREVAS


(Poema XXIV)


É preciso que tragam a bandeira
É preciso que alguém vá até ao fim da noite
e desenterre a bandeira
Se já não tiver mãos
que rasgue a terra com os dentes
mas que traga a bandeira
Se já não tiver dentes
que afunde os olhos nessa terra
e lhe arranque a bandeira
que nela está sepulta
É preciso que os tambores anunciem a chegada da bandeira

Se não houver tambores
que os mortos se alevantem
e façam rufar seus ossos
em sol altíssimo à chegada da bandeira

Iluminem, Iluminem, Iluminem o caminho da bandeira
Se as nuvens de baionetas forem trevas no caminho da bandeira
que incendeiem a noite com as pedras da rua
mas que haja luz à passagem da bandeira
para que os olhos vazados vejam a bandeira
para que as bocas rasgadas cantem a bandeira
para que os ferros caiam à passagem da bandeira.


Carlos Maria de Araújo

Friday 15 April 2011

E CADA VEZ SOMOS MAIS



Pela espora da opressão
pela carne maltratada
mantendo no coração
a esperança conquistada.
Por tanta sede de pão
que a água ficou vidrada
nos nossos olhos que estão
virados à madrugada.
Por sermos nós o Partido
Comunista e Português
por isso é que faz sentido
sermos mais de cada vez.

Por estarmos sempre onde está
o povo trabalhador
pela diferença que há
entre o ódio e o amor.
Pela certeza que dá
o ferro que malha a dor
pelo aço da palavra
fúria fogo força flor
por este arado que lavra
um campo muito maior.
Por sermos nós a cantar
e a lutar em português
é que podemos gritar:
Somos mais de cada vez.

Por nós trazermos a boca
colada aos lábios do trigo
e por nunca acharmos pouca
a grande palavra amigo
é que a coragem nos toca
mesmo no auge do perigo
até que a voz fique rouca
e destrua o inimigo.
Por sermos nós a diferença
que torna os homens iguais
é que não há quem nos vença
cada vez seremos mais.

Por sermos nós a entrega
a mão que aperta outra mão
a ternura que nos chega
para parir um irmão.
Por sermos nós quem renega
o horror da solidão
por sermos nós quem se apega
ao suor do nosso chão
por sermos nós quem não cega
e vê mais clara a razão
é que somos o Partido
Comunista e Português
aonde só faz sentido
sermos mais de cada vez.

Quantos somos? Como somos?
novos e velhos: iguais
Sendo o que nós sempre fomos
seremos cada vez mais!


José Carlos Ary dos Santos

Tuesday 12 April 2011

AO MEU PARTIDO



Deste-me a fraternidade com os desconhecidos.
Juntaste a mim a força de todos os que vivem.
Voltaste a dar-me a pátria como num nascimento.
Deste-se a liberdade que não tem quem está só.
Ensinaste-me a acender a bondade, como o lume.
Deste-me a rectidão de que precisa a árvore.
Ensinaste-me a ver a unidade e a diferença dos irmãos.
Mostraste-me como a dor de um ser morreu na vitória de todos.
Ensinaste-me a dormir na cama dura dos que são meus irmãos.
Fizeste-me construir sobre a realidade como sobre a rocha.
Fizeste-me inimigo do malvado e muro do colérico.
Fizeste-me ver a claridade do mundo e como é possível a alegria.
Fizeste-me indestrutível pois contigo não termino em mim próprio.


Pablo Neruda

Saturday 9 April 2011

A queima dos livros


Quando o Regime ordenou que queimassem em público
os livros de saber nocivo, e por toda a parte
os bois foram forçados a puxar carroças
carregadas de livros para a fogueira, um poeta
expulso, um dos melhores, ao estudar a lista
dos queimados, descobriu, horrorizado, que os seus
livros tinham sido esquecidos. Correu para a secretária
alado de cólera e escreveu uma carta aos do Poder.
Queimai-me!, escreveu com pena veloz, queimai-me!
Não ma façais isso! Não me deixeis de fora! Não disse eu
sempre a verdade nos meus livros? E agora
tratais-me como um mentiroso!
Ordeno-vos: Queimai-me!


