Friday 30 December 2016

BREL


Sinto crescer rápidas amendoeiras sobre o coração
e esta tristeza é mais súbita e profunda do que todas as outras
chegando com uma voz carregada de cansaços e de feridas
chamando por Jeff em mim que recuso a solidão
e procuro alguém com quem partilhar a ternura ou conversar um pouco;
essa voz que se me prendeu aos dedos e aos cabelos e me disse
por vezes as coisas mais insuportáveis
outras vezes dirigiu a minha angústia para o mar
e fez sentir-me frágil e perdido e quase deslumbrado
embebedando-me à mesa de um Bar do porto de Amesterdão
vagueando pelos canais em busca desse irmão marinheiro que jaz
de costas numa rua húmida
com a boca fria cheia de palavras inúteis e uma camisa de riscas
cor do céu
onde tu estarás agora desafiando o Coro dos Arcanjos
para que cante as tuas canções enquanto ris das próprias lágrimas

Num pequeno quarto abre-se do teu poster uma rua para o Mundo
e saberás através desse sorriso se acaso não te for possível assistir
que por aqui continuamos a construir fábricas e fábricas de Dinheiro
povoamos o Espaço com cabines envidraçadas à espera de encontrar
a Pedra Redonda do Poder
adoramos Napalm o deus das mil cabeças esfrangalhadas
enquanto no teu País Onde Nunca Chove se tocam ainda trémulas
mãos cobertas de Pérolas de Chuva
reinventando o amor e colocando no Prato Universal
a Chanson des Vieux Amants
num gesto clandestino e admirável de um Lento Suicídio Lírico
e eu como tu repito apalermado
Ne me quittes pas! Ne me quittes pas! Ne me quittes pas!

Joaquim Pessoa

Tuesday 27 December 2016

OLHO-TE DAQUI, MIGUEL...


Olho-te daqui, meu filho, vejo-te brincar com os
pequenos cubos que a tua imaginação rapidamente
transformou em comboio, e interrogo-me:
Que destino é o teu? Que futuro temos nós para te dar?
E haverá futuro com tantos mísseis apontados ao
coração?
Ao interrogar-me assim, imediatamente
me censuro: Como posso eu consentir à roda dos
teus três anos de idade a sombra espessa e
inquieta destas interrogações? Mentir? E como
poderia eu pactuar com a mentira, ocultar esta
inquietação, este medo de te ver crescer num
lugar tão precário como é a terra? Como deixar
de pensar que contigo crescem no mundo milhões
de crianças sem ternura, e que tantas outras morrem
simplesmente de fome? - enquanto os homens,
e quando digo homens tenho em mente os responsáveis
pelos nossos destinos, continuam numa desenfreada
corrida a armamentos cada vez mais dispendiosos e
mortíferos, a construir reactores e centrais que não
tardarão a pôr-nos o lixo nuclear à porta, comprometendo
assim toda a economia do planeta, o seu equilíbrio ecoló-
gico, a sobrevivência das espécies, multiplicando a
angústia, o terror de uma catástrofe atómica, fazendo-se
da vida a negação da própria vida, transformando-se o
homem, esse «prodígio» de que falavam os gregos,
no «monstro» de que fala Pascal.
E tudo isto para manter a mais bárbara, a mais vil,
a mais hipócrita das sociedades - uma sociedade
meramente mercantil, cujo objectivo único é o lucro,
sem qualquer finalidade moral.

Olho-te daqui, Miguel, vejo-te brincar com os
pequenos cubos, juntando-os e empurrando-os,
comboio seguindo viagem para um qualquer lugar
onde se não chegue dilacerado ou amputado
da alegria de o homem se sentir nascer para
um amor novo, uma imaginação nova, distante já,
e vamos dizê-lo com tremendas palavras de
Nietzsche, desse asilo de alienados que
durante tantos anos foi a terra.

Eugénio de Andrade

Saturday 24 December 2016

TEMPO DE RUSGAS


IEra tempo de rusgas.
Havia ordens terminantes
mas era preciso não andar desarmado.

A revista nas estradas era intensa.

Bem armado
passei sem licença de porte de arma
minha mão comprimindo no bolso
as coronhas de três poemas.

IIOs que não são poetas
ignoram o que é estarmos em reclusão
armados de conluios até aos dentes.

E na sua imprevidência
não sabem que um poema detido
mesmo de cor na cabeça
também é uma forma
dialéctica
de lhes armar o cerco.

IIISou daquela raça
dos revolucionários mais perfeitos.
A raça dos homens ao natural
que amam o amor sem as mil
fictícias boas maneiras
burguesas.

Raça
dos revolucionários mais puros
no amor à beleza feminina
na adoração pelas crianças
no respeito pela velhice
no ódio à mendicidade.

Raça de revolucionários cheios de defeitos
e apenas uma pequeníssima qualidade:
Mesmo inseridos em molduras de alvenaria
com uma força de segurança no exterior
não compramos o Amor
e não nos vendemos!


José Craveirinha
(In Cela 1)

Wednesday 21 December 2016

CABO DA BOA ESPERANÇA


Na feira da África do Sul
os racistas brancos exibem
um casal de negros

Obrigam-nos a trepar a uma árvore
e aos uivos
a arrastarem-se de gatas
e a pastar

A mim só me resta escolher
Diz o meu amigo poeta

Ou arrancar a pele branca que tenho
e dependurá-la num prego
Ou

Vasko Popa
(Tradução de Eugénio de Andrade)

Sunday 18 December 2016

NOS RAMOS DOS SALGUEIROS


E como poderíamos nós cantar
com o pé estrangeiro sobre o peito,
abandonados os mortos pelas praças
na dura erva gelada,
o balido impotente das crianças,
o uivo negro da mãe que tropeçava contra o filho
crucificado no poste telegráfico?

Nos ramos dos salgueiros, como um voto,
também as nossas cítaras pendiam
levemente oscilando ao triste vento.


Salvatore Quasimodo

Thursday 15 December 2016

O MESMO CORAÇÃO E A MESMA CABEÇA


Não é para me gabar,
mas atravessei de um jacto, como uma bala,
os meus dez anos de prisão.

E se deixarmos de lado as dores no fígado,
o coração está igual,
a cabeça é a mesma de antes.

Nazim Hikmet

Monday 12 December 2016

PROFECIA


Quando o palhaço, a quem os barões do carvão
deixam fazer de Chefe na nossa terra, tiver feito
de Chefe tempo bastante,
vai empreender no Continente todo
o papel de Chefe.

Quantos mais canhões tiver
mais ameaças vai soltar.
vai julgar: eles receiam a guerra, mas
um dia há-de ele ter a sua guerra.

Há-de berrar: a velha França
está cansada e quer sossego.
E virão contra ele esquadras de tanques da França.
Há-de berrar: para o povo inglês de merceeiros
a guerra é cara de mais.
E virá contra ele o ouro do Transvaal
e de ambas as Índias.
Há-de berrar: a América
fica muito longe, não tem exército.
E virá contra ele muito próximo
o exército da vasta América que constroi cidades
que têm cem andares.
Há-de berrar: só a União Soviética
espera por nós.
E hão-de vir contra ele os aviões
dos povos soviéticos, quatro vezes consecutivas.
Há-de berrar: os nossos amigos italianos
hão-de vir ajudar-nos.
E não virá ninguém.

E a Alemanha, que na última guerra
ganhou as batalhas todas menos a última,
nesta guerra, tirante a primeira,
há-de perdê-las todas.


Brecht

Friday 9 December 2016

CELEBRAÇÕES


Celebrou Dona Ema seu aniversário natalício.
Santos & Santos, banqueiros, o trigésimo quinto ano do ofício.
Encerrou-se o emprego para celebrar a data do Poder.
Carlos e Branca celebraram nó doirado
ainda firme, já um tanto empoeirado.
Clandestinamente, estralejou o foguete
a celebrar o dia de que se querem esquecer:
(a História tem folhas asas
que às vezes não podem poisar.)

Num âmbito vigente de agasalho
celebrou-se o Contrato Colectivo do Trabalho:
quarenta e cinco páginas brancas,
oito capítulos novos,
noventa cláusulas gordas
- e uns salários negros, velhos, magros...

Francisco Viana

Tuesday 6 December 2016

A NOSSA HUMANIDADE


Quando não deixarmos tudo nas mãos dos políticos
e os despojarmos de todas as auréolas míticas,
quando afirmarmos, convictos, que somos todos iguais
e ninguém nos diga que o axioma é falso,
quando resolvermos os problemas sentados a uma mesa
e, recusando a violência, aceitarmos o diálogo,
quando nos unirmos todos, se é um doido quem manda,
e o internarmos, decididos, em menos de uma semana,
quando as pessoas souberem de facto amar o seu próximo,
seja negro ou chinês, esquimó ou argelino,

então teremos alcançado o privilégio
da plena humanidade e verdadeira democracia.


Francesc Vallverdú

Saturday 3 December 2016

CORAGEM


Paris tem frio Paris tem fome
Paris já não come castanhas na rua
Paris anda vestido de velha
Paris dorme de pé sem ar no metropolitano
Maior ainda a miséria imposta aos pobres
E a sabedoria e a loucura
de Paris infeliz
é o ar puro é o fogo
é a beleza é a bondade
dos seus trabalhadores famintos
Não peças socorro Paris
estás vivo de uma vida sem igual
e atrás da nudez
da tua palidez da tua magreza
tudo o que é humano se revela nos teus olhos
Paris minha bela cidade
fina como uma agulha forte como uma espada
ingénua e sábia
tu não suportas a injustiça
para ti a única desordem
Vais libertar-te Paris
Paris bruxoleante como uma estrela
nossa esperança sobrevivente
vais libertar-te da fadiga e da lama
Irmãos tenhamos coragem
nós que não usamos capacetes
nem botas nem luvas nem somos bem educados
Um raio se acende em nossas veias
os melhores de nós morreram por nós
e eis que o sangue dos que morreram nos volta
ao coração
e de novo é a manhã uma manhã de Paris
o extremo da libertação
o espaço da primavera que nasce
A força idiota está na mó de baixo
estes escravos nossos inimigos
se compreenderem
se forem capazes de compreender
vão levantar-se.

