Tuesday 30 June 2015

Assim


Assim    com as palavras envolvidas
pela raiva dos potros    sangue novo
encurralado nas veias repartidas
pelas ruas    calado    a gritar povo

e ser uma cantiga    um tiro    um lenço
para as lágrimas doendo sobre o rosto
do meu país-abril onde me venço
varado pelas balas do desgosto

ou pela fome cuspida na poesia
aberta em cravo    angústia    ferramenta
com que o braço armado forja o dia
se a raiva do poema não aguenta.

Joaquim Pessoa

Saturday 27 June 2015

LAST POEM (ditado pelo poeta no dia da sua morte)


É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita.
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.

Alberto Caeiro

Wednesday 24 June 2015

Tenho fome da tua boca


Tenho fome da tua boca, da tua voz, do teu cabelo,
e ando pelas ruas sem comer, calado,
não me sustenta o pão, a aurora me desconcerta,
busco no dia o som líquido dos teus pés.


Estou faminto do teu riso saltitante,
das tuas mãos cor de furioso celeiro,
tenho fome da pálida pedra das tuas unhas,
quero comer a tua pele como uma intacta amêndoa.

Quero comer o raio queimado na tua formosura,
o nariz soberano do rosto altivo,
quero comer a sombra fugaz das tuas pestanas

e faminto venho e vou farejando o crepúsculo
à tua procura, procurando o teu coração ardente
como um puma na solidão de Quitratue.

Pablo Neruda

Sunday 21 June 2015

UNO


Não creias senão em ti e naquilo que te cerca.
Porque aquilo que te cerca és tu.
E, por mais que te pareça estranho e primitivo,
tu és apenas aquilo que te cerca.
Não creias senão em ti.
Bem sei que há: o eco das montanhas e o mistério das sombras.
Mas o que é o eco das montanhas senão a tua voz?
E o mistério das sombras mais que uma ausência de luz?
Bem sei que para além da ilusão do horizonte
há ainda mais coisas.
Mas não as creias diferentes e superiores a ti,
crê antes que são longe e, sobretudo, coisas como tu.
Não creias no não sei quê:
o não sei quê é sempre qualquer coisa.
O papão do oó das histórias de menino
era afinal um pobre inofensivo
ou uma velha vassoura atrás duma vidraça.
E a palavra do morto estendido no caixão
era apenas a ruptura duma artéria qualquer.
Os teus braços, tam curtos, estão na terra toda,
e a terra, tam pequena, está em todo o universo.
Não creias em existências para além ou para aquém.
Nem que tu estás aquém ou que tu estás além.

Tu que estás em toda a parte e tudo está em ti.

Mário Dionísio

Thursday 18 June 2015

Poeta de combate


Poeta de combate me chamaram.
De combate serei. Não mercenário!
Poeta de combate é um operário
das palavras que nunca se entregaram.


Poeta de combate! E porque não?
Sou poeta. Serei também soldado.
O meu canto será um canto armado
e o meu nome de guerra uma canção.

Poeta de combate me quiseram
os que cedo da luta desertaram
ou aqueles que nunca combateram.

Poeta de combate eu hei-de ser
até quando o meu povo precisar
ou nada mais houver a combater.

Joaquim Pessoa

Monday 15 June 2015

Era mão de obra.
Ocupavam uma praça de Chicago
com o coração na boca
por oito horas de trabalho.

De repente na terra prometida
rebenta uma bomba
(só) anunciada nos jornais.
De repente a polícia dispara
de repente a mão de obra também
de repente morreram dez ou pouco mais.
O resto da gente fugiu...
Na rua silente
ficaram os mortos e os cães.
Depois julgaram e enforcaram
quatro terroristas de coração na boca.

seis anos depois
foram absolvidos de terem sido enforcados.

Afinal
tanto faz hoje dizer que foram cinco ou vinte e cinco
foi o usual
o retado ritual
de quem pode inventar uma bomba
anunciá-la nos jornais
e matar logo uns tantos
e julgar e enforcar depois
quatro escolhidos
que queriam oito horas de trabalho.