Bertold Brecht

Wednesday 6 April 2011

Louvor de aprender

Aprende o mais simples! Pra aqueles
cujo tempo chegou
nunca é tarde de mais!
Aprende o abc, não chega, mas
aprende-o! E não te enfades!
Começa! Tens de saber tudo!
Tens de tomar a chefia!

Aprende, homem do asilo!
Aprende, homem na prisão!
Aprende. mulher na cozinha!
Aprende, sexagenária!
Tens de tomar a chefia!

Frequenta a escola, homem sem casa!
Arranja saber, homem com frio!
Faminto, pega no livro: é uma arma.
Tens de tomar a chefia!

Não te acanhes de perguntar, companheiro!
Não deixes que te metam patranhas na cabeça:
vê c'os teus próprios olhos!
O que tu mesmo não sabes
não o sabes.
Verifica a conta:
és tu que a pagas.
Põe o dedo em cada parcela,
pergunta: Como aparece isto aqui?
Tens de tomar a chefia.


Bertold Brecht

Sunday 3 April 2011

Meu irmão era aviador


Meu irmão era aviador,
deram-lhe um dia passagem,
fez a mal - e lá partiu,
para o Sul foi a viagem.

Meu irmão é conquistador,
falta espaço ao nosso povo,
e foi sempre o nosso sonho
velho: - terreno novo.

O que ele conquistou com fama
fica lá no Guadarrama:
de comprido, um metro e oitenta;
de fundo, um metro e cinquenta.


Bertold Brecht

Friday 1 April 2011

DE QUE SERVE A BONDADE



1

De que serve a bondade
quando os bondosos são logo abatidos, ou são abatidos
aqueles para quem foram bondosos?

De que serve a liberdade
quando os livres têm que viver entre os não-livres?

De que serve a razão
quando só a sem-razão arranja a comida de que cada um precisa?

2

Em vez de serdes só bondosos, esforçai-vos
por criar uma situação que torne possível a bondade, e melhor:
a faça supérflua!

Em vez de serdes só livres, esforçai-vos
por criar uma situação que a todos liberte
e também o amor da liberdade
faça supérfluo.

Em vez de serdes só razoáveis, esforçai-vos
por criar uma situação que faça da sem-razão dos indivíduos
um mau negócio!


Bertold Brecht

Wednesday 30 March 2011

APÊNDICE À «CARTILHA DE GUERRA»



(por baixo de uma fotografia de Hitler)


Esse que aí está, esteve quase a governar o mundo.
Mas os povos dominaram-no. No entanto
desejaria não ouvir o vosso triunfante canto:
O ventre, donde este saíu, ainda é fecundo.


Bertold Brecht

Sunday 27 March 2011

DA «CARTILHA DE GUERRA ALEMû

Para quê conquistar mercados para os produtos
que os operários fabricam?
Os operários
ficariam com eles de bom grado.


Bertold Brecht

Thursday 24 March 2011

DA «CARTILHA DE GUERRA ALEMû

Os que vão envelhecendo
metem o dinheiro nas caixas económicas.
Diante das caixas económicas estão carros.
Levam o dinheiro
p'rás fábricas de munições.


Bertold Brecht

Monday 21 March 2011

DA «CARTILHA DE GUERRA ALEMû

O pintor de tabuletas diz:
quantos mais canhões se fundirem
mais tempo haverá de paz.

Sendo assim dir-se-ia:
quanto mais grão se deitar à terra
menos trigo crescerá.
Quantas mais vitelas se abaterem
menos carne haverá.
Quanta mais neve derreter nos montes
mais baixos os rios serão.


Bertold Brecht

Friday 18 March 2011

DA «CARTILHA DE GUERRA ALEMû

As raparigas à sombra das árvores da aldeia
escolhem os namorados.
A morte escolhe também.

Talvez
nem sequer as árvores fiquem com vida.


Bertold Brecht

Tuesday 15 March 2011

DA «CARTILHA DE GUERRA ALEMû


É noite. Os casais
vão deitar-se nas camas. As mulheres novas
vão parir órfãos.


Bertold Brecht

Saturday 12 March 2011

DA «CARTILHA DE GUERRA ALEMû


General, o teu tanque é um carro forte.
Arrasa um bosque e esmaga centos de homens.
Mas tem um defeito:
precisa de um condutor.

General, o teu bombardeiro é forte.
Voa mais rápido que uma tempestade e carrega mais que um elefante.
Mas tem um defeito:
precisa de um mecânico.

