Thursday 30 July 2015

A MINHA SECRETÁRIA


Tenho um ramo
de nuvens
na minha secretária

por entre versos
cartas
cadernos e diários

uma caneta
com tinta de gardénia
de paixão e soneto

E na gaveta de segredo
porque
a poesia salva

eu guardo a minha alma

Maria Teresa Horta

Monday 27 July 2015

POEMA


Façam-se os alicerces da cidade do futuro
nas rotas que a metralha vai abrindo!
Erga-se a nova Torre de Babel dos homens
com os destroços deste mundo velho!
Que se confundam, numa só, as línguas,
como, na podridão, se confundiram
os cadáveres daqueles que vestiam
uniformes diferentes!
Que continue calma e silenciosa
a Terra de Ninguém,
por ser a Terra de Todos!

Irmão, se o sacrifício se consuma,
Irmão, que o sacrifício se aproveite!

Álvaro Feijó

Friday 24 July 2015

La Samarreta - A Camiseta


Jo sóc fill de família molt humil,
tan humil que d'una cortina vella
una samarreta en feren. Vermella.
D'ençà, per aquesta samarreta,
no he pogut caminar ja per la dreta.
He hagut d'anar contracorrent
perquè jo no sé què passa
que tothom que el ve de cara porta el cap topant de terra.
D'ençà, per aquesta samarreta
no he pogut sortir al carrer,
ni treballar al meu ofici, fer de ferrer.
He hagut de en el camp guanyar jornals,
ai, si la gent ja no em veia,
jo treballava amb la corbella.
I dintre de tots els mals,
sé treballar amb dues coses:
amb el martell i la corbella.
Gairebé no comprenc perquè la gent
quan em veia pel carrer
em cridava: Progressiste!
Jo crec que tot això era promogut pel seu despiste.
Potser un altre en les meves circumstàncies
ja hagués canviat de samarreta.
Però jo que m'hi trobe molt bé amb ella,
perquè abriga, me l'estime,
i li pregue que no se me faça vella.

Ovidi Montllor


Introdução falada da música:
"Em Valência, no País Valenciano, para segar o trigo, alfalfa, etc. usam uma ferramenta que se chama 'corbella' ('foice'). Até aquí a explicação. 
Agora falemos da música, uma das primeiras canções que fiz e uma das últimas que cantei: 
'A camiseta'"
Eu sou filho de família muito humilde.
Tão humilde que duma cortina velha
uma camiseta fizerem: vermelha.
Desde então, por esta camiseta,
não pude caminhar já pela direita.
Tive de ir contracorrente
porque eu não sei que é que se passa
que toda a gente que vem de cara
leva a cabeça para o chão.
Desde então, por esta camiseta,
não pude sair mais à rua.
Nem trabalhar no meu ofício: fazer de ferreiro.
Tive de, no campo, ganhar diárias.
Assim a gente já não me veia:
Eu trabalhava com a foice de segar.
E dentro de todos estes mais,
sei trabalhar com duas coisas:
com o martelo e a foice.
Quase não compreendo porque a gente,
quando me via pelas ruas me gritava: progressista!
Eu acho que isso era promovido pelo seu "despiste".
Se calhar um outro nestas circunstâncias,
já mudaria de camiseta.
Mas eu, que me encontro tão bem com ela.
Porque me abriga, quero-a,
e peço-lhe que não se faça velha.

Tuesday 21 July 2015

VIAGEM


I

Capitão, aqui estou.

Comigo, a bagagem:
No saco de marujo trago um naco de pão
dentro do peito a ânsia da viagem.

II

Venho de longe, sabes, de tão longe
de países que não existem nos mapas.
Percorri rotas, cortei a nado os mares mais temerosos
e cheguei
cansada e desperta da viagem.

Aqui estou
inteira.

Na intimidade do chão, da comida saboreada,
porque não é apenas comida
mas um pretexto para fazer gestos em comum
Para sentir o prazer de os repetir - os repartir

Até quando...
prefiro não pensar

Por agora
fico-me
no imenso prazer de partilhar.

III

Lá fora
no frio da noite sei que a lua nasceu
sei que no cais há barcos que esperam
e gente, como nós, a aguardar a hora impossível da partida.

