Saturday 30 June 2012
Wednesday 27 June 2012
Seppuku
Solenemente, contemplou, inclinando-se para baixo, o corpo e o seu sopro sagrado que em breve cessaria. Dali, se via ainda o prado onde morrera um e outro. Haviam morrido, porém ainda teriam a liberdade de partir com dignidade. No campo da batalha, agora coberto de um manto de sangue sobre o gelo e a neve, jaziam inúmeros os corpos já vazios. Embora com mais perdas, a batalha havia sido ganha, o inimigo retirara-se para não mais voltar. Igualmente, o seu líder ficara para sempre de peito aberto até que venha a apodrecer sob a terra.
Por isso mesmo, embora vencedores, a vida não teria agora a quem servir. E quem vive para servir, deixa de viver quando desvanece esse objectivo. Não é opção, é naturalidade. À medida que a primeira flor de cerejeira caiu da copa rósea, sentiram essa sua incontornável natureza. A flor não escolhera cair.
A mão direita cortaria agora a quadragésima sexta cabeça com a lâmina já baça do sangue que, frio, se espessava. Por detrás do homem ajoelhado, levantou a lâmina paralela ao solo sobre os seus ombros e por detrás do seu próprio pescoço. Quando o ajoelhado se penetrou e esventrou com a faca até às costelas, com a mão direita apenas, fez lançar sobre o pescoço num só golpe rápido e poderoso, a lâmina afiada do destino. Pendeu o corpo para frente, vazio, com a pele do pescoço segurando a cabeça ao tronco. Sacudiu o sangue vívido da lâmina, contemplando os quarenta e seis mortos esvaídos ao longo do campo branco e gelado.
Depois, sem ter quem lhe retribuísse a digna homenagem, tornou a embainhar a sua espada. Puxou com a mão direita o punhal e com o gume virado para os seus olhos, fê-lo entrar no seu corpo, sereno. Quando tombou, ainda viu tocar no chão a pequena flor, mesmo a seu lado.
Miguel Tiago
Sunday 24 June 2012
Thursday 21 June 2012
- sem título -
depois levaste os vestidos,
as blusas, a escova de penteares os cabelos após o duche.
depois levaste o corpo que vestias e que despias,
os cabelos, os olhos, finalmente.
depois a casa ficou mais fria,
como um remoinho de coisa nenhuma,
onde tudo se esgota inexoravelmente para o vazio.
depois, mesmo depois de teres ido,
abandonou-me o cheiro que deixaste nos lençóis.
lentamente, vai-se a alma que aqui morava,
e definha a que me habita.
Miguel Tiago
Monday 18 June 2012
- vento -
um vento quente, um sopro com cheiro a primavera sempre,
como assim durassem as árvores floridas nas avenidas..
só esses ventos assim, de beijos esfuziantes, são capazes de encher o nosso peito.
Miguel Tiago
Friday 15 June 2012
Tuesday 12 June 2012
Saturday 9 June 2012
aurora
mãos rasgando o chão para comer.
para viver, não pode levantar-se
o homem que nasceu para andar erguido.
foi vergado por quem nasceu
de espírito já partido,
sem coluna, verme protegido.
do chão emerge a vida de ambos,
a de um pelo trabalho de suas mãos, a do outro
pela fome de cada mão.
não percebe quem com seus braços sulca a terra
que assim sulca a história e escreve as linhas do futuro.
o sol um dia trará também essa aurora de fogo
(de libertação) e comerá apenas quem quiser amassar o pão.
Miguel Tiago
Wednesday 6 June 2012
o mito segundo narciso
quando ela morreu, o mundo, infelizmente, não cessou. e os dias passavam
agora penosos, eras a cada lua. na floresta onde caçavam, vagueava
inconscientemente, entorpecido. havia um vazio nos seus olhos que só
viam
saída nas lágrimas cheias que pendiam, permanentes.
quando ela morreu, o mundo, infelizmente, continuou. e ele, perdia a
continuidade do seu ser, um pedaço de alma, como um pedaço da vida.
narciso arrastava os pés por entre as árvores. eco seguia-o sentindo a
dor.
nas sombras oblíquas da floresta, por onde haviam passeado as musas nas
horas matinais que se iam e por onde hades passearia nos instantes que
se
seguiam em busca de perséfone para se saciar, jazia um lago que
reflectia o
céu por entre folhagens. quando caiu, debruçou-se,
infinitamente triste sobre
as águas espelhadas e serenas.
ali, mesmo ali, jazia a imagem gémea dela. não mais desviou seus olhos
da
água que chorava com ele. eco, bela, olhou seu corpo moribundo e
chorou.
no lugar onde narciso adorou a sua irmã, deixou uma flor que ali
cresceu.
Miguel Tiago
Sunday 3 June 2012
- sem título -
partilho assim com o dia a translucência fosca e a escuridão.
Miguel Tiago
Friday 1 June 2012
- sem título -
as letras e os versos são como homens,
não cristalizam.
pulsam e respiram.
sanguíneas e vivas.
Miguel Tiago
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