Friday 30 December 2022

HOMEM, ABRE OS OLHOS E VERÁS


Homem,
abre os olhos e verás
em cada outro homem um irmão.

Homem,
as paixões que te consomem
não são boas nem são más.
São a tua condição.

A paz,
porém, só a terás,
quando o pão que os outros comem,
homem,
for igual ao teu pão.

Armindo Rodrigues

Tuesday 27 December 2022

O MONSTRO JULGADO


Desenterremos o monstro
e, mesmo morto, o julguemos.
Mais nojento o foi em vida.
Mais nojento o foi em vida,
com as suas falas mansas,
os seus melífluos gestos,
o seu perfil de navalha,
o seu sonho imperial.
Julguemo-lo pela vergonha
com que nos enlameou.
Julguemo-lo pelos ladrões
que à sua sombra roubaram.
Pois roubaram, prestem contas.
Pois roubaram prestem contas.
Julguemo-lo pelos bandidos
que mataram a seu soldo.
Pois mataram, não mais tenham
ocasião de matar.
Erguei-vos, assassinados,
para o frio julgamento,
em que é forçoso que soe
a vossa condenação.
Julguemo-lo pelos assaltos
às nossas casas quietas,
às horas do nosso sono
merecido e sem remorso.
Julguemo-lo pela traição
que a nós próprios nos impunha
de nos pautarmos por ele,
sob pena de punição.
Julguemo-lo pela suspeita
a que nos habituou
de em tudo espreitarem perigos,
de todos serem espiões.
Julguemo-lo pela incerteza
de cada dia futuro,
no curso dos dias tristes
de miséria e cobardia,
apenas iluminados
pela teimosia heróica
dos militantes da esperança,
ousados e clandestinos.
Julguemo-lo pelas torturas
dos seus carrascos cruéis,
os seus juízes submissos,
os seus campos de concentração.
Julguemo-lo pela maldade.
Julguemo-lo pela frieza.
Julguemo-lo pela mentira,
sua única paixão.
Julguemo-lo pela fé falsa
de antigo seminarista,
com que aos fiéis iludidos
iludia a boa fé.
Julguemo-lo pela herança
de abandono e esgotamento
em que nos deixou os campos,
em que nos deixou as fábricas,
em que nos deixou a pródiga
e vasta leira do mar,
a que nos levou as escolas,
cuja cultura tolheu,
vazias de camponeses,
operários, pescadores,
professores e alunos,
que obrigou a emigrar.
Julguemo-lo pelo cuidado
de guarda-livros mesquinho,
com que serviu os interesses
só da grande burguesia,
a nação espezinhando
com os seus pés descomunais.
Julguemo-lo pela perfídia.
Julguemo-lo pela vaidade.
Julguemo-lo pelos palhaços
que escolheu para ministros,
que nomeou deputados,
que de pobres tornou ricos,
e diante dele tremiam,
e lhe lambiam o cu.
Para sempre o apaguemos
de nosso compatriota,
e até de homem simplesmente,
visto que nunca homem foi.

Armindo Rodrigues

Saturday 24 December 2022

«NINGUÉM SE MEXA! MÃOS AO AR!»



«Ninguém se mexa! Mãos ao ar!», disse o histérico
e frívolo homenzinho com mais medo
da arma que empunhava que de nós.
«Mãos ao ar!», repetiu para convencer-se.

Mas ninguém se mexeu, como ele queria...
Deu-lhe então a maldade. Quase à toa,
escaqueirou o espelho biselado
que tinha as Boas Festas da gerência

escritas a sabão. Todos baixámos,
medrosos, a cabeça. Se era um louco,
melhor deixá-lo. (O barman escondera-se
por detrás do balcão). Ali estivemos

um ror de medo, até que o rabioso
virou a arma à boca e disparou.

Alexandre O'Neill

Wednesday 21 December 2022

TOMA TOMA TOMA


Ainda prefiro os bonecos de cachaporra,
contundentes, contundidos, esmocados,
com vozes de cana rachada e um toma toma toma
de quem não usa a moca para coçar os piolhos
mas para rachar as cabeças.

O padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, a velha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista,
tramavam para nós a estafada estória
da nossa própria vida.

Mundo de pasta e de trapo
que armava barraca em qualquer canto
e sem contemplações pela moral de classe
nem as subtilezas de quem fica ileso
desancava os maus e beijocava os bons.

Ainda prefiro os bonecos de cachaporra.

Ainda hoje esbracejo e me esganiço como esses
matraquilhos da comédia humana.

Alexandre O'Neill

Sunday 18 December 2022

A CAMA QUENTE


Homenagem aos mineiros do Chile
que dormem, singelo,
pelo sistema da «cama quente»


Na mina trabalha-se por turnos.
Quando se volta, nem se tiram os coturnos.

Bebido o café negro e trincado o casqueiro,
joga-se o corpo ao sono, mas primeiro,

enxota-se o camarada da cama ainda quente,
que não há camas, no Chile, pra toda a gente.

Do calor que sobrou o nosso se acrescenta
pra dar calor ao próximo que entra.

Vós, que dormis em camas, como reis,
tantas horas por dia, não sabeis

como é bom dormir ao calor de um irmão
que saiu ao nitrato ou ao carvão

e despertar ao abanão (é o contrato!)
de um que chega do carvão ou do nitrato!

É a este sistema, minha gente,
que se chama no Chile «a cama quente»...

Alexandre O'Neill

Thursday 15 December 2022

AMIGOS PENSADOS: BELARMINO


Tiveste jeito, como qualquer de nós,
e foste campeão, como qualquer de nós.

Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?
Também na poesia não se janta nada,
mas nem por isso somos infelizes.

Campeóes com jeito
é nossa vocação, nosso trejeito.

Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, não se levante
- e a gente levanta-se, pois pudera, sempre.

Mas do miudame levámos cada soco!
Achas que foi pouco?

Belarmino:
quando ao tapete nos levar
a mofina,
tu ficarás sem murro,
eu ficarei sem rima,
pugilista e poeta, campeões sem jeito
a amadores da má vida.

Alexandre O'Neill

Monday 12 December 2022

A VIDA DE FAMÍLIA

A vida de família tornou-se um bem difícil
com as contas a pagar os filhos a fazer
ou a evitar a ranhoca a limpar
a vida de família não tem razão de ser
não tem ração de querer

a vida de família jangada da medusa
é o tablado da antropofagia

mas ficam os retratos cristo virgem maria
e os sobreviventes, que vão chupando os dentes

Alexandre O'Neill

Friday 9 December 2022

A BICICLETA


O meu marido saiu de casa no dia
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior.

Alexandre O'Neill

Tuesday 6 December 2022

TAÇA DO MUNDO DE FUTEBOL

(Argentina, 1978)

O estádio River Plate situa-se a 700 metros de
um edifício pertencente à Marinha argentina
onde se praticavam as piores torturas.


Em Buenos Aires, no River Plate,
a seis campos de futebol (medidas máximas)
do Centro onde, entre outros primores de jogo,
se chutavam testículos, mamas e cabeças,
a Taça do Mundo ferverá nas mãos de quem a ganhar,
de quem a empunhar, de quem por ela beber
A MERDA DE TER LÁ IDO.

Alexandre O'Neill

Saturday 3 December 2022

O CICLO DO ÁLCOOL

 

Quando seu Silva Costa
chegou na ilha
trouxe uma garrafa de aguardente
para o primeiro comércio.

A terra era tão vasta
havia tanto calor
que a água
parecia não ter potência
para acalmar a sede da sua garganta.

Seu Silva Costa
bebeu metade...

E a sua garganta ganhou palavra
para o primeiro comércio...


A lua batendo nos palmares
tem carícias de sonho
nos olhos de Sam Màrinha.
Silêncio!
O mar batendo nas rochas
é o eco da ilha.
Silêncio!
Lá no longe
soluçam as cubatas
batidas dum luar sem sonho.
Silêncio!
No canto da rua
os brancos estão fazendo negócios
a golpes de champagne!


Mãe-Negra contou:
«eu disse:
filhinho
beba isso coisa não...
Filhinho riu tanto tanto!...»