Paul Éluard
(Tradução de António Ramos Rosa)



Thursday 1 December 2016

De ramo em ramo


O branco do linho ou dos muros
do sul,
o carmim matutino,

o claro azul mediterrâneo, o limão
húmido ainda,
o laranja, o verde das oliveiras

prateado, o amarelo exausto
de glória, o violeta adormecido
da flor que lhe dá nome,

o ocre do trigo ceifado
o negro quase
materno da terra lavrada,

é nos olhos que são ave
de ramo em ramo concertada.

Eugénio de Andrade

Wednesday 30 November 2016

VAI INAUGURAR-SE O MUSEU DA CARIDADE

Aceitam-se récitas da dita.
Aceitam-se chás dançantes.
Aceitam-se confessionários.
Aceitam-se misericórdias.
Aceitam-se subscrições públicas.
Aceitam-se esmolas ao sábado.
Aceitam-se valas comuns.
Aceitam-se bairros económicos.
Aceitam associações de protecção às raparigas.
Aceitam-se conferências de S.Vicente de Paula.
Aceitam-se consultas grátis.
Aceitam-se hospitais.
Aceitam-se dispensários.
Aceitam-se necrológios.
Aceitam-se artigos de fundo.
Aceitam-se discursos patrióticos.
Aceitam-se sugestões para acrescentar esta lista.

E também se aceitam poemas sociais como este.

Jorge de Sena

Sunday 27 November 2016

MAS GALOPAS


A galope
um cavaleiro atravessava a noite.
Inútil perguntar-lhe
o que levava. Galopava.

À desfilada
atravessava noites, abismos, cidades.
Não lhe perguntásseis de onde veio,
aonde ia. Galopava.

Furacão
vingador, arcanjo desencadeado
que resta do que foste? Já não és fogo
nem vento. És cinza, pó.
Mas galopas.

Papiniano Carlos

Thursday 24 November 2016

LIVRE ARBÍTRIO


Dentro dum tosco barco
puseram-me a navegar
nas águas da absurdidade.

Sou livre de ser ou estar
- mas, estranha fatalidade -
ou vou no barco
ou charco...


Francisco Viana

Monday 21 November 2016

A MAIORIA DAS PESSOAS


A maioria das pessoas viaja na coberta dos navios
na terceira classe dos comboios
a pé pelas estradas
A maioria das pessoas

A maioria das pessoas começa a trabalhar aos oito anos
casa aos vinte
morre aos quarenta
A maioria das pessoas

Para todos há pão, salvo para a maioria das pessoas
arroz também
açúcar também
roupas também
livros também
há para todos, salvo para a maioria das pessoas

Não há sombra na terra para a maioria das pessoas
não há candeeiros nas ruas
não há vidros nas janelas

Mas a maioria das pessoas tem a esperança
Não se pode viver sem a esperança.

Nazim Hikmet

Friday 18 November 2016

SÓCIO GRANDE + SÓCIOS PEQUENOS


Havia no ar sornice e expectativa;
Não tinha chegado ainda o senhor Tota.
Todos falavam por falar, todos esperavam o senhor Tota.

«As reuniões não se fizeram para dormir.
É preciso fomentar as vendas da loja três.
Então as obras na loja quatro,
são as obras de Santa Engrácia?
E o senhor, o senhor que é que lá está a fazer?
E o senhor, o senhor com os seus cabelos brancos
o que é que vendeu nesta viagem?
Fez o que pôde, não!,
é preciso fazer sempre mais do que se pode.
A mercadoria é de terceira, mas não é boa?,
os senhores é que não sabem vender...
Os senhores é que não a querem vender...
E assim, onde é que isto tudo vai parar?»

O senhor Tota já tinha chegado.

- Senhor Tota, é necessário substituto para a loja oito.
O rapaz coitado só tem um rim
e a acartar, a acartar, tem o outro doente.
Pediu-me para lhe pedir, bem... agora era preciso...
precisava de algum dinheiro para a estreptomicina...
bem, é claro, trata-se de uma vida...

«Mas em que é que ele se meteu?
É a fazenda que tem bacilos?
Não se estejam a rir, é claro que não tem bacilos,
mas isto aqui também não é nenhum saco roto;
O senhor não sabe? O senhor agora que é sócio não sabe?
Então se sabe por que é que não lhe disse?»

Bem, o rapaz é ainda muito novo:
e assim, só com um rim, a acartar, a acartar...
O senhor Tota compreende, sim, os fardos são pesados...
Está bem, senhor Tota, pronto está bem...
Não é nada comigo,
eu ainda tenho os dois, por enquanto...

«Por enquanto?
Não, o senhor não compreende as minhas intenções.
Não é com esmolas que se derruba a miséria;
Deprimir, humilhar o homem nosso semelhante
é deprimir e humilhar a nossa própria dignidade.
E a esmola humilha que a dá e quem a recebe.

Estamos aqui para tratar de negócios
mas sempre lhe direi:

Isto está caótico!
Está tudo caótico!!
São precisas vastas reformas, reformas integrais.
Não se trata agora da estreptomicina
nem do rapaz, coitado, também tenho pena dele
(ele não acarta assim tanto como diz...)
mas como sabe o negócio vai mau.

Um remédio a mais, um remédio a menos, não conta.
O que é necessário, o que é fundamental,
são hospitais, hospitais, muitos hospitais...
Percebe?
Muitos hospitais!!!»

O rapaz morreu.

O senhor Tota ainda não morreu.


Francisco Viana

Tuesday 15 November 2016

O MESMO VALE NÃO VER...


O mesmo vale não ver
que ver só o que se crê.
Entre pensar e fazer,
muita vez se perde o pé.
Nada do que existe pára.
Existir é não parar.
A certeza mais avara
é-o menos que ignorar.
Uma coisa é confiança,
outra é superstição.
Onde a razão mais descansa
é em cansar-se a razão.

Armindo Rodrigues

Saturday 12 November 2016

EU PRESTIDIGITADOR EMÉRITO


Dia de minha visita.
Eu a dizer trivialidades à Maria
e ela a compreender nas entrelinhas.

O Stélio de um lado
o Zeca do outro
e uma vigilante
dupla de gajos
de serviço.

Mas eu prestidigitador emérito
fazia chegar ao seu destino
tesouros de sigilo
em papelinhos
dobrados.

Se um dos execráveis gajos
por acaso me tivesse interceptado
restaria alguém para contar
isto?


José Craveirinha

Tuesday 8 November 2016

GUERNIKAKO ARBOLA*


(A Árvore de Guernica)

Era na Primavera do ano 37
quando cheguei a Guernica.
Ali se fabricavam filtros de máscaras
antigás. Eu devia
- serviço de inspecção - ver que diabo se passava
ou o que não funcionava.
Ali, em Guernica, estavam as novas tropas
de Guipúscoa, e eu devia
- serviço de instrução - ensinar-lhes a humana
protecção que é possível quando com gás atacam.
Tudo me parecia distante. Embora cumprisse
o devido, impossível
era pensar que alguém lançasse um tal ataque.
A frente estava longe. Brilhava o céu ileso.
E é preciso dizer tudo:
havia muito tempo que eu não comia anho,
nem comia pão branco, como ali, na rectaguarda.
Parecia tão fácil a paz! Não se entendiam
a ira e a mentira.
Às vezes ia visitar a nossa árvore de Guernica,
e olhava o azul,
um azul que durou todos aqueles dias,
um vasto azul tranquilo que nada parecia
poder perturbar, Março querido.
Ai, quem diria
que pouco depois de eu partir zumbiria no céu,
no mesmo céu que parecia ileso,
puro de mancha e leve,
o horror de uma morte mecânica e selvagem!
Ai, quem diria!
Ai, di-lo tu se puderes, Guernikako arbola,
di-lo com tua raiz, tuas crianças, teus ramos,
di-lo, se for possível,
diz com a liberdade dos vascos antigos,
com o tremor de folhagem que cobre o país todo
e diz o que somos, ao dizer o que fomos!
Ai, se é possível, di-lo!

Gabriel Celaya
(Tradução de José Bento)

* Guarnikako arbola (que em língua vasca significa «a árvore de Guernica») é um roble junto do qual, desde a Idade Média, os reis de Espanha ou os seus representantes juravam respeitar os fueros que estabeleciam os direitos do povo vasco. Em 26 de Abril de 1937, Guernica foi bombardeada pelas forças franquistas, com a colaboração dos nazis, como confessaria Goering. Morreram nesse ataque cerca de 1. 600 pessoas. O roble ficou intacto. (N. do T.)

Sunday 6 November 2016

AFORISMO



Havia uma formiga
compartilhando comigo
o isolamento
e comendo juntos.

Estávamos iguais
com duas diferenças:
ela não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.

Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rasto
mas não podiam
ajoelhar-nos.


José Craveirinha
(Cela 1)

Thursday 3 November 2016

A GUERRA QUE AÍ VEM


A guerra que aí vem
não é a primeira. Antes dela
houve outras guerras.
Quando a última acabou
houve vencedores e vencidos.
Entre os vencidos o povo baixo
passou fome. Entre os vencedores
passou fome também o povo baixo.

Os de cima dizem: no exército
reina a comunhão do povo.
Se é verdade ou não, ficais a sabê-lo
na cozinha.
Nos corações deve
haver a mesma coragem. Mas
nas marmitas há
comer de duas espécies.

Quando toca a marchar, muitos não sabem
que o inimigo marcha à sua frente.
A voz que os comanda
é a voz do inimigo.
O que fala do inimigo
é ele mesmo o inimigo.

Os de cima dizem:
vai dar à glória.
Os de baixo dizem:
vai dar à cova.