General, o homem é muito hábil.
Sabe voar e sabe matar.
Mas tem um defeito:
sabe pensar.


Bertold Brecht

Wednesday 9 March 2011

POR MAIS QUE CALEM...


Por mais que calem
por mais voltas que dê o mundo
por mais que neguem os acontecimentos;
por mais repressão que o estado instaure;
por mais que lavem a cara com a democracia burguesa;
por mais assassinatos de estado que cometam e calem;
por mais greves da fome que silenciem;
por mais que tenham saturados os cárceres;
por mais pactos que engendrem os controladores de classe;
por mais guerras e repressão que imponham;
por mais que tentem negar a história e a memória da nossa classe

Mais alto diremos:
assassinos de povos
miséria de fome e liberdade
negociadores de vidas alheias
mais alto do que nunca, em grito ou em silêncio,
recordaremos os vossos assassinatos
de gentes, vidas, povos e natureza.
De boca em boca, passo a passo, pouco a pouco.


Salvador Puig Antich
(poema escrito na cela por este jovem anarquista
pouco antes de ser assassinado pelo regime franquista,
em 2 de Março de 1974)

Sunday 6 March 2011

DA «CARTILHA DE GUERRA ALEMû



O PINTOR DE TABULETAS FALA DE GRANDES TEMPOS FUTUROS.

As florestas crescem ainda.
Os campos dão frutos ainda.
As cidades estão de pé ainda.
Os homens respiram ainda.


Bertold Brecht

Thursday 3 March 2011

DA «CARTILHA DE GUERRA ALEMû


Os de cima dizem: no exército
reina a comunhão do povo.
Se é verdade ou não, ficais a sabê-lo
na cozinha.

Nos corações deve
haver a mesma coragem. Mas
nas marmitas há
comer de duas espécies.


Bertold Brecht


Tuesday 1 March 2011

DA «CARTILHA DE GUERRA ALEMû



Não vamos agora discutir
se explorámos o poder quando o tínhamos.
Agora já não temos o poder.

Não vamos agora falar
sobre se isto vai sem violência.
Agora foi a violência que nos derrubou.


Bertold Brecht

Sunday 27 February 2011

DA «CARTILHA DE GUERRA ALEMû


OS OPERÁRIOS GRITAM POR PÃO.
Os comerciantes gritam por mercados.
O sem trabalho passou fome. Agora
passa fome o que trabalha.
As mãos que estiveram pousadas no regaço, mexem-se de novo:
fazem granadas.


Bertold Brecht

Thursday 24 February 2011

Poema


NA PAREDE ESTAVA ESCRITO A GIZ:
«Queremos a guerra.»

O que escreveu isto
já caiu morto.


Bertold Brecht

Monday 21 February 2011

CANÇÃO DA FUNDAÇÃO DO NATIONAL DEPOSIT BANK


Pois não é?: fundar um banco
é bom para preto e branco.
Se o dinheiro se não herda,
arranjai-o; senão - merda!
Boas são pra isso acções;
melhores que facas, canhões.
Só uma coisa é fatal -
capital inicial.
Mas, quando o dinheiro falta,
donde vem, se não se assalta?
Ai! não nos vamos zangar!:
donde outros o vão tirar.
De algum modo ele viria
e a alguém se tiraria.


Bertold Brecht

Friday 18 February 2011

LOUVOR DO COMUNISMO


É razoável, quem quer o entende. É fácil.
Tu não és nenhum explorador, podes compreendê-lo.
É bom para ti, informa-te dele.
Os estúpidos chamam-lhe estúpido, e os porcos chamam-lhe porco.
Ele é contra a porcaria e contra a estupidez.
Os exploradores chamam-lhe crime.
Mas nós sabemos:
Ele é o fim dos crimes,
não é nenhuma loucura, mas sim
o fim da loucura,
Mas sim a solução,
É o fácil
que é difícil de fazer.


Bertold Brecht

Tuesday 15 February 2011

Poema

Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores,
levantam-se os animais que correm os campos
ou voam por cima deles,
levantam-se os homens e as suas esperanças.
Também do chão
pode levantar-se um livro,
como uma espiga de trigo
ou uma flor brava.
Ou uma ave.
Ou uma bandeira.