Nhá Rita calou-se.
Só os olhos e as rugas
estremeceram um sorriso longínquo.

- E depois Mãe-Negra?

«Oh!
filhinho
entrou no vinhateiro
vinhateiro entrou nele...»

Os olhos de nhá Rita
estão avermelhados de tristeza.

«Hum!
filhinho
ficou esquecendo sua mãe!...»


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo») 

Thursday 1 December 2022

ILHA DE NOME SANTO

 
Terra!
das plantações de cacau de copra de café de coco a perderem-se de vista
que vão morrer numa quebra ritmada
num mar azul como o céu mais gostoso de todo o mundo!

Onde o sol bem amarelo bem redondo incendeia as costas
dos homens das mulheres agitando-lhes os nervos
num cadenciar mágico mas humano: capinar sonhar plantar!

Onde as mulheres que têm os braços mais grossos e mais tortos que ocá
são negras como o café que colhem depois de torrado
trabalham ao lado de seu homem numa ajuda toda de músculos!

Onde os moleques vêem seus pais no ritmo diário
deixando correr gostosamente pelo queixo quente
o sabor e a seiva húmida do sàfu maduro!

Onde nas noites estreladas
e uma lua redonda como um fruto
os negros as sangués os moleques os caçô
- mesmo o branco e a sua mulata -
vêm no socopé de uma sinhá
ouvir um malandro tocando no violão
cantando ao violão!

E o som fica ecoando pelo mar...

Onde apesar da pólvora que o branco trouxe num navio escuro
onde apesar da espada e duma bandeira multicor
dizerem poder dizerem força dizerem império branco
é terra de homens cantando vida que os brancos jamais souberam
é terra do sàfu do socopé da mulata
- ui! fetiche di branco! -
é terra do negro leal e forte e valente que nenhum outro!


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo»)

Wednesday 30 November 2022

EPOPEIA

 
Não mais a África
da vida livre
e dos gritos agudos da azagaia!
Não mais a África
de rios tumultuosos
- veias intumescidas dum corpo em sangue!

Os brancos abriram clareiras
a tiros de carabina.
Nas clareiras fogos
arroxeando a noite tropical.

Fogos!
Milhões de fogos
num terreno em brasa!

Noite de grande lua
e um cântico subindo
do porão do navio.
O som das grilhetas
marcando compasso!

Noite de grande lua
e destino ignorado!...


Foste o homem perdido
em terras estranhas...

No Brasil
ganhaste calo nas costas
nas vastas plantações do café!
No Norte
foste o homem enrodilhado
nas vastas plantações do fumo!

Na calma do descanso nocturno
só a saudade da terra
que ficou do outro lado...
- só as canções bem soluçadas
dum ritmo estranho!...


Os homens do norte
ficaram rasgando
ventres e cavalos
aos homens do sul!

Os homens do norte
estavam cheios
dos ideais maiores
tão grandes
que tudo foi um despropósito!...

Os homens do norte
os mais lúcidos e cheios de ideias
deram-te do que era teu
um pedaço para viveres...
Libéria! Libéria!
Ah!
os homens nas ruas da Libéria
são dollars americanos
ritmicamente deslizando...

Quando cantas nos cabarés
fazendo brilhar o marfim da tua boca
é a África que está chegando!

Quando nas Olimpíadas
corres veloz
é a África que está chegando!

Segue em frente
irmão
Que a tua música
seja o ritmo de uma conquista!

E que o teu ritmo
seja a cadência de uma vida nova!

... para que a tua gargalhada
de novo venha estraçalhar os ares
como gritos agudos de azagaia!


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo»)

Sunday 27 November 2022

sem título

este cavalo-marinho
que não desiste
de galopar a vasta estepe. 
 
Miguel Tiago

Thursday 24 November 2022

CANTO DO OBÓ


O sol golpeia as costas do negro
e os rios de suor ficam correndo.

Ardor!

O machim golpeia o pau
e os rios de seiva escorrendo.

Ardor!

Os olhos do branco
como chicotes
ferem o mato que está gritando...

Só o água sussurrantemente calmo
corre prao mar

tal qual a alma da terra!


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo»)

Monday 21 November 2022

EXORTAÇÃO


Negro
para quem a horas são sol e febre
que colhes
nesse ritmo de guindaste.

Negro
para quem os dias são iguais
que respeitas teu patrão e senhor
como água que mexe o engenho.

Negro!
Levanta os olhos prao sol rijo
e ama a tua mulher
na terra húmida e quente!


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo»)

Friday 18 November 2022

NEGRO DE TODO O MUNDO


O som do gong
ficou gritando no ar
que o negro tinha perdido.

Harlem! Harlem!
América!
Nas ruas de Harlem
os negros trocam a vida por navalhas!

América!

Nas ruas de Harlem
o sangue de negros e de brancos
está formando xadrez.

Harlem!
Bairro negro!
Ring da vida!


Os poetas de Cabo Verde
estão cantando...

Cantando os homens
perdidos na pesca da baleia.
Cantando os homens
perdidos em aventuras da vida
espalhados por todo o mundo!

Em Lisboa?
Na América?
No Rio?
Sabe-se lá!...

- Escuta.
É a Morna...

Voz nostálgica do cabo-verdiano
chamando por seus irmãos!

Nos terrenos do fumo
os negros estão cantando.

Nos arranha-céus de New-York
os brancos macaqueando!

Nos terrenos da Virgínia
os negros estão dançando.

No show-boat do Mississipi
os brancos macaqueando!

Ah!
Nos estados do sul
os negros estão cantando!

A tua voz escurinha
está cantando
nos palcos de Paris.
Folies Bergères!

Os brancos estão pagando
o teu corpo
a litros de champagne.
Folies Bergères!

Londres-Paris-Madrid
na mala das viagens...

Só as canções longas
que estás soluçando
dizem da nossa tristeza e melancolia!

Se fosses branco
terias a pele queimada
das caldeiras dos navios
que te levam à aventura!

Se fosses branco
terias os pulmões cheios
do carvão descarregado
no cais de Liverpool!

Se fosses branco
quando jogas a vida
por um copo de whisky
terias o teu retrato no jornal!

Negro!


Na cidade da Baía
os negros
estão sacudindo os músculos.

Ui!
Na cidade da Baía
os negros
estão fazendo macumba.

Oraxilá! Oraxilá!

Cidade branca da Baía.
Trezentas e tantas igrejas!

Baía...
Negra. Bem negra!
Cidade de Pai de Santo.

Oraxilá! Oraxilá!


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo»)

Tuesday 15 November 2022

O MAR


A voz branca que está no mato
perde-se na imensidão do mar.
Lá vai!
O sol bem alto
é uma atrapalhação de cor
- Abacaxi sàfu nona
carregozinho do barco...

Um tubarão passando
é um risco de frescura.
Lá vai!

O barco deslizando
só com a vontade livre e certa do negro
lá vai!...


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo»)

Saturday 12 November 2022

DUAS QUADRAS


Negas a escola à criança
p'ra toda a vida ser cega...
e ter sempre confiança
em quem a vista lhe nega.

Quem trabalha e mata a fome
não come o pão de ninguém;
mas quem não trabalha e come,
come sempre o pão de alguém.

António Aleixo

Wednesday 9 November 2022

Interrogatório


- Fala! A Dor lhe grita (impuro
seu grito branco que de rastos medra)

- Nunca! Quero quebrar de corpo duro
como as estátuas de pedra.

Luís Veiga Leitão

Sunday 6 November 2022

estética do domínio

quando Jenner descobriu o poder de inocular organismos com agentes infecciosos enfraquecidos estava a salvar a humanidade de pragas desnecessárias. o capitalismo aprendeu os princípios da vacina: hoje já não nos esconde a verdade, faz dela filmes de sucesso, êxitos de bilheteira onde pagamos para aprender como funciona a bolsa de valores, o mercado financeiro, a exploração dos diamantes em África, como funcionam as farmacêuticas, as empresas de tabaco, enquanto comemos umas pipocas.

ao jantar, com sorte ainda vemos umas bombas a destruir uma escola ou duas no noticiário.

o agente infeccioso, enfraquecido - porque é diferente aprender sobre diamantes de sangue a comer pipocas do que a levar chicotadas; porque é diferente ver uma criança a morrer de fome do que não ter como alimentar um filho -, entra-nos pelo sangue adentro.

doses homeopáticas de verdade. eis a vacina contra a acção, a imunização da revolta e a estetização da miséria. 
 