Brecht

Tuesday 1 November 2016

CALABOUÇO


I
Aqui
onde nem um pide nos ouve
a gritar no dialecto nacional dos oprimidos
os mais fantásticos sonhos

construímos
com o invisível material da esperança
a realidade universal dentro
do povo lá fora!

II
Pátria:
por causa de nós os dois
o único alguém a cheirar o cheiro
do seu próprio medo
é o carcereiro.

Pátria:
o nosso próprio receio
leva-nos ao cúmulo da fúria
mas ao carcereiro o próprio medo
fabrica para toda a polícia
o auge do desespero.


José Craveirinha

Sunday 30 October 2016

O MEU PREÇO


Eu cidadão anónimo
do País que mais amo sem dizer o nome
se é para me dar de corpo e alma
dou-me todo como daquela vez em Chaimite.
Dou-me em troca de mil crianças felizes
nenhum velho a pedir esmola
uma escola em cada bairro
salário justo nas oficinas
filas de camiões carregados de hortaliças
um exército de operários todos com serviço
um tesouro de belas raparigas maravilhando as praias
e ao vento da minha terra uma grande bandeira sem quinas.

Se é para me dar
dou-me de graça por conta disso.

Mas se é para me vender
vendo-me mas vendo-me muito caro.

Ao preço incondicional
de quanto me pode custar este poema.


José Craveirinha

Thursday 27 October 2016

ACTUALIDADE COLOMBIANA


Dez frades
excomungados pela igreja
foram submetidos a torturas
e condenados por conspiração.
Um deles,
a ponto de sucumbir,
rezava sem parar:
Oh Pitecantropus Pai meu!

Minerva Salado
(In Poesia Cubana da Revolução)

Monday 24 October 2016

CONSENSO



Amiga:
No febril conluio dos mútuos póros
nossos lábios sussurram-se
as respectivas músicas
de Amor
e só!

Mas
nos ofegantes muros das penitenciárias
nem uma Sofia Loren
nem uma Gina Lolobrígida
nem uma tal Ava Gardner
e nem tu minha amiga
com todas as vossas ferramentas de prazer
nos boicotam o irredutível consenso deste sofrimento
habitando sem pagar renda esta moradia
de quatro paredes
uma porta de ferro
e uma espécie de janela com persianas de varões.

E no sofrimento deste prédio
nós os presos e os que não foram presos
conseguimos o seguinte consenso:
- Voz de prisão aos carcereiros!


José Craveirinha

Friday 21 October 2016

REZA, MARIA!


Suam no trabalho as curvadas bestas
e não são bestas
são homens, Maria!

Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos
e não são cães
são seres humanos, Maria!

Feras matam velhos, mulheres e crianças
e não são feras, são homens
e os velhos, as mulheres e as crianças
são os nossos pais
nossas irmãs e nossos filhos, Maria!

Crias morrem à míngua de pão
vermes nas ruas estendem a mão à caridade
e nem crias nem vermes são
mas aleijados meninos sem casa, Maria!

Bichos espreitam nas cercas de arame farpado
curvam cansados dorsos ao peso das cangas
e também não são bichos, Maria!

Do ódio e da guerra dos homens
das mães e das filhas violadas
das crianças mortas de anemia
e de todos que apodrecem nos calabouços
cresce no mundo o girassol da esperança.

Ah, Maria
põe as mãos e reza.
Pelos homens todos
e negros de toda a parte
põe as mãos
e reza, Maria!

José Craveirinha

Tuesday 18 October 2016

INCLANDESTINIDADE



Eu jamais movi um dedo na clandestinidade.
Mas militante de facto sou.

Por acaso até nasci
numa grande e próspera colónia.

Depus flores na estátua do sr. António Enes
recitei versos de Camões num tal «dia da raça»
e cheguei a cantar uma marcha chamada «A Portuguesa».

Cresci.
Minhas raízes também cresceram
e tornei-me um subversivo na genuína ilegalidade.

Foi assim que eu subversivamente
clandestinizei o governo
ultramarino português.

Foi assim!


José Craveirinha

Saturday 15 October 2016

XICUEMBO


eu bebeu suruma
dos teus ólho Ana Maria
eu bebeu suruma
e ficou mesmo maluco
agora eu quere dormir quere comer
mas não pode mais dormir
mas não pode mais comer

suruma dos teus ólho Ana Maria
matou sossego no meu coração
oh matou sossego no meu coração

eu bebeu suruma oh suruma suruma
dos teus ólho Ana Maria
com meu todo vontade
com meu todo coração

e agora Ana Maria minhamor
eu não pode mais viver
eu não pode mais saber
que meu Ana Maria minhamor
é mulher de todo gente
é mulher de todo gente
todo gente todo gente

menos meu minhamor

Rui Nogar
(In Poetas de Moçambique)

Wednesday 12 October 2016

DESOBEDIÊNCIA


Sou feita de muitos
nós
desobediência e meio-dia

Sou aquela que negou
aquilo
que os outros queriam

Disse não à minha sina
de destino preparado

Recusei as ordens escusas
preferi a liberdade
e vivo deste meu lado

Maria Teresa Horta

Sunday 9 October 2016

PERGUNTA A PAUL ROBESON


Que rios te correm na voz
Paul Robeson?
Que marulhantes graves e longos
rios é o teu canto
Paul Robeson?
É o Congo ou é o Mississipi
com manchas de sangue indissoluto?
Ou são os afrontosos rios
da humilhação impotente
Paul Robeson?
Ou é o Nilo ou o Missouri
cavando às cegas o leito
nas terras da hostilidade?
Ou será a mágoa sem fundo nem tempo
náufraga sem morte dos barcos de negreiros
soluçando nos campos de algodão
dos diversos estados da Carolina do Sul
Paul Robeson?
Ou será a incomparável curva doida do Niger
rompendo a caminho do mar?
Ou será apenas o lento pesado arrastar de pés
dos teus irmãos de raça
Paul Robeson
rompendo a caminho do mar?

Fernando Couto
(In Poetas de Moçambique)

Thursday 6 October 2016

O comum da terra


Nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas.
Quem conheça o sul e a sua transparência
também sabe que no verão pelas veredas
da cal a crispação da sombra caminha devagar.
De tanta palavra que disseste algumas
se perdiam, outras duram ainda, são lume
breve arado ceia de pobre roupa remendada.
Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão
era morada e instrumento de alegria.
Esse eras tu: inclinação da água. Na margem
vento areias mastros lábios, tudo ardia.


Eugénio de Andrade

Monday 3 October 2016

CANTO DE UM PRISIONEIRO


Prisioneiro sem algemas nem grades
sem uniforme e sem arames farpados
privo-me de chorar durante o dia
por maiores que sejam o vexame e a dor
Ansioso cultivo a flor do orgulho
e enveneno de fel as lágrimas que bebo
Também não grito que não mo consinto
nem o consentem neste ordeiro campo
E espero a noite para cantar em surdina
junto as palavras astuciosas e de rosto inocente
atiro-as ao escuro fecundas de rancor
e ainda humedecidas de um suor de sangue
e no íntimo escondendo limas de esperança

Neste universo pacato e sem algemas
nem grades visíveis e todavia existentes
adivinho tímpanos feridos pelo meu canto
e lábios com sede de limas de esperança
e ventres vazios à espera que os fecunde
o cálido e surdo rancor do meu canto

Por isso canto poemas algo inesperados
opacos sussurrantes e gratuitos como ventos
que todavia transportam invisíveis esporos
de sentido fechado como ouriços do mar
de agudos espinhos para mãos inábeis
e escondendo por dentro limas de esperanças

Fernando Couto
(In Poetas de Moçambique)

Saturday 1 October 2016

Resistir


Dobrar na boca o frio da espora
Calcar o passo sobre lume
Abrir o pão a golpes de machado
Soltar pelo flanco os cavalos do espanto
Fazer do corpo um barco e navegar a pedra
Regressar devagar ao corpo morno
Beber um outro vinho pisado por um astro


Possuir o fogo ruivo sob a própria casa
numa chama de flechas ao redor.

Joaquim Pessoa

Friday 30 September 2016

ABRIL ABRIL



Abril Abril Abril novo
Riso aberto na cidade
Porta de passar o povo
Águas mil de Liberdade

As portas que Abril abriu
viram coisas do Diabo
Mouro não saiu nenhum
mas entrou muito ladrão
a gritar por Santiago

As portas que Abril abriu
são portuguesas castiças
Nunca mais levaram tinta
nem óleo nas dobradiças

Vasco Costa Marques

Tuesday 27 September 2016

PEQUENA ELEGIA DE SETEMBRO

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos poisados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de Setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.


