Monday 30 November 2020

O despertar


Acordaste.
Onde estás?
Na tua casa.

Ainda não ganhaste o hábito
de estar em casa
ao acordar.
É um dos males
resultante de treze anos de prisão.

Quem está deitado ao teu lado?
Não é a solidão.
É a tua mulher.
Dorme como um anjo.
Fica-lhe bem, à minha bela, a gravidez.

Que horas são?
Oito horas.
Isso quer dizer
que até à noite estaremos em segurança.
Segundo o costume,
enquanto for dia
a polícia não faz buscas.

Nazim Hikmet

Friday 27 November 2020

UMA HORA DA MANHÃ


A toalha é de algodão azul
e em cima dela os nossos livros
risonhos, sinceros, corajosos.

Cheguei do cativeiro
minha bela,
do baluarte
do meu inimigo
no meu próprio país.
É uma hora da manhã.
Ainda não apagámos a luz,
a minha mulher está deitada ao meu lado
está no seu quinto mês
e quando lhe toco ao de leve
quando lhe pouso a mão no ventre
o bebé dá voltas e mais voltas,
tal como a folha no ramo
o peixe na água
o filho do homem na matriz
o meu filho.
A primeira camisola do meu filho
em lã cor de rosa,
foi tricotada pela mãe.
O corpo, um palmo da minha mão.
E os braços - assim grandes!
Quero que o meu filho,
se for menina,
seja parecido com a mãe da cabeça aos pés,
se for menino,
que saia a mim em altura,
se for menina,
que olhe com uns olhos cor de avelã,
se for menino,
que o seu olhar seja de um azul imenso.
Ao meu pequenino,
não quero que o matem aos vinte anos,
se for rapaz, com um tiro na fronte,
se for menina,
nos abrigos, em plena noite.
Ao meu pequenino,
seja rapariga seja rapaz,
e qualquer que seja a sua idade,
não quero que o levem para a prisão
por ser a favor da beleza, da justiça e da paz.
Mas não há dúvida
meu filho e minha filha
que se o dia tardar
tu vais ter mesmo
que te bater...

É um duro ofício, no nosso país, nos nossos fias,
ser pai.
É uma hora da manhã.
Ainda não apagámos a luz,
talvez dentro de momentos,
com a aurora, talvez,
vão entrar em casa à força
e prender-me e levar-me
e aos meus livros,
ladeado pelos membros da polícia política.
Vou olhar para trás e tornar a olhar
a minha mulher imóvel na soleira da porta
e no seu ventre cheio e pesado
o bebé dará voltas e mais voltas.

Nazim Hikmet

Tuesday 24 November 2020

Da Vida

No caso de estarmos doentes
e tão gravemente
que seja preciso recorrer ao bisturi,
isso significa que porventura
não vamos mais erguer-nos do bilhar branco.
Então, embora sentindo uma grande tristeza
por ir embora demasiado cedo
vamos rir à mesma
ao ouvir uma anedota,
vamos olhar pela janela
para ver se o tempo está de chuva
ou vamos guardar, ansiosamente,
as notícias da última hora.

No caso de estarmos na frente de batalha
a lutar por uma causa que valha a pena,
logo desde o primeiro dia e desde o primeiro embate
podemos cair de nariz no chão e morrer.
Sabemo-lo, é intensa a nossa amargura,
mas apesar disso
somos ainda ansiosos e apaixonados,
gostávamos de ter uma saída para essa guerra
que ainda pode durar anos.

No caso de estarmos na prisão
prestes a fazer os cinquenta
e devendo ainda esperar dezoito anos
pelo abrir das grades,
mesmo então
não deixaremos de viver com o mundo lá de fora,
com seus homens, seus animais, suas lutas e seus ventos
Com o mundo além-muros.
Assim, onde quer que estejas e sejam quais forem as circunstâncias
deves viver
como se nunca houvesses de morrer.

Nazim Hikmet

Saturday 21 November 2020

Adivinhas sobre Paris

Qual a cidade que se parece com o vinho?
Paris.
Bebes o primeiro copo.
Sabe mal.
Ao segundo,
sobe-te à cabeça.
Ao terceiro,
impossível ires-te embora:
Rapaz, outra garrafa!
A seguir, estejas onde estiveres,
vás onde fores,
estás amarrado a Paris, meu velho.

Qual a cidade
que se mnatém bela mesmo depois de
quarenta dias de chuva?
Paris...

Filho de Hikmet, em que cidade
gostarias de morrer?
Em Istambul,
em Moscovo,
e também em Paris...

Em que momento Paris se torna feia?
Quando as tipografias são saqueadas
e se queimam os livros.
O que é que destoa em Paris?
Os carros pretos de grades nas janelas.