Miguel Tiago


Thursday 3 November 2022

círculo

estes versos não fazem falta nenhuma,
não têm destino de ser cimento das almas partidas 
nem podem ser fogo de artifício a abrir-se em flores
na alegria de uma noite de verão,
são o que não falta 
apesar de faltar verdade 
e serem verdade 
as letras 
não destes, mas de todos os versos do mundo 
que são verdade
por não fazerem falta. 

Miguel Tiago

Tuesday 1 November 2022

Pergunto

 
esta ferida fado
aberta
quantas cicatrizes deixará
na vida de um povo
um dia que a veja com os olhos do futuro. 
 
Miguel Tiago

Sunday 30 October 2022

triunfo

 
tem o seu quê de injustiça 
que a sério mesmo a sério 
quem leva os murros no estômago
seja quase sempre
quem o tem vazio.
 
Miguel Tiago

Thursday 27 October 2022

sem título

este é o meu solo
marejado pela bruma 
salgado pelo suão
não sou árvore e - certamente
fora do reino 
seria erva daninha -
mas é este o substrato das minhas raízes
braços ao alto coração de seiva
o mar constante.
 
Miguel Tiago

Monday 24 October 2022

equívocos sobre a lei da dupla negação

 
dois mortos não fazem um vivo. 
 
 Miguel Tiago

Friday 21 October 2022

sem título

em quanto mar
em quantas léguas de tempestade
persiste intacta esta embarcação

é por ter alma de recife
que vivo submerso
e morro afogado
a cada inspiração. 
 
Miguel Tiago

Tuesday 18 October 2022

sem título

vim ao mundo montado numa semente de tempestades
como todos os outros
e foi sempre a chuva no rosto que se confundiu com lágrimas
quis cavalgar o tempo como a crista da duna
de um deserto sem fim
e as cidades apareceram no horizonte
todas habitadas de estações do ano
e pequenas amplitudes térmicas

estávamos nus nesse sonho de humanidade
e sorvíamos dos lábios uns dos outros
as gotas de timidez enquanto sorríamos levemente
as florestas tropicais cobriam nossos corpos de lama
e os rios lavavam as almas ardentes no seu caudal

a bruma envolve a lâmina por sobre a qual caminhamos
afiada sob os pés descalços
sem perdão e em sangue
não há forma de caminhar sem deixar rasto
e os batedores pouco treinados podem encontrar-nos
camuflados uns entre os outros
em pilhas de gente viva que finge como batráquios
a morte.  

Miguel Tiago

Saturday 15 October 2022

do restelo para o mundo

transpusemos a ombreira
da humanidade
numa fuga vertiginosa
para o que os velhos
(é sempre assim)
vêem como abismo.

é nessa profundidade
contudo
que as candeias se acendem
e os caminhos
ei-los: a época produz os homens necessários.

somos uma massa universal
feita de milhões de passados
somos uma colmeia de gigantes
uma montanha de corações nas mãos
numa nave levada por todos os braços
vogando sobre o dorso do cosmos
rumo ao sol do futuro. 
 
Miguel Tiago

Wednesday 12 October 2022

sem título

há maçãs
laranjas
clementinas
a bem da verdade, hesitei em escrever que também havia batatas. talvez porque batata caia fora do leque das frutas e entre já no ramo dos tubérculos ou então pelo simples facto de não ser tão bonito o nome batata quanto é o nome de clementina. veja-se que não faltam mulheres com o nome do segundo e não conheço nenhuma que dê pelo primeiro. seja como for, também havia batata.
estas viagens vão vendo passar as estações do ano, que tanto espelham o mondego como o perturbam ao expoente da agitação possível para um fetch tão pequeno. desde a corrida laminar de moléculas deslizantes à torrente que até os peixes leva, vem um ano sobre outro ano.
a livraria sempre assente na estante do vale lamenta ocupar apenas um troço do itinerário. mas as lombadas litológicas dos livros são imagem permanente e talvez até motivo para as recorrentes linhas. por esse rio acima, também por esse rio abaixo, as estações correm e deixam-me sempre a sensação de que a chuva sobre a água é como uma lavagem à alma. 
 
Miguel Tiago

Sunday 9 October 2022

húmus

é à sombra ancestral
à raiz de todo o mundo
ao musgo primordial
à beleza amazónica

que nos levam todos os caudais

de regresso à morte

ao descanso orgânico do húmus. 
 
Miguel Tiago

Thursday 6 October 2022

versos pérolas

gosto dos versos enlameados
com um odor humano animal 
antes de perfumes e colónias
um sangue suor lágrimas 
pelos poros e pelas estrofes
assim de dignidade inconfundível 
como a de umas mãos robustas 
ou de uma pele curtida
gosto de versos pérolas
a porcos.
 
Miguel Tiago
 

Monday 3 October 2022

S.

tenho uma irmã gémea que nasceu com quatro anos de diferença.

pode separar-nos meio globo
teremos sempre as mãos dadas
não há fronteiras no nosso abraço
mesmo que pulsem o mesmo sangue dois corações. 
 
Miguel Tiago

Saturday 1 October 2022

sem título

podes disfarçar com amor o teu desprezo,
do verdadeiro e do contrafeito,
mas não de contrabando.
isso de saltar as fronteiras da tua pele
é aventura em excesso para esse miocárdio
movido a energia eólica
porque no peito só te sopra vento.
e nem sequer uma tempestade
resta aquela massa desértica
de quem não se abandona porque não pode voar.
 
Miguel Tiago

Friday 30 September 2022

sem título

tenho portões reforçados e muralhas vigiadas
casa roubada trancas à porta
os arqueiros matam à distância a esperança
mesmo a camuflada de paixão
e perfuram com a gravidade toda na ponta das flechas
a mais elaborada armadura
tenho um fosso onde nadam escondidos
os mais temíveis monstros marinhos
certo dia tragaram de uma vez um arco-íris
que avançava intrépido sobre a treva
vinha convencido de bem sucedida conquista
tenho mantimentos para dez mil anos de cerco
e alcatrão suficiente para banhar em chamas
o maior exército do mundo
todo o meu castro pulsa entre a inexistência e a miragem
é um forte à prova de catapulta.

e um cavalo de tróia bastou.
não aprendi nada com a história. 
 
Miguel Tiago

Tuesday 27 September 2022

de como as pessoas morrem

todos os dias. 

Miguel Tiago

Saturday 24 September 2022

sem título

a pele
no escuro
a manhã certa.
 
Miguel Tiago

Wednesday 21 September 2022

sem título

não gosto de pensar que todo o tempo é pouco
existe na exacta medida do necessário
desde que esteja no lugar certo
e se usem as palavras inteiras para cada minuto
desde que os desertos sejam atravessados de mãos dadas
e a embarcação seja feita de vontade
da que quero contigo
montar o mesmo cavalo cego. 
 
Miguel Tiago

Sunday 18 September 2022

floripes

não há lendas erradas
para mouras encantadas
um beijo no braço 
uma ferida aberta
desde que do lado do coração
é o caminho mais duro que faz valer a vida
valer as velas na mão
valer a ria e o vento
o frio e as ondas salobras
valer o norte de áfrica 
e uma chama de sacrifício e maldição
acesa na mão.
 
Miguel Tiago

Thursday 15 September 2022

tudo isto

é verdade
sou eu que trago a semente
mas só tu verteste essas lágrimas
se quero viver nos poros da tua pele
quando morrer só quero
ir para o céu da tua boca.  