Eugénio de Andrade

Saturday 24 September 2016

AINDA NÃO DISSEMOS TUDO


A serpente persegue a sombra da águia
até ao lugar onde é mais profunda a raiz da água.
Porque escondes o teu livro
quando folheias o coração?
Em que lugar amadurecem cachos de surpresa
durante a ausência dos teus dedos?Esta manhã é soberba
de sonhos e de cães.
Espero por ti depois das horas de ternura
para mais ternura ainda.
Espero por ti depois do amor
para fazermos mais amor.
Façamos café, depois do fogo.
Temos, dos outros, as nossas mãos.
Herdámos a vida de mulheres e de homens antes de nós
e a outros homens e a outras mulheres não deixaremos
o vento como herança.
O que vês na água?
Com quê construíste a tua casa?
Em que manhã fizeste perguntas ao teu filho?
A serpente continua perseguindo
a sombra da águia.
De quem é o objecto que detens em tua mão?
Porque cresce a tristeza nos teus ombros?
Esse rio que passa à tua porta e chama por ti
é um rio de sangue
com um caudal de corpos inocentes.
As suas margens são agrestes mas a tua infelicidade
não deixa que lhes descubras os punhais.
Há em ti o mesmo rio.
Não poderás dar um passo, longe ou perto,
sem que firas a tua carne
ou magoes mais os ossos já antes magoados.
Tu tens as tuas próprias margens.
Por favor, destrói as tuas margens.
Acende uma fogueira para que dentro dos teus olhos
possas sentar-te comigo em redor do fogo.
A lua calou-se. Está morta.
Morreram com ela metade dos poetas
e a nova poesia será escrita pelos que sobreviveram.
Verás passar pela tua noite
os mais humildes, os mais sacrificados, aqueles que,
conhecendo o medo, não aceitam as privações
e a miséria. Não podes voltar-te
para o lado e adormecer. Não deves
voltar-te para o lado e tentar esquecer.
Há quanto tempo não escutas a tua fala?
Que espécie de claridade adquiriste para as tuas janelas?
Hoje não é o último dia?
Corre agora a serpente sobre a sombra da águia.
Para lá da tua bebida
morrem povos com sede.
Há milhares de crianças mortas
nos restos das tuas refeições.
Ajudas a assassinar rios, pássaros, e muitos dos teus irmãos
com um simples encolher de ombros.
Constroem-se toneladas de bombas na tua indiferença.
Envenenam-se oceanos para teu conforto.
Por toda a parte se polui o ar de vales e montanhas
para fabricar a tua asfixia.
De onde retirarás mais diamantes? Da boca dos cadáveres?
Em que morte
deixarás apodrecer a tua vida?
A serpente desafia
a sombra da águia.
A nossa manhã continua soberba
de sonhos e de cães.
Façamos café, depois do fogo.
E conversemos. Ainda não
dissemos tudo.

Joaquim Pessoa
in
PAIOL DE PÓLEN

Wednesday 21 September 2016

RETRATO DE MANUEL DA FONSECA

Eram campos campos campos
abertos de humanidade
era um vento que rasgava
apenas a claridade.

Eram palavras jorrando
de um olhar de escaravelho
era um homem inventando
a grandeza de ser velho.

Era terra fome sede
urze tojo trigo vinho
alcateia e almocreve
alfazema e rosmaninho.

Era um fogo aprisionado
uma explosão de romãs.
Era um menino alumbrado
entre as pernas da manhã.

José Carlos Ary dos Santos

Sunday 18 September 2016

Sabra Y Chatila


¿A dónde estaba el sol cuando sonaron
los ecos desatados de la ira?
¿No será que las sombras lo apagaron
en Sabra y Chatila?

¿A dónde estaba Dios, cuando la gente
fue sometida a hielo en las pupilas?
¿No será que se ha vuelto indiferente
en Sabra y Chatila?

¿A dónde estaba yo, en qué galaxia,
insensible leyendo la noticia?
¿No seré uno más en la falacia
de Sabra y Chatila?

¿A dónde estabas tú, con tu arrogancia,
poderoso señor que en la mochila
llevas todo el cadáver de la infancia
de Sabra y Chatila?

¿A dónde está la voz del abogado
fiscal de la razón y la justicia?
¿No será que sus leyes derogaron
en Sabra y Chatila?

¿A dónde está el orgullo de los hombres,
o acaso hay que decir ""hipocresía""?
¿Por qué tanto dolor no tiene nombre
en Sabra y Chatila?

¿De qué me estás hablando amigo mío?
¿No ves que mi conciencia está tranquila?
¿Qué tengo yo que ver con lo ocurrido
en Sabra y Chatila?

¿O acaso estaba yo con los soldados
metido a la distancia, entre sus filas
aceptando los hechos consumados
en Sabra y Chatila?

Es tiempo de dictar comunicados
que limen lo espinoso de la espina.
¿Qué harán para ocultar lo que ha pasado
en Sabra y Chatila?

¿Qué harán para que amengüe la condena
histérica, total y colectiva?
¿Qué harán para que cese la gangrena
de Sabra y Chatila?

Aunque yo siga ausente en mi galaxia
comentando en canciones la noticia,
el ángel del horror sigue su marcha
en Sabra y Chatila.

Deambula por Beirut y en otras lunas,
reptando sin parar, como una anguila.
Insaciable y cegado por la gula
de Sabra y Chatila.

Tal vez quiera llegar hasta mi puerta.
Quizá ya esté a la vuelta de la esquina.
Ya fue abierta la herida y sigue abierta
en Sabra y Chatila.

Alberto Cortez

Thursday 15 September 2016

INFÂNCIA


Não minha mãe. Não era ali que estava.
Talvez noutra gaveta. Noutro quarto.
Talvez dentro de mim que me apertava
contra as paredes do teu sexo-parto.

A porta que entretanto atravessava
talhada no teu ventre de alabastro
abria-se fechava dilatava.
Agora sei: dali nunca mais parto.

Não minha mãe. Também não era a sala
nem nenhum dos retratos de família
nem a brisa que a vida já não tem.

Talvez a tua voz que ainda me fala...
... o meu berço enfeitado a buganvília...
Tenho tantas saudades, minha mãe!

José Carlos Ary dos Santos

Monday 12 September 2016

- sem título -


de um naufrágio podem salvar-se as almas
havendo arrependimento
mas salvam-se corpos
havendo terra firme

tu és terra firme.

Miguel Tiago

Friday 9 September 2016

MEMÓRIA


Gotejam sangue as estrelas
(e a noite vai tão calma!...)
Rasgue-se a noite só para vê-las
que a treva basta já na nossa alma.

Companheiro morto à beira do caminho
que milhões de caminhantes já pisaram.
Tu não estarás jamais sozinho,
que contigo estão os que ficaram.

Orlando de Albuquerque
(In Poetas de Moçambique)

Tuesday 6 September 2016

PERDIMENTO


É como se nós os dois
dançássemos
o perdimento

Tu de rojo a meus pés
e eu erguida num ímpeto
a tentar turbar o tempo

As minhas mãos
a suster
e as tuas a empurrar

num mesmo gesto sedento

A entrega e a recusa
o corpo e o pensamento

Maria Teresa Horta

Saturday 3 September 2016

Poema

(Hora da visita. A Sra. Ermelinda também
estava à entrada com a cestinha onde ia aquela
sopa tão boa que ferveu desde as seis da manhã)


Entretanto cá fora
as mães aquecem com os dedos
as merendas nos cestos.

Outras sorriem
com inquietação de cilada.

São as que esconderam limas de sonho no pão
para os filhos cortarem as grades
e fugirem esta noite
pelos lençóis
da solidão rasgada.

José Gomes Ferreira

Thursday 1 September 2016

Meu galope é em frente


Direis que não é poesia
e a mim que importa?
Eu canto porque a voz nasce e tem de libertar-se.
E grito porque respondo
às lanças que me espetam
e aos braços que me chamam,
E porque, dia e noite, minhas mãos e meus olhos,
por estranhas telegrafias,
dos cantos mais ignotos
e das linhas perdidas
e dos campos esquecidos
e dos lagos remotos,
e dos montes,
recebem longas mensagens e comunicações:
para que grite e cante.
O meu grito e meu canto é a voz de milhões.
Por isso que me importa?
Eu canto e cantarei o que tiver a cantar
e grito e gritarei o que tiver a gritar
e falo e falarei o que tiver a falar.
Direis que não é poesia.
E a mim que importa
se eu estou aqui apenas para escancarar a porta
e derrubar os muros?
E a mim que importa
se vós sois afinal o que hei-de ultrapassar
e esmigalhar
em nome
de todos os futuros?
Eu sigo e seguirei,
como um doido ou um anjo,
obstinado e heróico a caminho de nós
em palavras e acções
por todos os vendavais
e temporais
e multidões
nos cantos mais ignotos
e nas linhas perdidas
e nos campos esquecidos
e nos lagos remotos
e nos montes
- por terra, mar e ar.
Direis que não é poesia
E a mim que importa!
Convosco ou não, meu galope é em frente.
Pertenço a outra raça, a outro mundo, a outra gente.
É andar, é andar!


Mário Dionísio

Tuesday 30 August 2016

Poema da despedida


Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo.

Mia Couto

Saturday 27 August 2016

«PORQUE ME APETECE»...


O poema que se segue já por aqui passou.
Perguntar-se-á: porquê, então, repeti-lo?
E eu respondo, parafraseando a Maria: «porque me apetece»... - que é como quem diz: cá por coisas...
(Fernando Samuel)


A BANDEIRA COMUNISTA

Foi como se não bastasse
tudo quanto nos fizeram
como se não lhes chegasse
todo o sangue que beberam
como se o ódio fartasse
apenas os que sofreram
como se a luta de classe
não fosse dos que a moveram.
Foi como se as mãos partidas
ou as unhas arrancadas
fossem outras tantas vidas
outra vez incendiadas.

À voz de anticomunista
o patrão surgiu de novo
e com a miséria à vista
tentou dividir o povo.
E falou à multidão
tal como estava previsto
usando sem ter razão
a falsa ideia de Cristo.
Pois quando o povo é cristão
também luta a nosso lado
nós repartimos o pão
não temos o pão guardado.
Por isso quando os burgueses
nos quiserem destruir
encontram os portugueses
que souberam resistir.

E a cada novo assalto
cada escalada fascista
subirá sempre mais alto
a bandeira comunista.

José Carlos Ary dos Santos

Wednesday 24 August 2016

*-*


Quando tuas mãos saem,
amada, para as minhas,
o que me trazem voando?
Por que se detiveram
em minha boca, súbitas,
e por que as reconheço
como se outrora então
as tivesse tocado,
como se antes de ser
houvessem percorrido
minha fronte e a cintura?


Sua maciez chegava
voando por sobre o tempo,
sobre o mar, sobre o fumo,
e sobre a primavera ,
e quando colocaste
tuas mãos em meu peito,
reconheci essas asas
de paloma dourada,
reconheci essa argila
e a cor suave do trigo.

A minha vida toda
eu andei procurando-as.
Subi muitas escadas,
cruzei os recifes,
os trens me transportaram,
as águas me trouxeram,
e na pele das uvas
achei que te tocava.
De repente a madeira
me trouxe o teu contacto,
a amêndoa me anunciava
suavidades secretas,
até que as tuas mãos
envolveram meu peito
e ali como duas asas
repousaram da viagem.