José Saramago

Saturday 12 February 2011

Negócio

Quanto de mim é ouro, não se vende.
O resto desprezado, com o ouro,
eu o darei a quem o ouro entende.


José Saramago

Wednesday 9 February 2011

Dispostos em cruz...


Dispostos em cruz desfeitos em cruz
em cada caminho três portas fechadas
um vento de faca um resto de luz
o espanto da morte nas águas cortadas

Um corpo estendido um ramo de frutos
um travo na boca da boca do outro
o branco dos olhos o negro dos lutos
o grito o relincho e o dente do potro

As feridas do vento as portas abertas
os cantos da boda no ventre macio
as notas do canto nas linhas incertas
e o lago do sangue ao largo do rio

O céu descoberto da nuvem da chuva
e o grande arco-íris na gota de esperma
o espelho e a espada o dedo e a luva
e a rosa florida na borda na berma

E a luz que se expande no pino do Verão
e o corpo encontrado no corpo disperso
e a força do punho na palma da mão
e o espanto da vida na forma do verso


José Saramago

Sunday 6 February 2011

Cavalaria


Cheguei esporas ao cavalo
e os sentimentos exaustos
deram saltos no regalo
das gualdrapas e dos faustos

A relva cheirava a palha
desmanchei rosas vermelhas
mas pasto foi maravalha
sabia ao sarro das selhas

Porque o cavalo era eu
o cansaço e as esporas
tudo eu e a cor do céu
mais o sonho das amoras

Relinchos eram os versos
com jeito de ferradura
que fazia por dar sorte
mas tantos foram reversos
que o ventre de serradura
deu o estoiro e deu a morte

Cai a montada no chão
cai por terra o cavaleiro
que era eu (como se viu)
da escola de equitação
vim ao saber verdadeiro
das transparências do rio

Agora dentro do barco
nos remos brancas grinaldas
tenho os teus braços em arco
como um colar de esmeraldas


José Saramago

Thursday 3 February 2011

TENHO A ALMA QUEIMADA...


Tenho a alma queimada
por saliva de sapo
Fingindo que descubro
tapo

A palavra me infecta
sob a pele da aparência
Deito o remédio certo
paciência

Neste mal não se vive
mas também ninguém morre
Quando a ave não voa
corre

Quem às estrelas não chega
pode vê-las da terra
Quem não tem voz de cantar
berra


José Saramago

Tuesday 1 February 2011

NEM SEMPRE A MESMA RIMA


Bem couraçado na pele
não sou eu mas aparência
e se me rasgo e me mostro
nem assim sou evidência

Porque os acertos em mim
são cartas de paciência
baralho caído ao chão
levantado sem prudência

Sobre a mesa verde-negra
corre um jogo de demência
passo corto pego e bato
com um parceiro de ausência

Assim jogava e perdia
que perder é uma ciência
a que a gente se habitua
sem temor nem violência

Agora que o vento arrasta
as cartas e os vícios delas
ficaram-me as mãos libertas
é manhã abro as janelas


José Saramago

Sunday 30 January 2011

AQUI A PEDRA CAI...


Aqui a pedra cai com outro som
porque a água é mais densa, porque o fundo
tem assento e firmeza sobre os arcos
da fornalha da terra.
Aqui o sol reflecte e tange à superfície
uma rubra canção que o vento espalha.
Nus, na margem, convulsos acendemos
a fogueira mais alta.
Nascem aves no céu, brilham os peixes,
toda a sombra se foi, que mais nos falta?


José Saramago

Thursday 27 January 2011

Passo num gesto...


Passo num gesto que eu sei
deste mundo agoniado para o espaço
onde sou quanto serei
no tempo que sobra escasso

No outro mundo sou rei
e o meu rosto de cristal e puro aço
é o espelho que forjei
com suor pena e cansaço

E se o mundo que deixei
tem as marcas desenhadas do meu passo
são baralhas que enredei
são teias de vidro baço

Tantas provas cá terei
tantas vezes do pescoço solto o laço
se me sagraram em rei
aceitem a lei que eu faço

Vem a ser que o homem novo
está na verdade que movo


José Saramago

Monday 24 January 2011

O Beijo



Hoje, não sei porquê, mas o vento teve um grande gesto de renúncia, e as árvores aceitaram a imobilidade. No entanto (e é bem que assim seja) obstinadamente uma viola organiza o espaço da solidão. Ficamos sabendo que as flores se alimentam na fértil humidade. É essa a verdade da saliva.