Miguel Tiago

Monday 12 September 2022

de como as pessoas se amam

as pessoas amam-se logo ali de pés nus na relva húmida bem no início do verão, amam-se na cama, amam-se no chão. as pessoas amam-se num fio em que a intranquilidade é um nó.
as pessoas amam os amigos de peito à prova de bala. amam-se assim de coração, e sob as estrelas, nuas ou não.
as pessoas amam-se p'ra sempre apaixonadas ou até amanhã, camaradas.
as pessoas amam a poesia que lhes escrevem, principalmente se por analfabetos. um dedo, uma língua, ou toda uma praia ao pôr-do-sol na palma na mão. as pessoas amam a sagração da primavera ou todas as quatro estações. de quando em quando as pessoas até amam quem lhes diz não.
amam enquanto o amor as separa e talvez menos quando as une. são assim os humores que nos percorrem por dentro e não raras vezes no peito.
as pessoas amam-se sem intermediários mas precisam deles para receber a primeira carta e sorriem quando amam as letras, principalmente se forem à mão.
as pessoas amam as asas abertas no céu ou a membrana em chamas do inferno porque o purgatório é uma ave engaiolada. as pessoas amam, acima de tudo, existir em mais do que em si próprias e ser casa de alguém.
 
Miguel Tiago

Friday 9 September 2022

atlântico

manda vir
todas essas lágrimas da áfrica americana
numa carta via furacão
para que possamos também nós aqui
chorá-las
até que juntos vençamos o oceano
em uma jangada de revolta. 

Miguel Tiago

Tuesday 6 September 2022

faz scroll no feed homeopático


é preciso andarmos muito doentes
para procurar tanta cura
em citações de frases-feitas numa linha de montagem
é preciso estar muito só
para procurar tanta
"auto" e tanta "ajuda",
tão sós que não temos quem nos "hetero-ajude"
e nos consolamos com a felicidade de papel dos desconhecidos
que nunca fotografam o que lhes acontece depois da chuva,
tão desalentados que aceitamos como terapia a banalidade
de um placebo inspiracional


é preciso andar muito vazio para ansiar tanto uma vida cheia,

é preciso andar muito triste para procurar tão desesperadamente a felicidade. 
 
Miguel Tiago

Saturday 3 September 2022

chegada

eis-nos à chegada
do fim do cansaço
para trás a inesquecível estrada
as feridas da viagem fecham capítulos.
o pano húmido nos lábios
em que florescem rubras
as peónias
recompõe-me a coragem e a doçura.

quando a corrente puxa a embarcação e tu estás já no cais,
solta amarras.
 
Miguel Tiago

Thursday 1 September 2022

maresia

desaconselha-se magia sem prescrição médica
e o diagnóstico correcto
os mares nunca respeitarão isso enquanto a lua
nos der de mão beijada as marés
e o pico do inverno se elevar sobre as nuvens
explodindo em labaredas nos corações de mãos dadas.

os tripulantes dos navios no horizonte
ao longe verão faróis
o que são na verdade as fogueiras dos meus olhos. 
 
Miguel Tiago

Tuesday 30 August 2022

sem título

chegará o tempo
de ser tudo nosso
caralho
das casas ao pão
bandeiras e palavras não serão alibi
nem justificação
tão culpado é o que lucra
como o que lhe dá a mão.
 
Miguel Tiago

Saturday 27 August 2022

sem título

talvez eu seja as dez primeiras páginas do livro
que decidiste a custo ler
porque era um clássico
e apenas possas das minhas linhas conhecer os nomes de um ou dois protagonistas
talvez eu seja o orvalho
que se demora nas folhas com o verde da manhã
os fugazes minutos da alvorada da meia-estação
talvez nem os relógios contem o tempo
do presente que trago nos braços e não dou a ninguém

talvez nem te lembres dos olhos semicerrados
ou dos beijos desamparados
talvez a música esteja para acabar
e eu seja aquele fim de noite
meio difuso
meio embriagado
sem manhã

nem por isso um minuto a menos
nem por isso um café por passar
nem que nos fechem o adamastor. 
 
Miguel Tiago

Wednesday 24 August 2022

falha astronómica

aquela poeta que te diz
que o mais importante da poesia 
é falar verdade, não para terceiros
senão para o próprio
e percorres um caminho 
de anos-luz e relâmpagos 
algumas órbitas 
em torno do teu coração 
um pulsar um quasar
uma volta no ar 
um horizonte de eventos que nem a luz deixa escapar
tantas léguas tantas lágrimas tantas verdades
que nunca escolherás a certa.
 
Miguel Tiago

Sunday 21 August 2022

*

faz-me uma pergunta
mas com as mãos em concha
enquanto guardam a água da chuva
ou enquanto fazes o pino
faz-me uma pergunta com a boca
e faz-me um pássaro com as mãos
no ecrã táctil da minha pele.
 
Miguel Tiago

Thursday 18 August 2022

sem título

tenho nas mãos o vento do teu sopro

e inteira nos lençóis uma galáxia.
 
 
Miguel Tiago

 

sem título

 
escreve um poema sem destinatário
entrega já colhido um coração
transportado a temperatura abaixo de zero
afinal de contas, o órgão nem notará diferença.
faz um filho fictício com o céu e as constelações todas
esconde uma galáxia no armário
dá apenas a epiderme no beijo mais fundo
todo de aço
inoxidável. 
 
Miguel Tiago

Monday 15 August 2022

sem passado se retorna ao passado

 
eis o ciclo venenoso da serpente que não matámos no ovo
as falsas bandeiras soprando ódio pelo túnel de vento 
construído com os tijolos das nossas escolas e os salários dos professores contratados 
os medos alastrando como uma doença pela pele afora contaminada pelo ar infecto dos esgotos construídos com o cimento dos nossos hospitais
a falta de tudo sentida assim no âmago de quem nunca teve nada
e essa voz que exige o fim da democracia mascarada de fim da corrupção
que anda pelas ruas de mão em mão sem morada fiscal 
mas sempre domiciliada no paraíso fiscal do aldrabão 

eis um veneno que se injecta nas veias da ignorância  
uma passadeira vermelha caminhada por ilusão 
um livro de estante dos destaques do hipermercado 
um imposto demasiado caro para um serviço que só apetece pedir o livro de reclamações
uma escola fechada um hospital com direito de admissão
um teatro igreja universal e um actor de esmola na mão 
uma ciência terraplanada e um doutor de bolsa não será possível agradecemos a sua compreensão
um polícia raivoso na fábrica ocupada e em auto-gestão e detectives brandos a ajudar a esconder as contas do patrão
uma mão na massa enquanto milhões amassam o pão

é nesse pântano que se torna ténue sem que nos apercebamos a luz
e ao contrário do que se passa com as igrejas
os museus iluminam bem mais quando não ardem.
 
Miguel Tiago

Friday 12 August 2022

sem título

esta merda não é um poema.
o fascismo não se vence com poemas. 

Miguel Tiago

Tuesday 9 August 2022

falas mansas

tanta palavra trocada
entre mestre e escravo
não vê o escravo
que a paz não é armistício
é rendição. 
 
Miguel Tiago

Saturday 6 August 2022

walk the (border)line

 
passeio no abismo
classificação do espectáculo:
maiores de dezoito.
 
Miguel Tiago

Wednesday 3 August 2022

sem título

por minha própria mão
o fogo no coração dos outros
e nunca entrei na unidade de queimados
aquele problema dos incendiários
que ouvem sirenes e se julgam bombeiros
apesar das nuvens e bulcões que os perseguem
até que o sol não brilhe
eis-me sem a matéria em que assento os pés
eis a tremenda massa ígnea que nos ascende
do estômago à alma
que nos transcende da alma à boca
rasgando os tímpanos
de todas as orquestras do mundo
eis um descanso uma clareira uma vontade
onde os lagos reflectem a verdade


aquele velho problema dos incendiários
não têm imagem nos espelhos
e nem sentem o sabor do sangue

e as flores o espanto
é a verdade que muda quando falas verdade.  

Miguel Tiago

Monday 1 August 2022

epitáfio para um Comunista

nenhuma liturgia é revolucionária
premissas válidas são as que podemos testar
tudo o resto é idealismo e escuridão. 
 