Pablo Neruda

Sunday 21 August 2016

CANTIGUINHA

1 
Era um homem uma vez
que quando os dezóito fez
começou a beber - e...
«Foi assim que me perdi.»
Aos oitenta foi morrer
de quê - é claro de ver.

2 
Era um menino uma vez
que morreu com rapidez
quando tinha um ano - e...
«Foi assim que eu faleci.»
Nunca bebeu, claro está,
e morreu com um ano já.

3 
Daqui se vê claramente:
Álcool não faz mal à gente...

Brecht

Thursday 18 August 2016

Soneto do Amor Total


Amo-te tanto, meu amor ... não cante
O humano coração com mais verdade ...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.


Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Vinicius de Moraes

Monday 15 August 2016

CANÇÃO DUMA MÃE ALEMÃ

Meu filho, dei-te essas botas
e essa camisa castanha:
Se soubesse o que hoje sei
antes me tinha enforcado.

Meu filho, ao ver-te erguer
a mão para saudar Hitler
não sabia que essa mão
que o saudava, secaria.

Meu filho, ouvi-te falar
duma geração de heróis.
Não sabia, não via, não pensava
que eras entre eles o algoz.

Meu filho, e eu vi-te seguir
a marchar atrás do Hitler
e não sabia que quem com ele partia
nunca tornava a voltar.

Meu filho, «A Alemanha» - dizias -
«Vai ficar que não a conheces»,
sem saber que ia ficar
em cinza e pedras sangrentas.

Com essa camisa castanha
te vi e não protestei.
Não sabia o que hoje sei:
que ela era a tua mortalha.

Brecht

Friday 12 August 2016

Recomeça


Se puderes
sem angústia
e sem pressa.
E os passos que deres
nesse caminho duro
do futuro,
dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
o logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
onde, com lucidez, te reconheças...
Miguel Torga,
Diário XIII

Tuesday 9 August 2016

COMO NO POEMA

A chuva cai na poeira como no poema
de Li Po. No sul
os dias têm olhos grandes
e redondos; no sul o trigo ondula,

as suas crinas dançam no vento,
são a bandeira
desfraldada da minha embarcação;

no sul a terra cheira a linho branco,
a pão na mesa,
o fulvo ardor da luz invade a água,
caindo na poeira, leve, acesa.

Como no poema.

Eugénio de Andrade
(«Branco no Branco» - 1984)

Saturday 6 August 2016

UM HOMEM NUNCA CHORA


Acreditava naquela historia
do homem que nunca chora.

Eu julgava-me um homem.

Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.

Agora tremo.
E agora choro.

Como um homem treme.
Como chora um homem!

José Craveirinha

Wednesday 3 August 2016

COM ESSA NUVEM


Para que estrela estás crescendo,
filho, para que estrela matutina?
Diz-me, diz-me ao ouvido,
se é tempo ainda,
eu e essa nuvem, essa nuvem alta,
de irmos contigo.

Eugénio de Andrade

Monday 1 August 2016

UM ADEUS PORTUGUÊS


Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O'Neill,
in 'Poesia Completas'

Saturday 30 July 2016

Dia 239



Olhei-te e fiquei sem palavras. Eu, que não gosto nada de ficar sem munições.

Joaquim Pessoa

Wednesday 27 July 2016

RENTE AO CHÃO


1. 
Era azul e tinha os olhos de deus,
o meu pequeno persa
- agora rente ao chão onde iria?,
a voz quebrada,
o peso da terra sobre os flancos,
a luz deserta na pupila.

2. 
Chamo por ti; digo o teu nome
tropeçando sílaba
a sílaba; repito o teu nome
para que voltes com a lua
nova, o sol de Março,
o pão de cada dia:
o rigor do frio, a sua teia branca,
por companhia.

Eugénio de Andrade
(«Rente ao Dizer» - 1992)

Sunday 24 July 2016

A Tua Boca


A tua boca. A tua boca.
Oh, também a tua boca.
Um túnel para a minha noite.
Um poço para a minha sede.


Os fios dormentes de água
que a tua língua solta num grito cor-de-rosa
e a minha língua sorve e canta
e os meus dentes mordem derramando a seiva
da tua primavera sem palavras
o poema inquieto e livre que a tua boca oferece
à minha boca.

As loucas bebedeiras de ternura
por essa viagem até ao sangue.
Os beijos como fogueiras.
As línguas como rosas.

Oh, a tua boca para a minha boca.

Joaquim Pessoa

Thursday 21 July 2016

O SORRISO, OUTRA VEZ

Tu partiste nos quatro versos
que antecederam estas linhas;
ou partiu o teu sorriso, porque tu
sempre moraste no teu sorriso,
chuva verde nas folhas, o teu sorriso,
bater de asas no pulso, o teu sorriso,
e esse sabor, esse ardor da luz
sobre os lábios, quando os lábios são
rumor de sol nas ruas, o teu sorriso.

Eugénio de Andrade

Monday 18 July 2016

Chamar-te meu amor


Dizer que tudo em ti é movimento
e que há corças nas selvas em redor
do amor que às vezes faço em pensamento
ou do que eu penso quando faço amor.


Dizer que em tudo escuto a tua voz
no mar no vento na boca das searas
o maior amor do mundo somos nós
cobrindo a solidão de pedras raras.

Dizer tudo o que eu digo nunca basta
pois para ti não chegam as palavras
meu amor é uma expressão que já está gasta
mas tem sempre um aroma de ervas bravas.

É por ti tudo o que faço e digo e chamo
por ti eu tudo invento e tudo esqueço
dou tudo o que há em mim quando te amo
mas nem sei meu amor se te conheço.

Joaquim Pessoa

Friday 15 July 2016

BREAKFAST EM MASPALOMAS

Das coisas que menos esperava
num hotel de cinco estrelas
era encontrar um gato
no meu prato de torradas.
Como num dos poemas últimos de Montale,
enquanto o chá arrefecia,
foi-se afastando pelo muro do terraço
em leves e femininos passos de dança,
como o faria Nureiev se tivesse
tomado comigo o pequeno almoço.

Eugénio de Andrade

Tuesday 12 July 2016

POEMA CENTÉSIMO TERCEIRO


"Para quando puder", é não ter
destino algum. Todo o sentido da vida
deixa de fazer sentido quando os sentidos
ordenam que me afaste, que coma de mim mesmo
o pão de cada dia. Ah, sim, "para quando puder"!
O sonho também traz sabedoria mas
até o sonho necessita de tempo. Pertenço
ao canto dos pássaros e, vejam! tenho as raízes
a florir! É por isso que não acredito no destino.
Acredito nas palavras. Acredito nas coisas
que podem ser mais fortes do que eu: beijos,
poemas, relâmpagos, ou raios de sol. O poeta
que há dentro de mim não tem destino,
o reencontro é sempre "para quando puder",
e isso divide-nos. Torna-nos, não direi desconhecidos,
mas irmãos com uma relação desconfortável
e, por vezes, nada tranquila. A boca é
uma espécie de coração, e o coração uma espécie
de moinho a rodar, a rodar sempre, macerando
a voz, moendo as sílabas para conseguir
a farinha própria para o pão das palavras
que quero servir à mesa do amor. E convido
o poeta para comermos em conjunto, mas
se não for possível nessa altura, ele sabe,
ficará, então, "para quando puder"!

Joaquim Pessoa

Saturday 9 July 2016

LUGAR DO SOL

Há um lugar na mesa onde a luz
abdicou do seu ofício.
Já foi do sol
e do trigo esse lugar - agora
por mais que escutes, não voltarás
a ouvir a voz de quem,
há muitos anos, era a delicadeza
da terra a falar: «Não sujes
a toalha»; «Não comes a maçã?»
Também já não há quem se debruce
na janela para sentir
o corpo atravessado pela manhã.
Talvez só um ou outro verso
consiga juntar no seu ritmo
luz, voz, maçã.

Eugénio de Andrade

Wednesday 6 July 2016

Nos olhos de Isa a chuva grita e a noite


Nos olhos de Isa a chuva grita e a noite
Acende fogueiras.

Os meus olhos param. Nos olhos de Isa.

Oh, nos olhos de Isa espreguiça-se a madrugada
E o vento acorda para ajudar os pássaros a voar
E as árvores a acenar-lhes uma bandeira de folhas, uma tristeza verde.

Nos olhos de Isa.

Nos olhos de Isa a manhã explode num inferno de estrelas,
Num clarão de silêncio, em estilhaços de rosas, pétalas de sombra.

Nos olhos de Isa os poetas vagueiam num bosque de mel
Onde as abelhas constroem a tarde
Desesperadamente.
Nos olhos de Isa ninguém repara na minha solidão.

Joaquim Pessoa

Sunday 3 July 2016

OS TRABALHOS DA MÃO

Começo a dar-me conta: a mão
que escreve os versos
envelheceu. Deixou de amar as areias
das dunas, as tardes de chuva
miúda, o orvalho matinal
dos cardos. Prefere agora as sílabas
da sua aflição.
Sempre trabalhou mais que sua irmã,
um pouco mimada, um pouco
preguiçosa, mais bonita.
A si coube sempre
a tarefa mais dura: semear, colher,
coser, esfregar. Mas também
acariciar, é certo. A exigência,
o rigor, acabaram por fatigá-la.
O fim não pode tardar: oxalá
tenha em conta a sua nobreza.

Eugénio de Andrade

Friday 1 July 2016

Canção amarga


Descubro em ti a dor que eu próprio invento
A fúria que me bate. A força que me chama.
Amor agreste. A rosa sobre a lama.
Chuva de abril. Anel de sofrimento. 


Descubro em mim o porto aonde moras.
E a tua ausência na cama onde me deito.
Invento a flor mais triste quando choras
e a noite principia no meu leito.

