Friday 27 February 2015

Natureza-morta com frutos


1
O sangue matinal das framboesas
escolhe a brancura do linho para amar.

2
A manhã cheia de brilhos e doçura
debruça o rosto puro na maçã.

3
Na laranja o sol e a lua
dormem de mãos dadas.

4
Cada bago de uva sabe de cor
o nome dos dias todos do verão.

5
Nas romãs eu amo
o repouso no coração do lume.

Eugénio de Andrade

Tuesday 24 February 2015

A Internacional


De pé, ó vítimas da fome!
De pé, famélicos da terra!
Da ideia a chama já consome
A crosta bruta que a soterra.
Cortai o mal bem pelo fundo!
De pé, de pé, não mais senhores!
Se nada somos neste mundo,
Sejamos tudo, oh produtores!

Refrão
Bem unidos façamos,
Nesta luta final,
Duma Terra sem amos }bis
A Internacional.

Messias, Deus, chefes supremos,
Nada esperemos de nenhum!
Sejamos nós quem conquistemos
A Terra-Mãe livre e comum!
Para não ter protestos vãos,
Para sair deste antro estreito,
Façamos nós por nossas mãos,
Tudo o que a nós diz respeito!

Saturday 21 February 2015

REBENTO


Do chão tão injustamente
abandonado, um rebento
de repente rompe, verde e tenro.

Brotou talvez de uma semente, por acaso
trazida na sola de um sapato
de algum trabalhador que por ali passou.

E assim verde e tenro, de repente,
do chão rompido, contra a injustiça
do abandono, este rebento isolado
é uma acusação e uma promessa.

Armindo Rodrigues

Wednesday 18 February 2015

Peço silêncio


Agora deixem-me tranquilo.
Agora acostumem-se sem mim.

Eu vou fechar os olhos

E só quero cinco coisas,
Cinco raízes preferidas.

Uma é o amor sem fim.

A segunda é ver o Outono.
Não posso ser sem que as folhas
Voem e voltem à terra.

A terceira é o grave Inverno,
A chuva que amei, a carícia
Do fogo no frio silvestre.

Em quarto lugar o Verão
Redondo como uma melancia.

A quinta coisa são teus olhos,
Matilde minha, bem amada,
Não quero dormir sem teus olhos,
Não quero ser sem que me olhes:
Eu troco a Primavera
Pra que tu me fiques olhando.

Amigos, isso é tudo o que quero.
É quase nada e quase tudo.

Agora, se querem, que se vão.

Vivi tanto que um dia
Terão de esquecer-me com força,
Apagando-me do quadro negro:
Meu coração foi interminável.

Mas porque peço silêncio
Não creiam que vou morrer:
Pois é exactamente o contrário:
Acontece que vou viver.

Acontece que sou e que sigo.

Não será, pois, senão que dentro
De mim crescerão cereais,
Primeiro os grãos que rompem
A terra para ver a luz,
Porém a mãe terra é escura:
E dentro de mim sou escuro:
Sou como um poço em cujas águas
A noite deixa suas estrelas
E segue só pelo campo.

Trata-se de que tanto vivi
Que quero viver outro tanto.

Nunca me senti tão sonoro,
Nunca tive tantos beijos.

Agora, como sempre, é cedo.
Voa a luz com suas abelhas.

Deixem-me só com o dia.
Peço permissão para nascer.


Pablo Neruda

Sunday 15 February 2015

CERTEZA


Não nos responde o céu cinzento e opaco
nem o sorriso de pedra e impenetrável dos nichos...

- só nós sabemos porque vivemos num buraco
encurralados como bichos.

Sidónio Muralha

Thursday 12 February 2015

Llama guardada


Cómo podía él saber que su poema,
Encontrado una noche blanca de vago andar,
En un país distante que ella aún no conocía,
Era en los ojos de ella que se haría realidad.