Em que cidade comeste
o pão
mais puro?
Em Paris.
Sobretudo os "croissants" com manteiga.
Nada que se pareça
com os da padaria de Chehzadébachi.

O que mais amaste em Paris?
Foi Paris.

A quem ofereceste flores, camarada?
Aos do Muro dos Federados,
e também a uma bela, esbelta como uma vergôntea.
Entre os teus, quem encontraste em Paris?
Namik Kemal, Ziya Pacha, Mustafa Sufi,
e também a juventude da minha mãe:
faz pintura,
fala francês,
é a mais bela do mundo.
E também encontrei
a juventude de Mimi.

Bom: com quem se parece Paris?
Com o Parisiense...

Acreditas em Paris, filho do homem?
Acredito em Paris.

Nazim Hikmet

Wednesday 18 November 2020

EM PARIS, A 28 DE MAIO DE 1958

Por sorte que vi, por sorte que vi,
por sorte que vi esse dia.
Esse dia, por sorte que o vi em Paris.
Paris correu como um rio.
O verdadeiro Paris,
o grande Paris,
todo azul e vermelho,
e o Reno e o Ródano e o Garona e o Sena correram;
Paris correu como as águas em cascata.
Paris desfilou em 1958
a 28 de Maio.
Por sorte que vi, por sorte que vi
esse dia, por sorte que o vi em Paris.
O homem transpôs as portas.
De um momento para o outro o homem encheu a praça.
Como gaiola aberta para o pássaro sair,
os muros libertaram o homem.
De repente um homem confundiu-se
com quinhentos mil homens.
Quinhentos mil homens
confundiram-se
com um único homem:
Ivry, Saint-Denis, Belleville,
todos os arrabaldes de Paris
chegaram
de bicicleta.
As pedras animaram-se para se transformarem em homens.
Ah este coração! Ah este coração! Ah este coração!
Coração doente, maldito coração!
Este coração que impede que eu me misture com eles:
à cabeça, os deputados, cingidos com as
suas faixas,
à minha direita, Pierre, o torneiro de olhos de água;
à minha esquerda, o professor da Sorbonne,
de barba branca;
à minha direita, um
baixo e moreno,
explosivo;
os seios da rapariga de azul ao meu lado
são bombas,
e os saltos dos sapatos, agulhas.
Ah este coração! Ah este coração!
que me impede de integrar a corrente,
de uma praça para outra.

Escrevo tudo isto
a 29 de Maio de 1958.
Sei que há traidores entre nós,
conheço alguns.
Quem sabe? É talvez um pouco
por nossa causa
que as águas, em sucessivas vagas,
de azul e vermelho,
não conseguem destroçar
o navio negro do corsário.

Nazim Hikmet

Sunday 15 November 2020

OS CANTOS DOS HOMENS

Os cantos dos homens são mais belos que os homens,
mais densos de esperança,
mais tristes,
com uma vida mais longa.

Mais do que os homens eu amei os seus cantos.
Consegui viver sem os homens
nunca sem os cantos;
aconteceu-me ser infiel
à minha bem amada
mas nunca ao canto que para ela cantei;
nunca também os cantos me enganaram.

Qualquer que fosse a sua língua
sempre compreendi os cantos.

Neste mundo,
de tudo o que pude beber e comer,
de todos os países por onde andei,
de tudo o que pude ver e ouvir,
de tudo o que pude compreender,
nada, nada
conseguiu fazer-me tão feliz como os cantos...

Nazim Hikmet

Thursday 12 November 2020

A ESPANHA


Entre nós, uns atingem os sessenta;
outros vão um pouco mais longe,
outros há que são apenas uma mancheia de ossos.

A Espanha, nossa juventude,
a Espanha é uma rosa ensanguentada que desabrochou em nossos peitos.
A Espanha, nossa amizade na penumbra da morte,
a Espanha, nossa amizade à luz da nossa esperança invencível.
E as velhas oliveiras, com talhos, e a terra amarela e a terra vermelha esburacadas.
Entre nós, uns atingem os sessenta;
outros vão um pouco mais além,
outros há muito que são apenas uma mancheia de ossos.

Madrid caiu em 39:
quantas coisas, boas ou amargas, aconteceram aos homens de então!
A Espanha caiu em 39.
Em 62 vem-nos das minas das Astúrias a sua voz colérica e fraterna,
vem-nos do fundo da nossa esperança invencível, de Bilbao.
A Espanha era a nossa juventude,
a Espanha é a vossa juventude.
A Espanha é na palma da mão a linha da vida de todos nós.

Nazim Hikmet

Monday 9 November 2020

Poesia e propaganda


Hei-de mandar arrastar com muito orgulho,
pelo pequeno avião da propaganda
e no céu inocente de Lisboa,
um dos meus versos, um dos meus
mais sonoros e compridos versos:

E será um verso de amor...