Tu és o linho o beijo a despedida
és o instante a hora a vida inteira
és o meu lume o fogo da lareira
a fúria da razão mesmo vencida.

Eu sou o vinho a raiva ou a loucura
já nem sou nada sou tudo o que quiseres.
Mas onde estás? Onde é que eu te procuro?
Pássaro triste irei onde estiveres.

Ai meu amor meu canto de amargura
morres em mim tão perto de viver!

Joaquim Pessoa

Thursday 30 June 2016

*


De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

Natália Correia

Monday 27 June 2016

TEATRO DOS DIAS

Ninguém cheira melhor
nestes dias
do que a terra molhada: é outono.
Talvez por isso a luz,
como quem gosta de falar
da sua vida, se demora à porta,
ou então passa as tardes à janela
confundindo o crepúsculo
com as ruínas
da cal mordidas pelas silvas.
Quando se vai embora o pano desce
rapidamente.

Eugénio de Andrade

Friday 24 June 2016

Com que voz


Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura prisão me sepultou,
que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado?

Mas chorar não se estima neste estado,
onde suspirar nunca aproveitou;
triste quero viver, pois se mudou
em tristeza a alegria do passado.

Assim a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima o pé que o sofre e sente!

De tanto mal a causa é amor puro,
devido a quem de mim tenho ausente
por quem a vida, e bens dele, aventuro.

Luís Vaz de Camões

Tuesday 21 June 2016

OS PEQUENOS PRAZERES

O copo de água fresca
sobre a mesa,
a réstea de luz incendiando
ainda a mão,

as palavras que dão sentido à arte
dos dias a caminho do fim,
"a beleza
é o esplendor da verdade",

o sol
que dos flancos do muro sobe
ao olhar do gato,
o silêncio de ramo em ramo,

a chuva em surdina
na folhagem do jardim
- a chuva e a cumplicidade
de Gieseking e Debussy.

Eugénio de Andrade

Saturday 18 June 2016

SEM VASSALAGEM


Nada mais de mim
haverá memória

- sei -

só os poemas darão conta
de minha avidez

da minha passagem

Da minha limpidez
sem vassalagem

Maria Teresa Horta

Wednesday 15 June 2016

MESMO DEPOIS DO DIA...


Mesmo depois do dia em que por fim triunfe,
abolidas as classes, a justiça no mundo,
do pior ao melhor, ascensionalmente,
prosseguirá sem pausa o movimento de sempre.
Apenas, por diferença, fundamental no entanto,
o que antes sucedia por explosões brutais
passará a fazer-se por graduais mudanças.
A luta travar-se-á não já entre interesses,
mas entre simplesmente o moderno e o antigo,
desde o exterior aos homens até a neles próprios,
nos recessos estagnados da sua consciência.
O que era, pois, forçado tornar-se-á voluntário.
O que era, pois, penoso tornar-se-á natural.

Armindo Rodrigues

Sunday 12 June 2016

*


Andámos a distribuir cigarros pelos soldados.
De guarda aos quartéis, espingardas mansas assentes no chão.
E os cravos [tão presentes em nós, ainda].
E a gente... tanta.
Tu aqui, e tu, e tu, também. Afinal...
Os cartazes alinhavados por mãos apaixonadas gritando todas as palavras só conhecidas em letra clandestina.
Todos os abraços, todas as presenças até então atrás de grades, de fronteiras, de casas escondidas.
Todas as lágrimas choradas de alegrias, agora.
- Como cresci, irmão. Como embranqueceram entretanto os teus cabelos.
Esquecer a dor. Soltá-la. Vê-la transformada num imenso rio a caminho do amanhã.
Em cada rosto, em cada olhar, lia-se uma só palavra - Liberdade.
E nas vozes um grito forte que continua ainda hoje a comandar os nossos passos.
Mesmo quando silenciosos, mesmo quando nasce o desencanto.
Nunca mais!


Maria Eugénia Cunhal

Thursday 9 June 2016

DAI-ME UM NOME

Dai-me um nome, um só nome
para tudo quanto voa:
cardo pedra romã.

Um só nome para o desejo
ser na manhã corola
de cal, cotovia,

chama subindo
baixando até ser incêndio
de amor rente ao chão.

Um só nome para que tudo,
rosa excremento mar,
possa entrar numa canção.

Eugénio de Andrade

Monday 6 June 2016

POEMA AO CUIDADO


Cuidado de mal amado
meu mal
de mal cuidado
*
novas de dano chorado
ou perjuro do que
afirmo
quando olho o meu cuidado
*
Cuidado meu fruto
cedo
colhido sobre o seu
ramo
*
cuidado de muito engano
quando descanso o cuidado
como a cuidar de quem amo

Maria Teresa Horta

Friday 3 June 2016

À ENTRADA DA NOITE

Fogem agora, os olhos: fogem
da luz latindo.
Estão doentes, ou velhos, coitados,
defendem-se do que mais amam.
Tenho tanto que lhes agradecer:
as nuvens, as areias, as gaivotas,
a cor pueril dos pêssegos,
o peito espreitando entre o linho
da camisa, a friorenta
claridade de abril, o silêncio
branco sem costura, as pequenas
maçãs verdes de Cézanne, o mar.
Olhos onde a luz tinha morada,
agora inseguros, tropeçando
no próprio ar.

Eugénio de Andrade

Wednesday 1 June 2016

Havemos de voltar


Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
havemos de voltar

ÀS nossas terras
vermelhas do café
brancas de algodão
verdes dos milharais
havemos de voltar

Às nossas minas de diamantes
ouro, cobre, de petróleo
havemos de voltar

Aos nossos rios, nossos lagos
às montanhas, às florestas
havemos de voltar

À frescura da mulemba
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar

À marimba e ao quissange
ao nosso carnaval
havemos de voltar

À bela pátria angolana
nossa terra, nossa mãe
havemos de voltar

Havemos de voltar
À Angola libertada
Angola independente

Agostinho Neto

Monday 30 May 2016

Voz do Sangue


Palpitam-me
os sons do batuque
e os ritmos melancólicos do blue

Ó negro esfarrapado
do Harlem
ó dançarino de Chicago
ó negro servidor do South

Ó negro da África
negros de todo o mundo

eu junto
ao vosso magnífico canto
a minha pobre voz
os meus humildas ritmos.

Eu vos acompanho
pelas emaranhadas africas
do nosso Rumo.

Eu vos sinto
negros de todo o mundo
eu vivo a nossa história
meus irmãos.

Agostinho Neto.

Friday 27 May 2016

O SACRIFÍCIO

Não gostaria de falar desse primeiro
encontro com as dificuldades do corpo.
Ou não seriam do corpo? Fora
do corpo haverá alguma coisa?
Foi há tantos anos, que espanta
que dure ainda na memória.
A extrema juventude guarda melhor
o tempo. Idade da flor, assim
lhe chamam. Idade de ser homem,
dizem também. O que é então
ser homem? Ou ser mulher?, se poderá
perguntar. Aqui, era ser homem: idade
de ir às putas. Entrava-se na sala
envergonhado, depois de se bater
à porta. Elas lá estavam: num salto
uma apalpou-o: Que cheiro a cueiros,
exclamou, olhando o cordeiro
do sacrifício. Ao fim, com dez escudos
pagavas o seres homem.
Não era caro, provares a ti mesmo
que pertencias ao rebanho.

Eugénio de Andrade

Tuesday 24 May 2016

Com os olhos secos


Com os olhos secos
-estrelas de brilho inevitável
Através do espírito
Sobre os corpos inânimes dos mortos
Sobre a solidão das vontades inertes
Nós voltamos


Nós estamos regressando África
E todo o mundo estará presente
No super-batuque festivo
Sob as sombras do Maiombe
No Carnaval grandioso
Pelo Bailundo pela Lunda

Nós voltamos África
Estrelas de brilho irresistível
com a palavra escrita nos olhos secos
-LIBERDADE

Agostinho Neto.

Saturday 21 May 2016

CANÇÃO DA MÃE DE UM SOLDADO DE PARTIDA PARA A BÓSNIA


É muito jovem, sem tempo ainda
de ser triste. Demora-se nos meus olhos
enquanto leva a maçã à boca.

Nenhuma fala obscura escurece a tarde,
a cabeleira solta é a sua bandeira;
o pés brancos, irmãos
da chuva de verão, anunciam a paz.

Suplico à estrela da manhã
que lhe guie os passos, agora que partiu;
que tenha em conta a sua ignorância,
não só da morte, também da vida.

Eugénio de Andrade

Wednesday 18 May 2016

Poema de uma quarta feira de cinzas


Entre a turba grosseira e fútil
Um pierrot doloroso passa.
Veste-o uma túnica inconsútil
feita de sonho e de desgraça…


O seu delírio manso agrupa
atrás dele os maus e os basbaques.
Este o indigita, este outro apupa…
indiferente a tais ataques,

Nublaba a vista em pranto inútil,
Dolorosamente ele passa.
veste-o uma túnica inconsútil,
Feita de sonho e de desgraça…

Manuel Bandeira

Sunday 15 May 2016

SIGLA

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
a pança do patrão não lhe cabe na pele
a mulher do gerente não lhe cabe na cama.
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o canedal estoira
e o capital derrama

O salário é sagrado
o direito é divino
mais o caso arrumado
do poder que é bovino.

O papel é ao quilo
o cadáver ao metro
mais o isto e aquilo
com que se mata o preto.

O retrato é chapado
a moldura é antiga
para um homem armado
a catana é cantiga.

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o respeito algemado
o sorriso fiel
do senhor cão pastor que tem coleira aos bicos
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
só salvamos a pele se formos cães de ricos:

A palhota de mágoa
a casota de medo
mais o pão e a água
que nos dão em segredo.

A gaveta arrumada
a miséria contida
mais a fome enfeitada
que há num dia de vida.

O cachorro quieto
o prazer solitário
do filho predilecto
do doutro numerário.

