Thursday 30 June 2011

Ana e António


A Ana e o António trabalhavam
na mesma empresa.
Agora foram ambos despedidos.
Lá em casa, o silêncio sentou-se
em todas as cadeiras
em volta da mesa vazia.

«Neo-Realismo!», dirão os estetas
para quem ser despedido
é o preço do progresso.

Os estetas, esses, nunca
serão despedidos.

Ou julgam isso, ou julgam isso.


Mário Castrim

Monday 27 June 2011

O PONTO DE VISTA DO ESPECTADOR


Pensa ele que mereceu
de algum modo a cadeira,
ou pagando ou de borla,
de algum modo adquiriu,
pensa ele, um direito.

Parece-lhe que, sentado,
o que no palco vê apenas
é espectáculo. Num minuto
sairá, poderá historiar
aquilo que fixou, outros
verão através dele, até
talvez o invejem, afinal
foi ele que viu, sim, foi ele
quem esteve lá.

No entanto não sai, algo
o perturba, um dos actores
aponta, e é para ele,
é a ele que já levam pela coxia,
- que rede o envolveu?,
temia todo o gesto, era
um simples espectador -
estava tão quieto, vai
agora para onde, para
o cárcere, para a morgue,
para o segredo que não é
dos deuses...?


Egito Gonçalves

Friday 24 June 2011

O primeiro astronauta


O primeiro astronauta
devia ter sido
Silvestre José Nhampose

Só ele
teria sacudido os pés
à entrada da Lua

Só ele
teria pedido
com suave delicadeza:
- dá licença?


Mia Couto

Tuesday 21 June 2011

ROMANCE DE SINHÁ CARLOTA


Na beira do caminho
sinhá Carlota
está pitando no seu cachimbo.

Um círculo da cuspo
a seu lado...

Veio do sul
numa leva de contratados.
Teve filhos negros
que trocam hoje o peixe
por cachaça.

Teve filhos mestiços.
Uns
forros de a. b. c.
perdidos em rixas de navalhas.
Outros foram no norte
com seus pais brancos
e o seu coração
já não lembra o rostinho deles!

Sinhá Carlota
veio há muito do sul
numa leva de contratados.

Assim
embora pra seu branco
o seu corpo não baila mais no sòcòpé
ele ao passar
fica sempre dizendo:
sàbuá?

Sinhá Carlota
nos seus olhos cansados e vermelhos
solta um achô distante
enquanto vai pitando
no seu cachimbo carcomido...

Francisco José Tenreiro

Saturday 18 June 2011

Cela 1


Aqui estou neurasténico
como um cão
danado a lamber a salgada
crosta das velhas feridas.

E em que língua
e com que rosto
aos meus filhos órfãos de pai
eu vou dizer que se esqueçam?


José Craveirinha

Wednesday 15 June 2011

Marcha


Lá vem o cortejo
pela rua fora
tocando os seus gritos
de que está na hora.
Estremecem vidraças
tremem os portões
na casa da praça
e a velha transida
com medo da morte
por medo da vida
lá vai aos baldões
estreitar-se ao pescoço
do seu cão de caça.

Vêm baionetas
correndo em tropel
mais metralhadoras
gargalhando triste
e tinta a granel
de mangueira em riste.
Lá vêm a passo
os lacrimogéneos
os arquimausgénios
capacetes de aço.
Lá vêm em bicha
defender vidraças
defender portões
defender a praça
defender a velha
defender o cão
defender a caça.

E viva o poeta
que tem tanta graça.


Francisco Viana

Sunday 12 June 2011

NATAL


Hoje é dia de Natal.
O jornal fala dos pobres
em letras grandes e pretas,
traz versos e historietas
e desenhos bonitinhos,
e traz retratos também
dos bodos, bodos e bodos,
em casa de gente bem.

Hoje é dia de Natal.

- Mas quando será de todos?


Sidónio Muralha

Thursday 9 June 2011

Canção de guerra


Aos fracos e aos covardes
não lhes darei lugar
dentro dos meus poema.
Covarde já eu sou.
Fraco, já o sou demais,
e se entre fracos for
me perderei também.

Quero é gente animosa
que olhe de frente a Vida,
que faça medo à Morte.
Com esses quero ir,
a ver se me convenço
de que também sou forte.
Quero vencer os medos...
Vencer-me - que sou poço
de estúpidos terrores,
de feminis fraquezas.
Rir-me das sombras, rir-me
das velhas ondas bravas,
rir-me do meu temor
do que há-de acontecer.

Venham comigo os fortes...
Façam-me ter vergonha
das minhas cobardias.
E de seus actos façam
(seus actos destemidos)
chicotes prós meus nervos.
Ganhe o meu sangue a cor
das tardes das batalhas.
E eu vá - rasgue as cortinas
que velam o Porvir.
Vá - jovem e confiado,
cumprindo o meu destino
de não ficar parado.


Sebastião da Gama

Monday 6 June 2011

Balada del que nunca fué a Granada


¡Qué lejos por mares, campos y montañas!
Ya otros soles miran mi cabeza cana.
Nunca fui a Granada.

Mi cabeza cana, los años perdidos.
Quiero hallar los viejos, borrados caminos.
Nunca vi Granada.


Dádle un ramo verde de luz a mi mano.
Una rienda corta y un galope largo.
Nunca entré en Granada.

¿Qué gente enemiga puebla sus adarves?
¿Quién los claros ecos libres de sus aires?
Nunca fui a Granada.

¿Quién hoy sus jardines aprisiona y pone
Cadenas al habla de sus surtidores?
Nunca vi Granada.

Venid los que nunca fuisteis a Granada.
Hay sangre caída, sangre que me llama.
Nunca entré en Granada.

Hay sangre caída del mejor hermano.
Sangre por los mirtos y aguas de los patios.
Nunca fui a Granada.

Del mejor amigo, por los arrayanes.
Sangre por el Darro, por el Genil sangre.
Nunca vi Granada.

Si altas son las torres, el valor es alto.
Venid por montañas, por mares y campos.
Entraré en Granada.


Rafael Albertí

Friday 3 June 2011

Solidariedade


Vamos, dêem as mãos.

Porquê esse ar de desconfiança?
esse medo, essa raiva?
Porquê essa imensa barreira
entre o EU e o NÓS na natural conjugação do verbo ser?

Vamos, dêem as mãos.

Para quê esses bons-dias, boas-noites,
se é um grunhido apenas e não uma saudação?
Para quê esse sorriso
se é um simples contrair de pele e nada mais?

Vamos, dêem as mãos.

Já que a nossa amargura é a mesma amargura,
já que a miséria para nós tem as mesmas sete letras,
já que o sangrar dos nossos corpos é o vergão da mesma chicotada,
fiquemos juntos,
sejamos juntos.

Porquê esse ar de eterna desconfiança?
esse medo, essa raiva?

Vamos, dêem as mãos.


Mário Dionísio

Wednesday 1 June 2011

ADVENTO

Deixa descer à Terra o espírito do céu!
Deixa encarnar o que desencarnou!
Porque a folha tremeu,
é que a brisa passou...

Só com raízes se alimenta a vida.
Só do chão se levanta o pensamento.
Só a dor que é sentida
resgata o sofrimento.

Todo o sonho que paira quer pousar.
Deixa pousar a pomba imaculada,
que já daqui partiu, imaginada,
e teima em regressar.

Miguel Torga