Recuerda que buscaba esa noche a alguien o algo,
Recuerda la avenida de su lento paseo,
y recuerda la vuelta a la alcoba vacía,
y después las palabras como un amargo espejo.

Solitario él, perdido, esperaba anhelante
En vano una respuesta de aquella noche blanca.
Y los dos ignoraban que entonces lejos, cerca,
Para él ella cuidaba su honda llama guardada.

Roberto Férnandez Retamar

9 de junho de 1930 - 20 de julho de 2019

Monday 9 February 2015

A COR DA LIBERDADE


Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.

Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Jorge de Sena

Friday 6 February 2015

ÚLTIMO POEMA DE VICTOR JARA (completo)


Somos cinco mil
nesta pequena parte da cidade.
Somos cinco mil.

Quantos seremos no total,
nas cidades e em todo o país?
Somente aqui, dez mil mãos que semeiam
e fazem andar as fábricas.


Quanta humanidade
com fome, frio, pânico, dor,
pressão moral, terror e loucura!

Seis de nós se perderam
no espaço das estrelas.

Um morto, um espancado como jamais imaginei
que se pudesse espancar um ser humano.

Os outros quatro quiseram livrar-se de todos os temores
um saltando no vazio,
outro batendo a cabeça contra o muro,
mas todos com o olhar fixo da morte.

Que espanto causa o rosto do fascismo!

Colocam em prática seus planos com precisão arteira,
sem que nada lhes importe.

O sangue, para eles, são medalhas.

A matança é acto de heroísmo.

É este o mundo que criaste, meu Deus?
Para isto os teus sete dias de assombro e trabalho?

Nestas quatro muralhas só existe um número
que não cresce,
que lentamente quererá mais morte.

Mas prontamente me golpeia a consciência
e vejo esta maré sem pulsar,
mas com o pulsar das máquinas
e os militares mostrando seu rosto de parteira,
cheio de doçura.

E o México, Cuba e o mundo?

Que gritem esta ignomínia!
Somos dez mil mãos a menos
que não produzem.

Quantos somos em toda a pátria?

O sangue do companheiro Presidente
golpeia mais forte que bombas e metralhas.

Assim golpeará nosso punho novamente.

Como me sai mal o canto
quando tenho que cantar o espanto!

Espanto como o que vivo
como o que morro, espanto.

De ver-me entre tantos e tantos
momentos do infinito
em que o silêncio e o grito
são as metas deste canto.

O que vejo nunca vi,
o que tenho sentido e o que sinto
fará brotar o momento...


Victor Jara,
Estádio do Chile, Setembro 1973

Tuesday 3 February 2015

MÃO DE OBRA


Os pobres trabalham cedo
cedo começam a vida
tudo neles é sempre cedo
até a fome e a desgraça
uma estrela concebida
com duas chagas de medo
abertas esponjosas fundas
no corpo magro e doído
do homem desde criança
condenado a ser vendido
pesado numa balança
por qualquer preço colhido
na engrenagem ou teia
de uma aranha gigantesca
que em ventres de lua cheia
ainda no sangue os pesca
os domina suga enreda
em meandros de uma trama
que cobre a cidade toda
esta cidade que acorda
na marmita de um rapaz
com doze anos apenas
e poucas horas de sono
caminhando para a luta
dos olhos do capataz
que faz as vezes de dono.
Esta cidade que acorda
molhada triste dormente
e em vez de algum bombom
no ventre daquele menino
(com doze anos apenas
e poucas horas de sono)
lhe amassa o pão numa açorda
que a própria fome da mãe
(a insónia do pão duro)
dá ao filho porque o dono
lhe marca bem o futuro
Que míseros escudos ganha
esta vítima da aranha.

João Apolinário

Sunday 1 February 2015

*


oferecer-te um poema
que não escrevi
e esperar por saber
ter-te ele incendiado
o que nunca fui capaz
de acender ou saber
ter já sido o poema
que não ousaste
ler.

João Costa