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
a folha de serviços a folha de papel
o fabrico o penico o sono estuporado.
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o silêncio por escrito o silêncio ladrado:

A mensagem urgente
o envelope fechado
mais o rabo pendente
do animal escorraçado.

O contínuo presente
o contínuo passado
mais a fala deferente
do contínuo coitado:

Permite-me permite
Vossa celebridade
o limite o limite
o limite de idade?

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
Ai o sal deste mar ai o mel deste fel
o azeite o bagaço
o cagaço o aceite
deste lagar Tarzan traumatizado.
Ai a fase do leite
ai a crise do gado
neste curral sinónimo do homem
ANÓNIMO
RESPONSÁVEL
LIMITADO.

José Carlos Ary dos Santos

Thursday 12 May 2016

Dia 335


No estio, uma flecha ardente atravessa sem passaporte a minha
admiração. É uma aventura feliz que só termina quando chegam
as chuvas a uma terra que a ninguém foi prometida. A minha bi-
ografia estará para sempre escondida no universo de uma laran-
ja, e se gosto de correr para o mar de braços abertos é porque,
nesse momento, não existe nada que não seja meu.
Só o verão me pede coisas, durante as outras estações são as
coisas que me puxam até elas. Subjugam-me, obrigam-me, man-
dam em mim e, por maior que seja a minha revolta, não consegui
ainda livrar-me dessa ditadura. É por isso que a minha liberdade
veste cores quentes, ocres, laranjas, vermelhos, cujas excepções
são o azul e o muito azul.
E canto, canto como a cigarra dourada, até rasgar as asas, embo-
ra a minha imaginação ande sempre por entre bosques cheios de
sombra, mastigando palavras doces como se fossem frutos fres-
cos, inventando alquimias e desculpas.  Verei depois chegar os
pássaros do outono com os seus fatos escuros, como se algo de
trágico estivesse para acontecer. A vocação da terra é a sensuali-
dade, e essa obrigação de repetidamente ficar prenhe, de parir
coisas heróicas, permitindo-nos ser descuidados, fúteis, e capa-
zes de nos contentarmos por saber tão pouco.
Ao menos, no estio, tudo é quase, quase inocente. Até a sabedo-
ria, entre o tempo e o lugar, não é nunca a última a despir-se pa-
ra um despreocupado banho de mar, à hora a que recolheram já
a casa, não só o escaravelho mas também a toutinegra e o pintar-
roxo.

Joaquim Pessoa

Monday 9 May 2016

A CORTIÇA

É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal
há gente que arrefece que arrefece
de sol a sol
de mal a mal.
É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal.

Passando o Tejo para além da ponte
que não nos liga a nada
só se vê horizonte
horizonte
e tristeza queimada.

É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
uma fome tão grande que trespassa
o ventre de quem a leva.
É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:

Mal finda a noite escurece logo o dia
e uma espessa energia
feita de pus no sangue
de lama na barriga
nasce da terra exangue e inimiga.

É o vapor da sede é o calor do medo
a cama do ganhão
a casca do sobredo.
É o suor com pão
que se come em segredo.

É preciso dizer-se o que nos dão
no meu país de boa lavra
aonde um homem morre como um cão
à míngua de palavra:

Por cada tronco desnudado um lado
do nosso orgulho ferido
e por cada sobreiro despojado
um homem esfomeado e mal parido.

Ah não, filhos da mãe!
Ah não, filhos da terra!
Os enjeitados também vão à guerra.

José Carlos Ary dos Santos

Friday 6 May 2016

POEMA OCTOGÉSIMO QUARTO


A manhã rompe-se com o canto dos pássaros e as flores amarelas pedem justiça ao vento, que saiu de casa feliz, para incendiar nos pensamentos a intimidade do dia.
Ganham entusiasmo as minhas mãos, os olhos dizem-me que hoje a felicidade é possível, que é de vida que se alimenta a fogueira do amor.
E eu caminho com a sabedoria das coisas que escolheram apaixonar-se pelo mar, essas coisas simples que procuram tornar ainda mais simples cada minuto, cada gesto, cada beijo.
Amo as coisas simples porque a sua simplicidade é a de carregar o mundo, grávidas que estão da sua nudez, sabendo que a morte não é mais que uma palavra e o amor são todas as palavras, as doces e temíveis palavras que vestem a vida de brocados e de sedas tão macias, tão raras, tão intensas como a simples e profunda memória do cheiro e do sabor que só tem a pele de uma mulher.

Joaquim Pessoa


Tuesday 3 May 2016

O TURISMO


Visitar este país
até à última gota:
O porco e o Porto a bola e a bolota
o que é como quem diz
itinerar a derrota.

Tudo tem lugar no mapa
Paris Washington Moscovo
Em Itália vê-se o papa
em Lisboa vê-se o povo.

Welcome Bienvenus Salud Wilkommen Viva
a sífilis saúda-vos saúda-vos a estiva
desta carga de heróis em carne viva
nociva mas barata
vindes matar a sede com uva
beber o sumo de ócio que nos mata.

Desemborcais nos cais desembolsais demais
mas não sabeis
as coisas viscerais as coisas principais
deste país azul
com mais hotéis do que hospitais
talvez por ser ao sol talvez por ser ao sul.

Aqui ao pé do mar bordamos a tristeza
as toalhas de mão as toalhas de mesa
que levais para casa Souvenir
deste povo sem pão
que se cose a sorrir.

Aqui ao pé do rio gememos a saudade
nosso fado submisso nossa água a correr.
Canção de mal devir Souvenir Souvenir
deste povo de trégua
que se canta a morrer.

Aqui ao pé do vento forjamos o lamento
dum país que se vende a peso nos prospectos
tanto de sol ardente tanto de cal fervente
e uma nódoa de céu nos xailes pretos.

Aqui ao pé do fel gritamos o segredo
do que parece fácil neste país de luz:

é apenas a fome.

É apenas o medo.

É apenas o sangue.

É apenas o pus.


José Carlos Ary dos Santos

Sunday 1 May 2016

AMIGOS...


Amigos, quero compor para vós uma canção,
uma canção nova, uma canção melhor!
Queremos instaurar aqui na terra,
agora mesmo, o reino dos céus.

Queremos ser felizes nesta terra,
aqui queremos derrotar a fome
e que o ventre preguiçoso não devore
o que mãos trabalhadoras produziram.

Cresce, aqui em baixo, pão que chega
para os filhos dos homens
e ainda há rosas e mirtos,
beleza, alegria e ervilhas-de-cheiro.

Sim, ervilhas-de-cheiro para todos,
logo ao abrir das vagens!
O céu, não o queremos para nada,
fiquem com ele os anjos e os pardais.

Uma nova canção, uma canção melhor!
Dir-se-iam flautas e violinos...
O miserere terminou,
calou-se o dobre fúnebre dos sinos.

Heinrich Heine

Saturday 30 April 2016

Casa de penhores


I

Rua estreita - não sei quem lá passou...
Porta aberta - não sei quem lá entrou.
Não sei - não sei dizer e não me importa,
nem a rua, cansada de ser rua,
nem a porta cansada de ser porta.

Mas foi aqui, na rua triste e nua,
e junto à porta aberta, fria e larga,
que me surgiu aquela frase amarga
e nunca mais me deixou:

- Schubert empenhou o violino e o mundo não estoirou!

II

Mas não falemos de Schubert... falemos da velha tonta...
- A velha tonta que perdeu a neta
e anda, de porta em porta, a imitá-la...

Diz assim, aflautando a sua fala:

«Ó velha, conta... ó velha, conta
aquela história triste do poeta...»

- A velha tonta que perdeu a neta
todos os dias ajoelha
em frente da lamparina...

(O Cristo empenhou-o a velha
para salvar a neta pequenina...)

E a velha tonta reza à lamparina:

- «Meu Deus, perdoa-me a audácia
de ter teu Filho empenhado...
- Foi para pagar a conta da farmácia...
perdão, meu Deus, perdão!»

- e o Cristo, resignado,
em três meses de juro crucificado,
espera o dia do leilão.

Sidónio Muralha

Wednesday 27 April 2016

A PESCA

O bafio o safio a enguia o atum
um para todos todos para um
mas nenhum por todos
e todos por nenhum.
Ai a raiva Ai a raiva
de pescar em jejum.

Amadores da fala das marés
cicatrizes da faina amadizes da gala
duma cauda de renda duma onda de espuma
este mar aprendiz da vossa força
aprende a ser o vosso
ou de coisa nenhuma.

Obrigai-os a dar-vos o que a vós
deve em suor e choro.
Quando dizeis em coro
à uma à uma à uma
se não for vosso o barco
há-de ser vossa a voz
ou de coisa nenhuma.

Uma lua uma vela uma lula uma estrela
que lindo e mole é tudo
mas quem dará por elas
mais do que um pão de silêncio uma pedra de vinho
Ah não!
deveis vencê-las
às vagas que vos saem ao caminho.

Garanhões das correntes
campeões
dos músculos da água
ide
ide e voltai contentes
com vossas redes cheias dos latentes
peixes da nossa mágoa.

Trazei monstros marinhos e ancestrais
piranhas tubarões moreias e serpentes
mas sobretudo os peixes canibais
que se nutrem de gente.
Despejai-os na lota como ao ódio
escamado que vos cobre:

Durante a luta
haveis de ver quem morre.

José Carlos Ary dos Santos

Sunday 24 April 2016

A teu lado


A teu lado, amor,
não há muros, silêncio, morte.

Por cada espinho de aço cravado
em nossa carne,
há um rio de sangue e primavera.

Por cada bofetada,
um sorriso de criança.

Por cada insulto,
por cada punhalada,

uma seara, uma estrela, uma cidade.

Papiniano Carlos

Thursday 21 April 2016

RETRATO DE ALVES REDOL

Porém se por alguém não foi ninguém
cantou e disse flor canção amigo
a si o deve. A si e mais a quem
floriu cresceu cantou lutou consigo.

Homem que vive só não vive bem
morto que morre só é negativo
morrer é separar-se de ninguém
e contudo com todos ficar vivo.