Miguel Tiago

Saturday 30 July 2022

sem título

todos os astros do universo
e mais um 
no meu céu nocturno
e uma via láctea inteira ainda por fazer
no caminho.
 
Miguel Tiago

 

Wednesday 27 July 2022

o caminho

talvez tenhamos escolhido o mais acidentado dos trilhos
porque os suaves não tinham sequer início
talvez a lonjura do possível
voe nas asas desse pássaro quase negro
no ardor sob o peito que prende ao diafragma o pulmão
e faz temer o colapso do amor-abismo
de onde todos queremos precipitar-nos
em salto de fé
o mapa não está revelado
mas sabemos que há demasiadas fortificações pelo caminho
assaltá-las-emos de exércitos unidos
derrubando os monarcas de todo o continente um-por-um
e espalhando cactos que, mesmo sem água séculos,
florescerão em jardim.

Miguel Tiago

Sunday 24 July 2022

Se os homens quisessem

 Brincava na praia, saído da escola,
- os pés maculando a espuma de prata -
na espádua - menino - a suja sacola,
na espalda - soldado - a espada de lata.

Ao longe, uma estrela cadente na seda
do céu.
A bala perdida
tocou no menino, levou-o...
Na queda,
inútil, ficou-se a espada partida.


Se os homens quisessem,
o engenho assassino,
as armas da Morte, talvez se rompessem
sem nada valer.
- Espada de lata do loiro menino -
Se os homens quisessem...

E os homens vão querer!

Álvaro Feijó

Thursday 21 July 2022

Digamos não

Agora que estamos juntos
direi o que tu e eu sabemos
e que às vezes esquecemos:

Vimos o medo
ser lei para todos.
Vimos o sangue
- que só faz sangue -
ser lei do mundo.

Não,
eu digo não,
digamos não.
Nós não somos deste mundo.

Vimos a fome
ser pão para muitos.

Como fizeram calar
tantos homens
cheios de razão.

Raimon

Monday 18 July 2022

Remate


O que é obscuro
tentemos
elucidá-lo.

O que é complexo
tentemos
simplificá-lo.

O que é impuro
tentemos
purificá-lo.

Armindo Rodrigues

Friday 15 July 2022

NA MORTE DUM LUTADOR PELA PAZ

O que não se rendeu
foi abatido.
O que foi abatido
não se rendeu.

A boca que admoestava
foi tapada com terra.
A aventura sangrenta
começa.
Sobre a cova do amigo da paz
calcam os batalhões.

Foi então vã a luta?

Se aquele, que não lutou sozinho,
foi abatido,
o inimigo
ainda não venceu.

Bertolt Brecht

Tuesday 12 July 2022

Nenhuma palavra te faz justiça

Tremor mais forte que a cópula,
companhia mais intensa do que a solidão,
conversa mais rica que o silêncio,
realidade mais estranha que o sonho,
verdade do dia e da noite,
céu colorido de bandeiras,
canção que não se detém,
razão de estar aqui:
Já vês que nenhuma palavra te faz justiça.
Revolução.

Roberto Fernández Retamar

Saturday 9 July 2022

sem título


todos os que habitam a terra de nortia
merecem uma baía
no refúgio de uma encosta a sul
onde tu sejas a enorme montanha
e o poderoso quebra-mar.

Miguel Tiago

Wednesday 6 July 2022

sem título

 
estou certo de que ali à beira da livraria do Mondego ainda para lá se vendiam morangos, maçãs e laranjas, mas um ano sobre a passagem referida faz-me assumir e esperar que sejam já outros. o frio substituiu a revolta da chuva e do vento e congelou-nos a respiração que agora se prende na garganta como aqueles nós que nos ficam nos momentos de embargo. tal é a temperatura e o inverno.
e vem-se por ali abaixo, por entre as montanhas, cortando o ar com um gume motorizado e jamais se adivinha o que vem a seguir, apesar de ter feito já tantas vezes a mesma estrada. nunca contes com um livro escrito na vida. a noite passada, viraste as páginas ímpares sem te dares conta das pares. 
nessa livraria grande que orla o rio maior, desfolhas o passado e aguardas o futuro. mas não, mas nunca, como o peixe que fica na torrente sem nadar.
 
Miguel Tiago

Sunday 3 July 2022

viagens

 estava a estrela venérea já tombando por ali abaixo
no ângulo agudo debruçado sobre o ocidente
e capella ainda chifrada no zénite
quando os cânticos da noite me trouxeram
as letras para este verso:

o granito
se eu fosse uma rocha seria plutónica.  

Miguel Tiago

Friday 1 July 2022

sem título

 
trago aceso o rastilho dos séculos
que percorri numa nave de destroços
até chegar a este estuário
porque a água procura sempre o ponto mais baixo
e lavra sobre a terra vales
com a força de parir mundos
como só as artesãs.
 
Miguel Tiago

Thursday 30 June 2022

sem título

 
apesar da taxonomia
não estamos tão distantes das árvores
não é o tronco que nos faz firmes
mas as raízes.  

Miguel Tiago

Monday 27 June 2022

sem título

 
este chão de mandrágora
que piso
é onde jaz fértil a semente
do desconhecido.  

Miguel Tiago

Friday 24 June 2022

sem título

depenei para quase sempre o maço de tabaco
na ressaca deste chuto nas veias do infinito
resta-me um último cigarro
a que puxarei lume
com a ponta do cérebro que me resta

ainda acesa.

Miguel Tiago

Tuesday 21 June 2022

sem título

muitos gatos
ao redor do eclipse
e uma chama ondulando numa bandeira
à beira do mar
nas mãos de uma criança de olhos vadios
joelhos rotos
e ganas de comandar um exército
capaz de marchar sobre as ondas
em noites de vendaval
guerreiros que nos resgatam
dos túmulos onde morremos.
 
Miguel Tiago
 

Saturday 18 June 2022

sem título

 
se esperas do captor a chave que te liberta,
espera ajoelhado.  

Miguel Tiago

Wednesday 15 June 2022

inconquistável

envia toda a armada
naus fragatas e galés
todos os homens e munições
usa toda a força
e a coragem de derramar nas minhas praias todo o teu sangue

se queres conquistar-me a américa indígena. 
 
Miguel Tiago

Sunday 12 June 2022

headline

 
desmontada rede de crime organizado
dezenas de líderes políticos e religiosos
presentes a tribunal por falsificação de esperanças.
 
Miguel Tiago

Thursday 9 June 2022

gente-nada

 
aguarda que o pó e a pele
abandonem o tempo
para não restar
no que comes,
vestígio das mãos sujas
e quando não chega o tempo
a escola ensina quão moderno
é o mundo da internet
e as televisões apagam a luz
para adormeceres acordado

e das crianças-nada
escravos-nada
homens-nada
mulheres-nada

já ninguém se pergunta
a não ser essa galáxia de gente-nada
que é a maioria.  

Miguel Tiago

Monday 6 June 2022

praia convento

 
a flat earth society ignora os princípios da física.
por mais voltas que dê, vou dar sempre a ti.
 
Miguel Tiago

Friday 3 June 2022

sem título

 
este é o tempo dos milhares de naufrágios
e das dezenas de salvamentos.
 
Miguel Tiago
 

Wednesday 1 June 2022

relógio

 
todos os dias uma lua cheia
todos os dias cento e doze marés
vinte e oito pores-do-sol
cinquenta e seis voltas do ponteiro das horas
dois milhões de batimentos cardíacos
e todas as lagartas do mundo a sair do casulo de asas abertas porque as células imaginais ganharam todas as batalhas travadas.
 
Miguel Tiago

Monday 30 May 2022

sem título

quando ouço as conversas
já quase ninguém lembra o teu nome
e eu penso
isso não faz sentido
porque como pode alguém esquecer
o nome da única flor que sobrevive ao inverno
nem a extinção da humanidade
nem uma nuvem que envolva o globo
ou a acidificação dos oceanos todos
pode tornar sequer compreensível
que se suma o teu nome de todas as palavras.
 