Passados cem anos eles dizem
que foi um erro...
Nós
aqui em Portugal
temos a certeza
infinitesimal
duma vadia bandeira vermelha a flutuar.
Nós cá estaremos
contra eles
até isto mudar.

Manuel Videira

Friday 12 June 2015

Tiempo sin tiempo


Preciso tiempo necesito ese tiempo
que otros dejan abandonado
porque les sobra o ya no saben
que hacer con él
tiempo
en blanco
en rojo
en verde
hasta en castaño oscuro
no me importa el color
cándido tiempo
que yo no puedo abrir
y cerrar
como una puerta

tiempo para mirar un árbol un farol
para andar por el filo del descanso
para pensar qué bien hoy es invierno
para morir un poco
y nacer enseguida
y para darme cuenta
y para darme cuerda
preciso tiempo el necesario para
chapotear unas horas en la vida
y para investigar por qué estoy triste
y acostumbrarme a mi esqueleto antiguo
tiempo para esconderme
en el canto de un gallo
y para reaparecer
en un relincho
y para estar al día
para estar a la noche
tiempo sin recato y sin reloj
vale decir preciso
o sea necesito
digamos me hace falta
tiempo sin tiempo.

Mario Benedetti

Tuesday 9 June 2015

O MINEIRO E O DIAMANTE


Mineiro pobre e viúvo.
De volta do turno da noite, ao descalçar as botas,
encontrou, em uma delas,
um pequeno diamante. Tão breve no tamanho
que alembrava a mais pequena das estrelas
na escuridão da noite.
Não se conteve. Chamou a filha.
E no azul dos olhos dela viu
o pequeno diamante mais crescido
que a estrela, que a estrela de alva.
De repente, mergulhou a cabeça entre as mãos
e pensou:
Entregá-lo à empresa das minas?
Não.

Ninguém devolve uma estrela. Sobretudo,
uma estrela que fugiu da Via-Láctea
e na bota de um mineiro se escondeu.

Luís Veiga Leitão

Saturday 6 June 2015

Variações do branco


 Ergues o olhar: surpreendes por instantes essa hora
em que o mundo envelhece: ténues as variações do branco
parecem dissolvê-lo numa longínqua música, anterior à chuva

Ou será então a imagem submersa de um filme a preto e branco

Há próximo um branco vibrante: o da cal ainda recente
mas que a humidade salina já a espaços mordeu,
recortando as feridas cinza na varanda a que vens.

Não há ninguém aqui. Quem te chame, digo.

Há o branco baço na parede que em frente em vão separa
rua e praia. Tendo já transposto essa fronteira incerta
ou erguendo-se para lá dela há o branco pobre da areia:

As dunas plenárias sustentam os corpos deitados de mar e céu.
Aí é agora o grande branco: o clarão velado e difuso
que guarda e distribui a memória embaciada do azul
e do verde, do oiro e da prata — uma lembrança vã.

Tu escreves no visível do mundo essa névoa branca e desolada

que o motor da paisagem produz. As folhas do ar são como
se fossem as levíssimas pétalas, as vagas sílabas de uma neve –
e essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia os simulacros

das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia
enquanto esperas por alguém que não virá

Manuel Gusmão

Wednesday 3 June 2015

EPIGRAMA


Há só mar no meu País.
Não há terra que dê pão:
mata-me de fome
a doce ilusão
de frutos como o sol.

Uma onda, outra onda,
o ritmo das ondas me embalou.
Há só mar no meu País:
e é ele quem diz,
é ele quem sou.

Afonso Duarte

Monday 1 June 2015

Com que voz


Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura prisão me sepultou,
que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado?
.
Mas chorar não se estima neste estado,
onde suspirar nunca aproveitou;
triste quero viver, pois se mudou
em tristeza a alegria do passado.
.
Assim a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima o pé que o sofre e sente!
.
De tanto mal a causa é amor puro,
devido a quem de mim tenho ausente
por quem a vida, e bens dele, aventuro.

Luís Vaz de Camões