Tuesday 30 August 2011

Canção burguesa

Consolo e delícia
da vida burguesa...

Sete horas em ponto
o jantar na mesa;
café bem quentinho,
conversa tranquila,
e um lençol de linho
esperando o seu dono
para um belo sono...
(Que bom não ter sonhos,
dormir sossegado!)
Já estou acordado,
já salto da cama,
- Maria, Maria,
traga os meus chinelos,
traga o meu pijama...
A alma lavada,
o corpo limpinho,
- Bom dia, vizinha!
- Bom dia, vizinho!

Consolo e delícia
da vida burguesa...
Se isto continua,
morro, com certeza!


Raul de Carvalho

Saturday 27 August 2011

Amostra sem valor


Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível;
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosas da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.


António Gedeão

Wednesday 24 August 2011

Acenda-se na noite...


Acenda-se na noite o facho silencioso.
Enquanto sobre a terra impere a iniquidade,
ninguém poderá ser inteiramente livre.


Armindo Rodrigues

Sunday 21 August 2011

No fim


Quando terminarmos à dentada
esta tão longa, salitrosa noite,
os sorrisos descerão nos rios,
darão flor na oliveira as lágrimas.

Quando se firmem as águas movediças
a alegria cunhará moeda;
vozes longínquas abrirão janelas;
estaremos vestidos sob o céu.


Egito Gonçalves

Thursday 18 August 2011

Retrato de Catarina Eufémia


Da medonha saudade da medusa
que medeia entre nós e o passado
dessa palavra polvo da recusa
de um povo desgraçado.

Da palavra saudade a mais bonita
a mais prenha de pranto a mais novelo
da língua portuguesa fiz a fita encarnada
que ponho no cabelo.

Trança de trigo roxo
Catarina morrendo alpendurada
do alto de uma foice.
Soror Saudade Viva assassinada
pelas balas do sol
na culatra da noite.

Meu amor. Minha espiga. Meu herói.
Meu homem. Meu rapaz. Minha mulher
de corpo inteiro como ninguém foi
de pedra e alma como ninguém quer.


José Carlos Ary dos Santos

Monday 15 August 2011

Instruções para os superiores


No dia em que o soldado desconhecido morto na guerra
foi enterrado com salvas de canhão,
de Londres a Singapura parou
ao meio dia ao mesmo tempo,
das doze horas e dois às doze horas e quatro,
durante dois minutos completos,
todo o trabalho,
só com o fim de honrar o
Soldado Desconhecido Morto na Guerra.

Mas, apesar disso tudo, talvez
se devesse ordenar
que ao Trabalhador Desconhecido
das grandes cidades dos Continentes povoados
se prestassem também honras finalmente.
Um homem qualquer da rede do tráfico,
cuja face não fora notada,
cujo ser secreto passara despercebido,
cujo nome não fora ouvido distintamente,
um tal homem devia,
no interesse de todos nós,
ser contemplado com honras de excepção,
com uma alocução na rádio
«Ao Trabalhador Desconhecido»
e
com um pausa no trabalho de todos os homens
por todo o Planeta.


Bertold Brecht

Friday 12 August 2011

Cantiga do ódio


O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração,
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
Ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
Que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?


Carlos de Oliveira

Tuesday 9 August 2011

ORGIA

Foi uma festa de truz.
Música, alegria, cor.
Cada vestido era luz
de riqueza, de esplendor.

Vendo tantos risos nobres
numa pergunta me fico:
Quantos milhares de pobres
nos custará este rico?

Mário Castrim

Saturday 6 August 2011

A bomba



O primeiro sopro arrancou-lhe a roupa;
o imediato levou também a carne.
Ao longo da rua
durante alguns segundos correu o esqueleto.
Mas a rua já não estava,
estava toda no ar;
de lá caíam bocados de prédios, bocados
de crianças, restos de cadilaques...
O esqueleto não compreendia sozinho
aquela situação:
deixou-se tombar sobre algumas pedras radioactivas
e permitiu na queda o extravio de alguns ossos.

(Caso curioso: o coração
pulsou ainda três ou quatro vezes
entre o gradeamento das costelas.)


Egito Gonçalves

Wednesday 3 August 2011

(SERENATA CÍNICA PARA O BETTENCOURT CANTAR)


Menino que vais na rua,
não cantes nem chores: berra!
Cospe no chão e na lua
e aprende a pisar a terra.

Aprende a pisar o mundo,
deixa a lua aos violinos
dos olhos dos vagabundos
e dos poetas caninos.

Aprende a pisar a vida.
Deixa a lua às costureiras
- pobre moeda caída
de quem não tem algibeiras.

Aprende a pisar no chão
o silêncio do luar
sem sentir no coração
outras pedras a gritar.

Pisa a lua sem remorsos,
estatelada no solo...
Não hesites! Quebra os ossos
dessa criança de colo.

Pisa-a, frio, com coragem,
sem olhos de serenata:
que isso que vês na paisagem
não é ouro nem é prata.

Menino que vais na rua,
não chores, nem cantes: berra!
ou, então, salta prá lua
e mija de lá na terra.


José Gomes Ferreira

Monday 1 August 2011

Um conto de inverno


Amigos, quero compor para vós uma canção,
uma canção nova, uma canção melhor!
Queremos instaurar aqui na terra,
agora mesmo, o reino dos céus.

Queremos ser felizes nesta terra,
aqui queremos derrotar a fome
e que o ventre preguiçoso não devore
o que mãos trabalhadoras produziram.

Cresce, aqui em baixo, pão que chega
para os filhos dos homens
e ainda há rosas e mirtos,
beleza, alegria e ervilha-de-cheiro.

Sim, ervilhas-de-cheiro para todos.
Logo ao abrir das vagens!
O céu, não o queremos para nada,
fiquem com ele os anjos e os pardais.


Heinrich Heine