Miguel Tiago
 

Friday 27 May 2022

cenotáfio

o veneno mais letal é a ilusão
não deixa vestígio na toxicologia
um polónio do ego
uma viagem pelos sítios mais inúteis
pelos abismos menos entusiasmantes
das que te fazem procurar na rosa dos ventos um ponto cardeal que não existe
viajar por aí às escuras mesmo depois de encandeares a vista numa lâmpada incandescente
com as mãos à frente a tactear o vazio 
de que afinal nunca saíste
e ler as todas as páginas do livro que te entediou nas primeiras linhas
para depois perceberes que a melhor parte era o prefácio.
aqui jaz a realidade
assassinada.
 
Miguel Tiago

Tuesday 24 May 2022

praia

aqui onde moro
a praia é tanto princípio como fim
descalço na espuma pequena
o equador do tempo
revolve sempre os mesmos seixos.  

Miguel Tiago

Saturday 21 May 2022

cidade

a minha cidade tem as veias
a céu aberto
por onde escorre a sujidade
própria do amor

e o rio lambe os milénios
que guardamos nas casas dos nossos avós
enquanto esconde a bruma os falsos sorrisos
e se exaltam pela salsugem as rugas batidas pelo mar

esta taifa é livre nos corações livres
é um grito de Rebelo
um silvo de flecha no silêncio
uma trincheira de rebeldes
e só quem a ama a pode odiar.
 
Miguel Tiago

Wednesday 18 May 2022

titãs

nós somos os náufragos
deste navio 
o mundo é o aicebergue.
 
Miguel Tiago

Sunday 15 May 2022

sem título

 
aqui chegados
eis que faltam os motivos 
para o amor grande
eis que nos falta o solo
para crescer
e o sol para erguer as folhas
verdejantes de clorofila
as nossas hastes já não são nada
além de pesados chifres 
onde só a custo alguém ergue bandeiras
confesso
que poucas paisagens me descobrem do chumbo líquido que me cobre
mas sorrio ao saber
que a humanidade nunca foi mais 
do que a carcaça do seu futuro.
 
Miguel Tiago

Thursday 12 May 2022

argonautas

o atlântico segundo consta
foi cruzado pelos heróis condenados
em naus de sangue
mas foram os poetas portugueses 
que descobriram o caminho marítimo para a lua.
 
Miguel Tiago

Monday 9 May 2022

IV

na falta de cigarros
fiz um intra-venoso
destas nuvens de tempestade atlântica.
 
Miguel Tiago

Friday 6 May 2022

sem título

podes colar as folhas com a melhor resina
que não tornas a decídua em perene.
 
Miguel Tiago
 

Tuesday 3 May 2022

solstício

tivemos um solstício curto
ao contrário dos que vivem as horas
independentemente da época
umas sobre as outras sem distinção
uma noite curta
um dia não tão longo quanto a translacção do planeta parecia permitir
traídos por uma precessão própria quem sabe

isto de a terra ter dois pólos acaba por influenciar os nativos de todos os signos
poemas madrugadas
poemas meia noite
e tanto o sorriso se esvai em lágrimas
como os pulsos latejam sangue
pressuroso para escorrer sob as unhas dos que

sem saber da estrela polar

se desorientam por mais que gritem ao vento


tivemos um solstício curto
disso nada sabem os sãos
para quem os dias e as noites
e as horas e os minutos têm todos, uns atrás dos outros, para sempre, o mesmo comprimento
de uma cobra que se alimenta da cauda sem princípio nem fim
que começa e acaba no espectro do audível
na vibração perceptível
de todas as partículas
menos as de si próprios
que passaram a barreira do som
e já só os gatos as ouvem

tivemos as mãos atadas
por uma guita fina
chamada vontade
ou falta dela
tivemos as mãos libertas
por uma faca romba
do mesmo nome
ou falta dele.

eu nunca serei o cheiro da chuva no chão
porque não cheguei a nuvem

eu nunca serei foz
porque me afoguei na nascente.
 
Miguel Tiago

Sunday 1 May 2022

aço

a caldeira desta locomotiva
tem por combustível as almas
o seu vapor é sanguíneo
conquistado do suor
os caminhos são de ferro
e é com carvão que se tempera o aço. 
 
Miguel Tiago

Saturday 30 April 2022

sem título

sonhei que via terra
daqui do convés 
rente ao mar
mas o gajeiro
lá da gávea
não gritou.
 
Miguel Tiago

Wednesday 27 April 2022

sem título

descobre o manto
não é ignorância
é ocultação
habitua docemente os olhos
ao brilho
educa docemente a alma 
para a revolução
erguido e clarividente
nada peças docemente
reclama apenas o que é teu 
com toda a força
de cada mão.
 
Miguel Tiago

Sunday 24 April 2022

tempos modernos

açaima a poesia
porque os versos são potencialmente perigosos
trá-la sempre amordaçada
pelo top ten 
de romances dóceis 
de auto-ajuda
e já se fazem comprimidos para os revoltados
para os infelizes
que afinal são apenas alvo de uma depressão 
de geração espontânea e que nada deve ao capitalismo
que além de vender entorpecimento em cápsula 
mediante receita 
também ajuda os autores de auto-sorrisos 
a tristeza é o negócio do século
e a solidão é o sintoma da epidemia silenciosa
que nos aliena de nós próprios e nos expropria 
da mais poderosa propriedade: a inquietação
felizmente, restar-nos-ão sempre as redes sociais
como placebo em que o princípio activo é a publicidade 
do lado direito do ecrã.
 
Miguel Tiago

Thursday 21 April 2022

sem título

enquanto o fumo do cigarro pensa
eu vaporizo-me de um plasma aceso
tirar uma pausa
sem ter de fazer desconto de tempo
ao mesmo tempo que passa devagar
por entre a chuva lá fora o tempo
essa repetição em aceleração uniforme 
num movimento 
que 
não faço ideia 
se se parece mais com o do projéctil 
se com um linear
tendo porém por certo porque li num livro 
que é afectado pela gravidade
pela gravidade das coisas
e pela gravidade dos actos 
não há tempo que apague o passado 
não há tempo que leve o presente
todas as marcas são para sempre 
podemos não trazer na pele todas as cicatrizes
ou tatuagens
podemos não carregar as memórias
e ir largando por aí o lastro sobre as costas dos outros
podemos andar com relógio de bolso
sem hora certa
pendente de uma corrente
com azebre ou verdete
e nem por isso o porvir será livre de todas as nuvens
que já cruzaram o céu.
 
Miguel Tiago

 

Monday 18 April 2022

sem título

dias pequenos horas largas
a pousar no outono
a inesquecível melodia
do pôr-do-sol. 

Miguel Tiago

Friday 15 April 2022

sem título

foi inesperado o meu encontro
à mesa com jesus cristo
trazia um ar cansado
e eu espantado

depois disse-me que aquilo de transformar a água em vinho
era um truque de ilusionismo

e eu pensei
estamos fodidos. 

Miguel Tiago

Tuesday 12 April 2022

pagão

a chama no peito
humores semente
não é asséptico o clamor
da nossa beleza
porque isto de nascer de um ventre
de pele sanguínea
é sempre
um ardor que permanece
tanto nas asas
como no útero
dessa massa lama
se faz gente
que cavalga o mar
sobre o dorso dos monstros marinhos
e sobrevive a si própria
com amor
e nojo

deus, nosso pai, fez-nos à sua imagem.
felizmente saímos à mãe.  

Miguel Tiago

Saturday 9 April 2022

sem título

para onde vão os fantasmas
quando o amor se separa da carne
e o corpo exangue teima em não sucumbir.

Miguel Tiago

Wednesday 6 April 2022

sem título

 este poema não é sobre nós

quando a mão se nos estende
as polpas dos dedos são raízes para as galáxias
cabo que amarra ao ferro
no fundo do mar
iça do meio do peito
a alma segura
pelo estai dos desgraçados
que nunca desistem
de ser cais
da mais deserta embarcação.

Miguel Tiago

Sunday 3 April 2022

sem título

aqui estamos sentados
à beira do planeta
não é azul

afinal

é transparente.

daqui vemos os mares
e os continentes
cumprindo historicamente
o desígnio de conter
e nós alados
jamais nos permitiríamos
correr atrás da nossa cauda
às voltas num astro redondo.

