Wednesday 30 July 2014
Tratado geral das grandezas do ínfimo
a poesia está guardada nas palavras - é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
não tenho conexões com a realidade.
poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossa).
por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
fiquei emocionado.
sou fraco para elogios.
Manoel de Barros
Sunday 27 July 2014
Companheira dos homens
A poesia dos senhores que propagam o nevoeiro e confundem as gentes,
poesia tão pessoal como uma escova de dentes,
a poesia que eles queriam guardar nas suas casas
numa gaiola, como um pássaro a quem mutilassem as asas,
a poesia quebrou as algemas e saiu da prisão
e arrastou-se nas trincheiras, e dormiu nos campos de concentração,
e amou aqueles que negam mas que nunca se negaram,
e conheceu prostitutas que nunca se entregaram,
e comeu na malga dos soldados aquela sopa de massa
que é igual para todos como o pré e a desgraça.
E os homens aprenderam nas noites de inclemência
a cantar os seus versos, a recitá-los de cor,
e a murmurá-los nessas horas em que tudo é confidência
e em que cada palavra ganha uma ressonância maior.
Sidónio Muralha
Thursday 24 July 2014
Noite de sonhos voada
noite de sonhos voada
cingida por músculos de aço,
profunda distância rouca
da palavra estrangulada
pela boca amordaçada
noutra boca,
ondas do ondear revolto
das ondas do corpo dela
tão dominado e tão solto
tão vencedor, tão vencido
e tão rebelde ao breve espaço
consentido
nesta angústia renovada
de encerrar
fechar
esmagar
o reluzir de uma estrela
num abraço
e a ternura deslumbrada
a doce, funda alegria
noite de sonhos voada
que pelos seus olhos sorria
ao romper de madrugada:
— ó meu amor, já é dia!...
Manuel da Fonseca
Monday 21 July 2014
SOMOS TODOS POETAS
Por que não queres os versos que te nascem
como rebentos pelo tronco acima?
Por que não queres a inesperada rima
dos sentimentos?
Olha que a vida tem desses momentos
que se articulam numa cadência
tão imprevista,
que é uma conquista
da consciência
não ser um túnel de negação...
Brotam as folhas que são precisas
e outras folhas que o não são.
Miguel Torga
Friday 18 July 2014
Ponho o acento mais grave na palavra Esperança
o acento mais grave ponho-o na palavra Esperança
escutai toda a extensão de caminho que ela traz consigo:
mas dos pés quotidianos não limpem a lama dos dias quanta
[houver e há tanta
nem tapem a boca ao tumulto os punhos nos ouvidos feitos
[surdos
ao coração - esse podem deixá-lo pesado se o estiver e como
mas espantem o sono dos olhos já pisados de sonho por demais
e cuspam fora o sarro do tédio o não importa o é sabido e basta
em cada palavra um grito em cada grito a vida - esse é
[o estrume
desta flor íntima e pública que vos digo e não é fácil
não é fácil que a flor brota da aspereza e do nojo
e da fome e da sede dos seios secos e dos ventres grávidos
e dos olhos enxutos e das pedras em pranto
ah! quanto suor trabalhoso e quanto mais se exige
Escutai toda a extensão de caminho que ela traz consigo:
Desdobra-se o passo caiem horizontes e tão só desponta
Nesta noite de amargura e séculos
Com o rosto sereno dos mortos que sabiam
E das crianças nascendo que saberão um dia
O quanto ele custa - sangue azul de angústia
O quanto ele vale - nosso pão plural
não não é fácil a flor das raízes aos ramos a seiva sem
[enganos
a vida que vem de traz e continua
nos pés que se movem inexoravelmente
para a Manhã que vem vindo porque vamos
- em cada palavra um passo em cada passo a vida:
ponho o acento mais grave na palavra Esperança!
Carlos Aboim Inglês
Tuesday 15 July 2014
Cobardia
E não diz a palavra!
Já não consegue a pura claridade
da raiva que se exprime
num grito que trespassa o firmamento!
Parafraseia a dor, como um pinheiro
que tem medo do vento
e se torce na duna, horizontal, rasteiro,
a enrodilhar a voz do sofrimento.
Filho do instinto,
perdeu a força heróica de arrancar
o aço do punhal que o atravessa.
Morre por não ter pressa
de se salvar!
Miguel Torga
Saturday 12 July 2014
Nada entre nós tem o nome da pressa
conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem. Porém,
se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas -
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. Entre nós o tempo desenha-se assim, devagar.
daríamos sempre pelo mais pequeno engano.
Maria do Rosário Pedreira
Wednesday 9 July 2014
AMARGO ESTILO NOVO
Tudo é fácil quando se está brincando com a flor entre os dedos,
quando se olham nos olhos as crianças,
quando se visita no leito o amor convalescente.
É bom ser flor, criança, ou ser doente.
Tudo são terras donde brotam esperanças,
pétalas, tranças,
a porta do hospital aberta à nossa frente.
Desde que nasci que todos me enganam,
em casa, na rua, na escola, no emprego, na igreja, no quartel,
com fogos de artifício e fatias de pão besuntadas com mel.
E o mais grave é que não me enganam com erros nem com falsidades
mas com profundas, autênticas verdades.
E é tudo tão simples quando se rola a flor entre os dedos!
Os estadistas não sabem,
mas nós, os das flores, para quem os caminhos do sonho não guardam segredos,
sabemos isso e todas as coisas mais que nos livros não cabem.
António Gedeão
Sunday 6 July 2014
A Mulher Mais Bonita do Mundo
estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.
entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.
entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.
há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.
estás tão bonita hoje.
os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.
os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.
José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"
Thursday 3 July 2014
Baile de máscaras
Quando o senhor comendador entrou no salão
com a condecoração de mérito industrial,
toda a gente lhe queria dar o prémio
da melhor fantasia daquele Carnaval.
Raúl Castro
Tuesday 1 July 2014
quando a ternura for a única regra da manhã
um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for
tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada
de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela. sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi
nem uma palavra, nem o princípio de uma palavra, para não estragar
a perfeição da felicidade.
José Luís Peixoto
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