Alexandre O'Neill

Friday 6 November 2020

AUTOBIOGRAFIA

Nasci em 1902
não voltei mais à minha cidade natal
não gosto de regressos.
Com a idade de três anos, em Alep fiz profissão de neto de paxá,
com dezanove anos, de estudante na universidade comunista de Moscovo,
com quarenta e nove anos em Moscovo
de convidado do Comité Central,
e desde os catorze anos que exerço a profissão de poeta...
Há pessoas que conhecem todas as espécies de ervas,
outras as de peixes,
eu as das separações.
Há pessoas
que podem citar de cor
os nomes das estrelas,
eu os das nostalgias.

Dormi em prisões e também em grande hotéis.
Conheci a fome e também a greve da fome
e não existe manjar que eu não tenha provado.
Aos trinta anos quiseram enforcar-me.
Aos quarenta e oito anos quseram dar-me o Prémio mundial da PAZ
e deram-mo.
No ano em que fiz trinta e seis anos percorri durante seis meses
quatro metros quadrados de betão.
Aos cinquenta e nove anos voei de Praga até Havana em dezoito horas.
Nunca vi Lenine mas montei guarda junto do seu catafalco em 1924.
Em 1961 o mausoléu que visito são os livros.
Tentaram separar-me do meu Partido
não conseguiram.
Não fiquei esmagado sob os ídolos caídos
em 1951 no mar em companhia de um camarada
caminhei para a morte.
Em 1912, com o coração destroçado, esperei a morte
durante quatro meses deitado de costas.
Tive um ciúme louco das mulheres que amei.
Nem Charlot eu invejei.
Enganei as minhas mulheres
mas nunca murmurei nas costas dos meus amigos.

Bebi sem me tornar um bêbado,
por felicidade, sempre ganhei o pão com o suor do meu rosto.
Se menti foi por ter sentido vergonha por outrem,
menti para não prejudicar terceiros,
mas também menti sem razão.

Tomei o comboio, o avião, o automóvel,
a maior parte das pessoas não pode tomá-los.
Fui à Ópera
a maior parte das pessoas não pode lá ir e até ignora o nome.
Mas onde vai a maior parte das pessoas, desde 1921 que lá não vou:
à mesquita, à igreja, à sinagoga, ao templo, ao feiticeiro,
mas li algumas vezes nas borras do café.

Estou traduzido em trinta ou quarenta línguas
mas na Turquia estou proibido na minha própria língua.

Não tive cancro até à presente data,
também não era obrigatório.
Não serei primeiro-ministro et
cétera
nem tenho prazer nenhum nesse tipo de trabalho.
Também não estive na guerra
não corri noite cerrada para dentro dos abrigos
nem me vi
pelos caminhos
sob aviões a descerem a pique
mas quase aos sessenta anos enamorei-me.

Para ser breve, camaradas,
hoje aqui em Berlim, embora morrendo de tristeza,
posso dizer que vivi como um homem
mas o tempo que me resta para viver
e aquilo que pode acontecer-me
quem sabe?

Nazim Hikmet

Tuesday 3 November 2020

AO ROSTO VULGAR DOS DIAS


Monstros e homens lado a lado,
não à margem, mas na própria vida.

Absurdos monstros que circulam
quase honestamente.

Homens atormentados, divididos, fracos.
Homens fortes, unidos, temperados.

*
Ao rosto vulgar dos dias,
à vida cada vez mais corrente,
as imagens regressam já experimentadas,
quotidianas, razoáveis, surpreendentes.

*
Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir.

Alexandre O'Neill

Sunday 1 November 2020

SE...


Se é possível conservar a juventude
respitando abraçado a um marco do correio;
Se a dentadura postiça se voltou contra a pobre senhora
e a mordeu deixando-a em estado grave;
Se ao descer do avião a Duquesa do Quente
pôs marfim a sorrir;
Se Baú-Cheio tem acções nas minas de esterco;
Se na América um jovem de cem anos
veio de longe ver o Presidente
a cavalo na mãe;
Se um bode recebe o próprio peso em aspirina
e a oferece aos hospitais do seu país;
Se o engenheiro sempre não era engenheiro
e a rapariga ficou com uma engenhoca nos braços;
Se, reentrante, protuberante, perturbante,
Lola domina ainda os portugueses;
Se o Jorge (o «ponto do Jorge!) tentou beber naquela noite
o presunto de Chaves por uma palhinha
e o Eduardo não lhe ficou atrás
ao sair com a lagosta pela trela;
Se «ninguém me ama porque tenho mau hálito
e reviro os olhos como uma parva»;
Se a Mimi Travessuras já não vem a Lisboa
cantar com o Alberto...

... Acaso o nosso destino, tac!, vai mudar?

Alexandre O'Neill