Maria Eugénia Cunhal

Saturday 18 July 2015

Cala-te, Filho, não penses nisso


Mãe, há pouco vi
um barco de prata
lá longe no mar,
eu cá quero, mãe,
nesse barco andar


Cala-te, filho, não penses nisso,
és muito pequeno,
não olhes prás ondas,
segue o teu caminho

Mãe, o filho do patrão,
pequeno como eu,
anda naquele barco,
ninguém lhe diz não.
Porque não posso eu?

Ai, filho, não sei

Mãe, há pouco vi
um cavalo a trotar
naquele prado além,
eu cá quero, mãe,
nesse cavalo andar

Cala-te, filho, não penses nisso,
és muito pequeno,
e é tão perigoso,
segue o teu caminho

Mãe, o filho do patrão,
pequeno como eu,
tem um cavalo preto
com rédeas douradas.
Porque não o tenho eu?

Ai, filho, não sei...

Mãe, alguém me disse
que ao Bom Deus o peça,
que Ele mo há-de dar,
cavalo prá terra
e barco pró mar

Cala-te, filho, não penses nisso,
és muito pequeno,
Deus está ocupado,
segue o teu caminho

Mãe, o filho do patrão,
pequeno como eu,
ouve-o sempre Deus,
nunca lhe diz não.
Que mal lhe fiz eu?

Ai, filho, não sei!

Guillermina Motta
Cantautora catalã,
nasceu em Barcelona em 1942

Wednesday 15 July 2015

POEMA

(Mais uma definição de poeta num carro eléctrico para Almirante Reis.)

Poeta o que é?
Um homem que leva
o facho da treva
no fundo da mina
- mas apenas vê
o que não ilumina.

José Gomes Ferreira

Sunday 12 July 2015

Intimidade


Sonhamos juntos
juntos despertamos
o tempo faz e desfaz
entretanto
não lhe importam teu sonho
nem meu sonho
somos trôpegos
ou demasiados cautelosos
pensamos que não cai
essa gaivota
cremos que é eterno
este conjuro
que a batalha é nossa
ou de nenhum
juntos vivemos
sucumbimos juntos
porém essa destruição
é uma brincadeira
um detalhe uma rajada
um vestígio
um abrir-se e fechar-se
o paraíso
já nossa intimidade
é tão imensa
que a morte a esconde
em seu vazio
quero que me relates
o duelo que te cala
por minha parte te ofereço
minha última confiança
estás sozinha
estou sozinho
porém às vezes
pode a solidão
ser
uma chama

Mario Benedetti

Thursday 9 July 2015

A CRIANÇA


Aberta, discreta
ou desatenta
é como o poeta:
não mente, inventa.

Luís Veiga Leitão

Monday 6 July 2015

Coração Couraça


Porque te tenho e não
porque te penso
porque a noite está de olhos abertos
porque a noite passa e digo amor
porque vieste a recolher tua imagem
porque és melhor que todas tuas imagens
porque és linda desde o pé até a alma
porque és boa desde a alma a mim
porque te escondes doce no orgulho
pequena e doce
coração couraça
porque és minha
porque não és minha
porque te olho e morro
e pior que morro
se não te olho amor
se não te olho
porque tu sempre existes onde quer que seja
porém existes melhor onde te quero
porque tua boca é sangue
e tens frio
tenho que te amar amor
tenho que te amar
ainda que esta ferida doa como dois
ainda que busque e não te encontre
e ainda que
a noite pese e eu te tenha
e não.

Mario Benedetti

Friday 3 July 2015

PROBLEMA


A não ser
perante alguma decisiva opção,
como há-de alguém saber
se o que é o é integralmente ou não?

Armindo Rodrigues

Wednesday 1 July 2015

Façamos um trato


Companheira
você sabe
que pode contar
comigo
não até dois
ou até dez
senão contar
comigo


se alguma vez
percebe
que a olho nos olhos
e um brilho de amor
reconheces nos meus
não alerte seus fuzis
nem pense que deliro
apesar do brilho
ou talvez porque existe
você pode contar
comigo

se outras vezes
me encontra
intratável sem motivo
não pense que fraquejara
igual pode contar
comigo

porém façamos um trato
eu quisera contar
com você
é tão lindo
saber que você existe
um se sente vivo
e quando digo isto
quero dizer contar
embora seja até dois
embora seja até cinco
não já para que acuda
pressurosa em meu auxílio
senão para saber
a ciência certa
que você sabe que pode
conta comigo.

Mario Benedetti