Miguel Tiago

Friday 1 April 2022

sem título

 na floresta as sombras são mais pequenas no inverno

é mais solitária na multidão
a mão estendida do homem ao abandono

o dia espalha-se mais luminoso entre árvores despidas. 

Miguel Tiago

Wednesday 30 March 2022

sem título

sim podes regressar
apesar de não teres partido
esta é a última viagem
dos amantes perdidos
pode durar para sempre
nunca navegará duas vezes a mesma onda. 

Miguel Tiago

Sunday 27 March 2022

pensamento sobre o estado da arte


não me preocupa, do ponto de vista estético, que as combinações de palavras tristes, frases de auto-ajuda e inspiração, componham os livros mais vendidos do mercado como resultado de uma receita repetida ao expoente da loucura.
preocupa-me do ponto de vista social. só uma sociedade carregada de frustrados, tristes, deprimidos e carentes pode ver inspiração em parasitismo. 
sim, quem usa as palavras para explorar a dor alheia, ou a carência alheia, em vez de o fazer para expressar o que sente, para expressar as coisas com aquela verdade que até assusta o próprio autor, está a parasitar as necessidades do outro e não a dar um pedaço ao mundo. está a tirar do mundo para si.
 
Miguel Tiago

 

Thursday 24 March 2022

a luz é um lugar sombrio

 

até passar a ombreira
das portas que ninguém quer abrir
                                                       principalmente eu
nunca pensei que o escuro tivesse um som tão duro
tão rombo
como terra se abatesse sobre o corpo
na ponta de uma pá
segura nas minhas próprias mãos

sempre necrófago devorei corações mortos
agora em recuperação
habituo-me a custo
a corações ressuscitados.

a luz habita a voz da escuridão

e vice-versa. 
 
Miguel Tiago

Monday 21 March 2022


Se não puderes ser um pinheiro, no topo da colina,
Sê um arbusto no vale — mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um arbusto, se não puderes ser uma árvore.

Se não puderes ser um arbusto, sê um pouco de relva,
E dá alegria a algum caminho.
Se não puderes ser almíscar, sê, então, apenas uma tília —
Mas a tília mais viva do lago!

Não podemos ser todos capitães; temos que ser tripulação.
Há algo para todos nós aqui.
Há grandes e pequenas obras a realizar,
E é a próxima a tarefa que devemos empreender.

Se não puderes ser uma estrada, sê apenas uma senda.
Se não puderes ser Sol, sê uma estrela;
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso —
Mas sê o melhor do que quer que sejas!

Douglas Malloch


Friday 18 March 2022

sem título


a flor efémera
sobre o solo
da memória persistente. 
 
Miguel Tiago

Tuesday 15 March 2022

cifra


quero que morras depois de mim
sabendo o que se lerá no teu epitáfio
depois de beber-te do crânio nu o sangue vivo. 
 
Miguel Tiago

Saturday 12 March 2022

sem título


abre o guia completo para a solidão
na página sobre multidão
se puderes, sê um pássaro
e voa sobre todos os animais 
mas vê uma floresta.
 
Miguel Tiago

Wednesday 9 March 2022

casa


regresso a casa pela porta dos fundos
para não dar pela chegada
que é como quem acaba por não dar pela saída
nem os cães ladram nem a caravana passa
e as labaredas do sossego descem pelas paredes
como um aconchego
que banalidade essa a da casa
do lar
onde miam todos os gatos que importam no mundo
e encaixam as almas nos corpos
para por fim meditarem as virtudes e os pecados de mãos dadas
caminhando pelo álamo da consciência
e seguirem sem deslizar para as bermas
em que rastejam os animais que vivem de solidão.

Miguel Tiago

Sunday 6 March 2022

sem título


em quantas paredes
de quantas casas
pintaste o teu nome com o sangue de quem lá mora
em quantas muralhas
abriste a fenda da derrota
quantos milhares de gotas de chuva
morreram às tuas mãos
por teres a garganta seca
por ires por essa noite afora
na treva unida e límpida
de archote aceso ao vento
ofegante e ligeiro com os pés descalços
pelo ladrilho molhado
como quem grita ao mundo
que está aqui.

Miguel Tiago

Thursday 3 March 2022

m.a.r.


depois dos faróis apagados
é que as estrelas são úteis
e a navegação tolera a vaga
que já não esconde o horizonte

que importa o horizonte
no mar quando não há terra. 
 
Miguel Tiago

Tuesday 1 March 2022

Por Abril - Éramos cinquenta mil

Éramos cinquenta mil
a desfilar por Abril
- ali, na rua,
a afirmar o que se ouviu:
«agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu»

Éramos cinquenta mil
a desfilar por Abril
- ali, na rua,
cada um mostrando,
bem à vista,
o cartão de militante comunista.

Éramos cinquenta mil
a desfilar por Abril
- ali, na rua,
a explicar
o sentido e os porquês
de sermos
o Partido Comunista Português.

Éramos cinquenta mil
a desfilar por Abril
- ali, na rua,
a garantir
que a luta continua.  


Fernando Samuel
1.3.2008

sem título


no inverno
as rochas voltam à placenta do musgo

a respiração vê-se ao longe
e nada reveste o coração.

Miguel Tiago

Sunday 27 February 2022

lógica


que deus algum nos negue a existência
é existirmos que a todos nega.

na vida não invertemos a ordem dos factores. 
 
Miguel Tiago

Thursday 24 February 2022

sem título


há morangos, maçãs e laranjas. era o que podia ler-se na tabuleta de madeira à beira da estrada. a poucos metros à frente, as mãos engelhadas do frio e curtidas pelo vento salgado dos anos contavam algumas moedas para fazer um troco. o cliente satisfeito já levava um belo saco de laranjas e sorria. claro que não faço ideia se foi assim a estória, mas é o que dá gosto depreender pela tabuleta de madeira.
sei que as margens do Mondego foram vencidas pelo volume e pela torrente e que acabaram por ceder. ao viajar por entre o vale da livraria, o rio serpenteava em sentido contrário e nunca o tinha visto tão alto ou tão revolto. um rio revolto é sempre inspirador. e aqueles peixes que pensavam sossegar e permitir que o frio lhes petrificasse as preocupações eis que dão por si a ter de sair da letargia do gelo e a esbracejar para vencer os remoinhos. alguns cansaram-se e sucumbiram. outros não. já dos que ficaram a ver, como a nêspera, não reza a história. também não tenho a certeza de que tenha sido exactamente assim, mas é o que dá ter este gosto pelo impressionismo: uma pessoa vê um rio revolto e fica com a impressão de que há lá sempre mais qualquer coisa. claro que se podia sempre dizer "prateado o céu plúmbeo, escondia a cor barrenta do rio que, agitado, o reflectia" e pronto. mas é também o desafio das impressões, ver para além delas.
é por isso que posso escrever "o teu beijo pousou leve no meu peito" e saber que a verdade escreve assim: "o meu coração pulsa o sangue da tua alma."
 
Miguel Tiago

 

Monday 21 February 2022

sem título


para serem expulsas do paraíso
que mal terão feito as aves
e não me digam que comeram uma maçã
por ouvir sibilar uma serpente 
 
Miguel Tiago
 

Friday 18 February 2022

Porto, Abril de 2016


cidades-lágrimas são calor no meio das pedras.


as gotas da chuva reflectem, cada uma, todo o mundo ao ser redor e, enquanto a gravidade as vence, reflectem na superfície a paisagem cada vez mais pequena que, ainda assim, partilha sempre metade de cada uma com o céu de onde vieram.


até que na terra se desfaçam em mil outras gotas ou se infiltrem pelos espaços vazios entre os grãos de areia, siltes ou argilas que convivem com a morte e a vida dos que jazem e dos que dos que jazem se alimentam. ou que, por vezes, na nossa pele salpiquem a temperatura das alturas a que pertenciam quando sucumbiram, por falta de agitação molecular que lhes permitisse vencê-la, à inexorável força da massa terrestre que as não deixa fugir.


no dorso do vento frio, que enche os espaços deixados pela baixa pressão, a memória dos teus lugares preferidos é o sangue do teu calor, da tua ilha, neste arquipélago onde, ao contrário dos geológicos, cada ilha faz o seu próprio vulcão.