Nado-vivo da morte. É isso. É isso.
Uma espécie de forno de bigorna
de corpo imorredoiro que transforma
em fusão o metal do compromisso:
Forjar o conteúdo pela forma:
marrar até morrer. E dar por isso.

José Carlos Ary dos Santos

Monday 18 April 2016

Manhã


Bom dia - diz-me um guarda.
Eu não ouço... apenas olho
das chaves o grande molho
parindo um riso na farda.

Vómito insuportável de ironia
Bom dia, porquê bom dia?

Olhe, senhor guarda
(no fundo a minha boca rugia)
aqui é noite, ninguém mora,
deite esse bom dia lá fora
porque lá fora é que é dia!

Luís Veiga Leitão

Friday 15 April 2016

SONETO PRESENTE

Não me digam mais nada senão morro
aqui neste lugar dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu.

José Carlos Ary dos Santos

Tuesday 12 April 2016

E POR VEZES


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão-Ferreira

Saturday 9 April 2016

CERNE


Constantemente me interrogo.
E, se não me interrogasse,
como saberia eu
o meu certo rumo?
Como poderia eu, portanto,
negar com tanta segurança,
por hipótese,
sobre as mentiras fáceis,
as dificílimas verdades?

Armindo Rodrigues

Wednesday 6 April 2016

Quem escolhe o caminho das pedras


Quem escolhe o caminho das pedras
foge à fascinação do fácil

Quem escolhe o caminho das pedras
sabe de cor a cor do sangue

Quem escolhe o caminho das pedras
nada quer para tudo ser

Quem escolhe o caminho das pedras
ama o amor na raiz do lume

Quem escolhe o caminho das pedras
equilibra-se nos fios da morte

Luís Veiga Leitão

Sunday 3 April 2016

A VIDA É FEITA DE INSTANTES

A vida é feita de instantes
em constante oposição.
Nenhum é como foi dantes.
Foram-se uns, outros virão.
Em que é o homem igual,
a não ser em nunca o ser?
Quem sabe o que o mundo vale
mais tem de que se valer.
Uma esperança se quebranta?
Outra toma a dianteira.
O que mais na vida espanta
é a própria vida inteira.

Armindo Rodrigues

Friday 1 April 2016

A Menina


Sou eu que bato às portas,
às portas, umas após outras.
Sou invisível aos vossos olhos.
Os mortos são invisíveis.

Morta em Hiroxima
há mais de dez anos,
sou uma menina de
sete anos.
As crianças mortas não crescem.

Primeiro arderam os meus cabelos,
também os olhos arderam, ficaram calcinados.
Num instante fiquei reduzida a um punhado de cinzas
que se espalharam
ao vento.

No que diz respeito
a mim,
nada vos imploro:
não podia comer nem sequer bombons,
a criança que ardeu como papel.
Bato à vossa porta, tio, tia:
uma assinatura. Não matem as crianças
e
deixem-nas também
comer bombons.

Nazim Hikmet

Wednesday 30 March 2016

O progresso das ciências


Conseguiram encerrar o vento,
retirar a pouco e pouco o ar
e - maravilha! - o povo
resiste ainda e vive.

A asfixia é lenta e os que morrem
parecem ir de morte natural.

Hoje porém os sábios consideram
enganosa essa fórmula que reduz
o paciente à condição de peixe triste.

Pois no repouso fictício a onda
aguarda o luar da maré cheia.

Nas manhãs da terra
as manchas de sangue ganham punhos;
a viva carne cobre o inesperado.

Egito Gonçalves

Sunday 27 March 2016

DA CONTRADIÇÃO

Por contradições se avança.
Na constante contradança
de negar e ser negado,
mudança atrás de mudança,
nunca a mudança se cansa,
nada está nunca acabado.

Armindo Rodrigues

Thursday 24 March 2016

Sigilo poético


Peço-vos sigilo sobre os meus versos.

Bem sei que arrisco não constar
nos tops de vendas
mas como é sabido
nos dias que correm
tudo o que é feito com amor
deve ser tratado com a máxima discrição
até porque se os meus versos
forem bons
destruo toda a minha reputação
de diletante e promessa adiada

Por isso vos peço
respeitem a natureza clandestina
dos meus versos
não falem deles a ninguém
nem amigos nem família nem colegas

só aos amantes

Tiago Rodrigues

Monday 21 March 2016

Pauta

O que do intento à acção
for capaz de se mover,
com mais ou menos alarde,
soberba, ou despretensão,
sem a prudência o tolher,
sem a consciência perder,
podem-lhe os joelhos tremer,
podem-lhe os dentes bater.
O que não é é cobarde.

Armindo Rodrigues

Friday 18 March 2016

Expulso, e com razão


Eu cresci como filho
de gente abastada. Os meus pais puseram-me
um colarinho ao pescoço e criaram-me
nos costumes de ser servido
e ensinaram-me a arte de mandar. Mas
quando era já crescido e olhei à minha roda,
não me agradou a gente da minha classe,
nem o mandar nem o ser servido.
E eu abandonei a minha classe e juntei-me
à gente pequena.

Assim
criaram eles um traidor, educaram-no
nas suas artes, e ele
atraiçoa-os ao inimigo.

Sim, eu divulgo segredos. Entre o povo
estou eu e explico
como eles enganam, e predigo o que vai vir, pois eu
estou iniciado nos seus planos.
O latim dos seus padres corruptos
traduzo-o palavra a palavra para a língua comum,
e então se descobre que é tudo pantomina.
A balança da sua justiça
tiro-a para baixo e mostro
os pesos falsos. E os seus informadores vão dizer-lhes
que eu estou com os roubados quando conjuram
a revolta.

Admoestaram-me e tiraram-me
o que ganhei com o meu trabalho. E quando eu não melhorei,
deram-me caça.
Porém
já só havia escritos em minha casa, que descobriam
os seus conluios contra o povo.
E assim
perseguiram-me com um mandato de captura
que me acusava de opiniões baixas, isto é
de opiniões dos de baixo.

Aonde chego, fico marcado
para todos os possidentes,
mas os que nada têm lêem o mandato e
dão-me abrigo.
«A ti» - ouço eu dizer -
«expulsaram-te eles, e
com razão».

Brecht

Tuesday 15 March 2016

ARRANCA DA CABEÇA O PENSAMENTO...

Arranca da cabeça o pensamento,
esvazia o coração de simpatia,
e, morto, viverás com alegria,
neste triste lugar, neste momento.
Mas se a isto preferes o tormento
de uma luta constante, amarga e fria,
da tua noite romperá o dia
em que à afronta a levará o vento.
Não te importe se à voz te não responde
sempre outra voz ardente como a tua,
nem te importe sequer porque se esconde.
Crê só que no silêncio a raiva estua,
e amanhã, sem saberes como e donde,
ela virá bradar em cada rua.

Armindo Rodrigues

Saturday 12 March 2016

Elegia por antecipação à minha morte tranquila



Vem, morte, quando vieres.
Onde as leis são vis, ou tontas,
não és tu que me amedrontas.
Troquei por penas prazeres.
Troquei por confiança afrontas.
Tenho sempre as contas prontas.
Vem, morte quando quiseres.

Armindo Rodrigues

A morte veio no dia 8 de Agosto de 1993.
O POETA tinha «as contas prontas».

Wednesday 9 March 2016

IDEIAS BOAS OU MÁS

Ideias boas ou más,
actos maus ou actos bons,
é a vida quem os faz,
ou são os seus próprios dons?
A quem negue a liberdade
vá-se ao extremo de a impor.
Não é com meia verdade
que uma verdade dá flor.
E não se tenha receio
de perder para ganhar.
A liberdade é um meio
de a vida se libertar.

Armindo Rodrigues

Sunday 6 March 2016

Prisão de Caxias, 1949


Como fantasmas, sem repouso,
no corredor andam os guardas,
de pistola à cinta, dia e noite.
Nuvens vazias lhes pesam.
Um vinho azedo os corrompe.
O corredor é longo e estreito.
longo e sujo,
longo e escuro.
Do tecto baixo as lâmpadas exaustas
dir-se-ia que de remorsos lhe põem mais sombras
na atmosfera sombria de remorso.
Só nas salas, fechados, os presos falam,
os presos riem,
os presos cantam.
Não há remorso na lembrança deles.
Na desgraça deles não há remorso.
O remorso ficou lá fora,
no corredor onde andam os guardas,
de pistola à cinta, dia e noite,
a manchar de vergonha a vida
e a fazer nojo aos escarradores
alinhados contra a parede.
O remorso ficou lá fora,
na felicidade e na cobardia
dos que se alheiam do combate.

Na minha sala há treze presos.
Treze são as salas que dão
para o corredor onde andam os guardas,
de pistola à cinta, dia e noite.
Maldita seja a maldição
com que à honra se responde.
Cada sala tem uma janela
que nem finge de fingimento,
porque além da barreira das grades
em frente um talude nos cobre
a despreocupação de ave
do horizonte desdobrado,
e lá fora andam outros guardas,
de carabina ao ombro, dia e noite.

Na minha sala há treze presos,
com treze protestos erguidos,
mas erguida uma só bandeira.
São criminosos de querer,
num tempo torpe de prisões,
as torpes prisões arrasadas.
Os outros presos, nas outras salas,
sangram das mesmas feridas,
ardem de desejo igual.
Estão aqui presos, mas são livres,
porque neles a justiça
sopra como os vendavais.
A prisão ficou lá fora,
nos felizes e nos cobardes.

Armindo Rodrigues

Thursday 3 March 2016

NA MINHA COURELA...

Na minha courela, enquanto a lavro,
é sempre manhã, mesmo se já noite.
O meu ofício farto
é o de cultivar sonhos.
Deito trigo à terra e nasce-me luz.
Deito luz à terra e nasce-me trigo.
Nem há mais exacta semente que esta,
que dá a colheita ao sabor da fome.

Armindo Rodrigues