José Saramago

Friday 21 January 2011

Parábola


Num caroço de mentiras
trouxe a verdade escondida
pus o caroço na terra
nasceu verdade fingida

Não faltou água dos olhos
ao viço desta palmeira
que frutos daria o ramo
de tão ruim sementeira

Se do sal que nela morde
um sabor amargo sobra
é coisa que vai no rasto
que ficou depois da cobra

Lá em cima onde a verdade
tem a franqueza do vento
negam ninhos as raízes
porque é outro o seu sustento

E o tronco tão levantado
sobre o caroço partido
não é tronco mas é homem
alto firme e decidido


José Saramago

Tuesday 18 January 2011

TENHO UM IRMÃO SIAMÊS...




Tenho um irmão siamês
(Há quem tenha, mas o meu,
ligado à sola dos pés,
anda espalhado no chão,
todo mordido de raiva
de ser mais raso do que eu.)

Tenho um irmão siamês
(É a sombra, cão rafeiro,
vai à frente ou de viés,
conforme a luz e a feição,
de modo que sempre caiba
nos limites do ponteiro.)

Tenho um irmão siamês
(Minha morte antecipada,
já deitada,
à espera da minha vez.)


José Saramago

Saturday 15 January 2011

Paisagem com figuras




Não há muito que ver nesta paisagem:
campinas alagadas, ramos nus
de choupos e salgueiros eriçados:
raízes descobertas que trocaram
o natural do chão pelo céu vazio.
Aqui damos as mãos e vamos indo
a romper nevoeiros.
Jardim do paraíso, obra nossa,
somos nós os primeiros.


José Saramago

Wednesday 12 January 2011

Ao inferno, senhores...

Ao inferno, senhores, ao inferno do homem,
lá onde não fogueiras, mas desertos.
Vinde todos comigo, irmãos ou inimigos,
a ver se povoamos esta ausência
chamada solidão.
E tu, meu claro amor, nova palavra,
que a tua mão não deixe a minha mão.


José Saramago

Sunday 9 January 2011

ALEGRIA



Já ouço gritos ao longe
já vem a voz do amor
Ó alegria do corpo
Ó esquecimento da dor

Já os ventos recolheram
já o Verão se nos oferece
Quantos frutos quantas fontes
Mais o Sol que nos aquece

Já colho jasmins e nardos
já tenho colares de rosas
E danço no meio da estrada
as danças prodigiosas

Já os sorrisos se dão
já se dão as voltas todas
Ó certeza ó certeza
Ó alegria das bodas


José Saramago

Thursday 6 January 2011

Provavelmente

Provavelmente, o campo demarcado
não basta ao coração, nem o exalta:
provavelmente, o traço da fronteira
contra nós o riscámos, amputados.
Que rosto se desenha e se promete?
Que viagem esquecida nos aguarda?
São asas (que só duas fazem voo),
ou solitário arder da labareda?


José Saramago

Monday 3 January 2011

Jogo do lenço




Trago no bolso do peito
um lenço de seda fina,
dobrado de certo jeito.
Não sei quem tanto lhe ensina
que quanto faz é bem feito.

Acena nas despedidas,
quando a voz já lá não chega
por distâncias desmedidas.
Depois, no bolso aconchega
as saudades permitidas.

Também o suor salgado,
às vezes, enxuto a medo,
que o lenço é mal empregado.
E quando me feri um dedo,
com ele o trouxe ligado.

Nunca mais chegava ao fim
se as graças todas dissesse
deste meu lenço e de mim,
mas uma coisa acontece
de que não sei porque sim:

Quando os meus olhos molhados
pedem auxílio do lenço,
são pedidos escusados.
E é bem por isso que penso
que os meus olhos, se molhados,
só se enxugam no teu lenço.


José Saramago

Saturday 1 January 2011

BARALHO



Lanço na mesa as cartas de jogar:

os amores de cartão e as espadas,
os losangos vermelhos de ouro falso,
a trilobada folha que ameaça.
Caso e descaso as damas e os valetes.
Andam os reis pasmados nesta farsa.
E quando conto os pontos da derrota,
sai-me de lá a rir, como perdido,
na figura do bobo o meu retrato.


José Saramago