 Miguel Tiago

Tuesday 15 February 2022

lugar


quando volto aos meus lugares
entendo novamente aquela distância imensa
entre nós e o horizonte
como entre solidão e estar sozinho.
quando regresso aos meus lugares
sinto na polpa dos dedos o toque da pele
indígena
que nos reveste
por dentro. 
 
Miguel Tiago

Saturday 12 February 2022

kōan


germinar duas vezes a mesma semente de infinitas mortes.

 Miguel Tiago

Wednesday 9 February 2022

sem título


talvez já não haja morangos. há cerejas, maçãs e laranjas era o que agora se podia ler na mesma placa de madeira erguida na beira da estrada. por perto, o sol só permitia uma pequena sombra junto ao balcão improvisado na lateral da camioneta. e as cerejas, algumas ao sol, reflectiam o vermelho da luz solar com fulgor. não consigo já distinguir na memória se alguém se preparava para trazer cerejas, maçãs ou laranjas a dois euros o quilo, mas espero que sim, para que não desistam de anunciar fruta à beira das estradas e para que nos dias de verão a minha irmã possa sempre parar o carro para provar uma melancia fresca, mesmo que a não compre.
foi longo o vendaval do inverno. mas tudo tem o seu fim, ainda que temporário. a superfície do mondego não estava agitada e a água podia assim reflectir sem perturbação o verde das margens vivas, o cinza da livraria litológica e o azul do céu. se é bonito o quadro que a a luz reflectida e a paisagem pintam no encaixe do mondego algures entre os distritos duros de coimbra e viseu, é porque ainda não vimos o que faz a luz refractada pelo rio adentro. aqueles raios oblíquos do sol que perfuram com novo ângulo a superfície e vão iluminar os olhos sempre abertos dos peixes que aproveitam a corrente laminar para descansar. os que lutaram, claro, porque dos outros não reza a história. e as algas, que na torrente do inverno mal se prendem na rocha do leito, agora ondulam como uma seara verde no vento suave. são assim mesmo as coisas: o mesmo rio que arrancou pedras e agitou o próprio coração de quem o viu, é o que agora permite que o espelho à sua superfície reflicta almas tranquilas. 
o mesmo rio que levantava pedras, areias, siltes e argilas, não tem agora força para turvar a água com a mais pequena partícula. voltará a ter, é certo. mas só quando os finos assentam, podemos ver através da água. desta vez, parece que me terei deixado levar pela simplicidade das impressões. e eis que, assente a poeira, também se desfazem ilusões: não há meias palavras para dizer a verdade.
 
Miguel Tiago

Sunday 6 February 2022

sem título


tinha na mesa servidas frias as asas mortas de um corvo que alavam um coração. o meu.
 
Miguel Tiago

Thursday 3 February 2022

trigonometria


a liberdade mede-se em graus
como os ângulos
se o seno for menor que um
estas cativo da tua inclinação.
 
Miguel Tiago

Tuesday 1 February 2022

H.


serenas as fúrias com o tom da tua voz que recordo ainda dos telefones antigos,
não serás vítima da fraqueza de ninguém porque as fortalezas, como tu, só sucumbem ao abandono
quem nunca abandona, não é abandonado.
o teu fogo azul, a tua alma marinha não são refúgios para quem está perdido. são as maiores riquezas de quem sabe o caminho.
 
Miguel Tiago

Sunday 30 January 2022

sem título


esse vendaval somos nós.

somos nós que nos levantamos do chão
e aos que estendem a mão
arrancamos as raízes mortas
destruímos as prisões
e sopramos futuro sobre o calor húmido


do passado.

Miguel Tiago


Thursday 27 January 2022

Bocage


triste o mundo de farpelas de alfaiate
feitas à medida da mentira.
vãs conquistas e falso louvor
com que se lavra a terra estéril d'alma débil.

frágil o brilho dos faróis fingidos
sumido o destino dos que por esse s'iluminam.

de mim não esperem mais que o breu legítimo
e a venal ausência
onde as estrelas se firmam.

Miguel Tiago

 

Monday 24 January 2022

Arrábida


abrir um oceano no meio de continentes
e fazer da terra serra
do que era fundo do mar
elevar no ar uma onda e fúria latentes
um penedo de infinitas conchas
que ousam levantar-se
verticais
e ter no extremo ocidente o mais belo cais
uma rocha um substrato um convento
convento, o retiro dos homens que querem estar mesmo ali
à mão de semear do deus que lhes sopra o vento
no rosto, na encosta sul, na face do azul
e do tempo
do tempo que esculpiu escarpas e algares
e povoou de folhas o solo que aceita filtrados os raios do sol
sobre o musgo
talvez do suão ainda nasçam aqueles medronhos
a semente mediterrânica de alecrim
e da pedra humedecida veja nascer o brilho
de onde vim
árabe
mas mais antigo que as regiões as religiões
um refúgio, mãe, uma concha nossa
a placenta. 
 
Miguel Tiago

Friday 21 January 2022

turno da noite


esse café da manhã à noite
a luz do sol só reflectida na lua
e um dia assim de repente 
a enchente
de luz e de gente
vigilante no sono 
ter uma arritmia na vida
uma hora preferida
para morrer
que resta estar disponível 
escreves a vida em código binário
acende apaga
e eu sou o teu turno da noite.
 
Miguel Tiago

ensaio sobre a natureza da ameaça


os abutres despedaçam-nos o corpo
coberto de repelente de insectos. 
 
Miguel Tiago

Saturday 15 January 2022

kaiseki


a pedra quente
o calor sacia a fome
sobre o ventre. 
 
Miguel Tiago

Wednesday 12 January 2022

komorebi


o ar vaporizado

no bosque
as árvores
sobre os fetos rentes
os rasgos de uma estrela incandescente
demasiado próxima
uma cortina
um sopro do nascente
ao ocaso.

Miguel Tiago

Sunday 9 January 2022

cordas

 nas cordas tecer o tempo
vibrante de uma melodia
de madeira embebida
no verniz das décadas
poder nas mãos de abrir asas
de abrir almas
de encher casas
um vórtice
sem vazio
uma escala plena
de pétalas cadentes
que te cobrem o sorriso quando entras na sala
um vendaval
e tu um salgueiro. 

 Miguel Tiago

Thursday 6 January 2022

sem título


da chuva
sabemos tudo até que
a terra a transpire
da vida
sabemos o que nos deixam as mortes
até que sábios e poetas o desmintam
de nós
nunca poderemos saber coisa alguma
até que o tremor nos tome
a chuva nos respire
e a vida nos ame.
 
Miguel Tiago

Monday 3 January 2022

quantidade e qualidade


gosto da imagem do copo cheio de água turva pelas argilas em suspensão. em repouso as argilas tendem a pousar, quando a gravidade vence finalmente a agitação e a entropia do sistema baixa ao ponto de a água se separar dos pequenos pedaços de mineral.
é o mesmo copo, é a mesma água, são as mesmas argilas. contudo, pela quantidade de energia que se introduz no sistema, ou que se lhe retira, a alteração é de qualidade. água turva sem depósito no fundo do copo, água límpida e cristalina com as argilas em camadas tranquilas e opacas depositadas.
assim somos nós, um recipiente de lama cuja absorvância depende da agitação. 
 
Miguel Tiago

 

Saturday 1 January 2022

lembro-me do futuro


escrevi estes versos para os meus filhos
cujos nomes são desconhecidos
da maior parte
o tempo deixa-nos na memória apenas o passado que se acumula sob as finas camadas do presente
mas sabe seus nomes quem luta pelo futuro.
e nós, nós habitamos todo o tempo, e somos daquela porção da humanidade cuja memória guarda já o brilho da luz, o cheiro, e a história de amanhã. nós somos aqueles de quem as mãos, na verdade, são asas.
 
Miguel Tiago