Tuesday 30 January 2018

Pirata


Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Saturday 27 January 2018

Eu preciso de ouvir a tua voz


Não me peças amor dá-me prazer
Com amizade se o quiseres mas só
E as palavras caíram sobre o corpo
Como sobre uma estátua o vento e o pó

Não me peças amor, mas o que é isto?
Que nome queres que eu dê à tua idade?
Se a carícia que prende a tua mão
Rende e ultrapassa o tempo da amizade

Se a tua Primavera é meu estado
No caminho da esperança que te exprime
Eu traía a alegria de uma hora
Cada vez que o teu corpo se aproxime

E não perguntes mais do que é preciso
A encontrar na distância que há em nós
Com amor ou sem ele pouco importa
O que eu preciso é de te ouvir a voz.

Vasco de Lima Couto

Wednesday 24 January 2018

As notícias da guerra


Quisera esquecer-se das notícias da guerra,
voltar a cara um pouco ao egoísmo dos seus dias,
e olvidado o tempo da batalha
refugiar-se
- quem sabe onde! -
oculto
ao ruído dos tiros.
Mas quando lhe dizem que a bomba rebentou
sobre o junco no canavial
e que o estrépito do bombardeio ainda afoga a flautita
que percorria o tempo das aldeias
e que o grito rebenta interminável confundindo-se
com o hino das colheitas:
então
quisera olvidar seu nome e rasgar todas as palavras
que pouco ou nada podem fazer pelo junco rebentado.

Então,
este homem quisera rasgar-se diante do espelho.

Alberto de Diego

Sunday 21 January 2018

Pergunta-me


Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser

se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer.

Mia Couto

Thursday 18 January 2018

Apenas o meu Povo


Quem disse que morreu a madrugada?
Quem disse que esta noite foi perdida?
Quem pôs na minha alma magoada
As palavras mais tristes que há na vida?

Quem me disse saudade em vez de amor?
Quem me disse tristeza em vez de esperança?
Quem me lançou a pedra do terror?
Matando o cantador e a criança?

Quem fez da minha espera desespero
Quem fez da minha sede temperança
Quem negando tudo quanto eu quero
Da minha tempestade fez bonança

Quem amainou os ventos do meu corpo
E saciou o mar da minha fome
Quem foi que me venceu depois de morta
E soletrou as letras do meu nome?

Quem foi que me fez serva sem servir
Quem foi que me fez escrava sem querer
Quem foi que disse que eu podia ir
Tão longe quanto nós podemos ser

Apenas quem me viu calada e triste
E despertou em mim um mundo novo
Apenas a esperança que resiste
Apenas o meu sangue... apenas o meu povo!

Ary dos Santos

Monday 15 January 2018

Praia de Outono


Praia de Outono desfigurada
Pela mordaça das marés vivas
Praia de Outono transfigurada
Pela ameaça de alguém partir

Aquele amor sob o furor do mar
Já começou a declinar.
Tenho medo!
Nem eu sei de quê...a noite vem tão cedo
Praia de Outono...ninguém nos vê

Em ti a bruma
Em mim ciúme
Vão-nos velando
A nós como as marés

Não se vislumbra
Esperança nenhuma
De alguém saber
Quem sou nem quem tu és.

David Mourão-Ferreira

Friday 12 January 2018

O sal da língua


Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.


Eugénio de Andrade

Tuesday 9 January 2018

Amigos


Pode ser que um dia deixemos de nos falar...
Mas, enquanto houver amizade,
Faremos as pazes de novo.

Pode ser que um dia o tempo passe...
Mas, se a amizade permanecer,
Um do outro há de se lembrar.

Pode ser que um dia nos afastemos...
Mas, se formos amigos de verdade,
A amizade nos reaproximará.

Pode ser que um dia não mais existamos...
Mas, se ainda sobrar amizade,
Nasceremos de novo, um para o outro.

Pode ser que um dia tudo acabe...
Mas, com a amizade construiremos tudo novamente,
Cada vez de forma diferente.
Sendo único e inesquecível cada momento
Que juntos viveremos e nos lembraremos para sempre.

Há duas formas para se viver a vida:
Uma é acreditar que não existe milagre.
A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre.

Albert Einstein

Saturday 6 January 2018

POEMA SEXAGÉSIMO SÉTIMO


Beijo o sino que é a tua boca
e tudo nasce, tudo canta, tudo
se transforma.
Nunca foi um pecado amar a tua carne, com
um amor integral e único,
e o espírito que brilha no alto das crianças
ou no coração azul das macieiras.
Percorro a tua vida com este amor cheio
de dúvidas, e com mãos duvidosas também.
Em ti, posso medir a esperança, a serenidade
e o imenso cansaço crescendo
dos meus braços para o mar,
entrando depois pelo teu corpo
para acender lentamente
o fogo
e pronunciar
a oração do fogo.

O que escrevo,
há muito retirei da tua voz,
esse rio que transborda em mim,
cujas margens sou eu, este eu abnegado e lutador,
capaz de florir uma alegria jovem enquanto
o fogo arde.
Não é uma coisa admirável
compartilhar o mesmo leito, como
duas gaivotas felizes
embasbacadas de azul?

Estamos
em toda a parte,
até nos dias mais ferozes.
A minha vida e a tua vida
ondulam nos trigais sob o vento da primavera
e sei que será nosso o oiro macio deste pão,
porque é também nossa a fome de infinito.
A pátria das palavras ainda existe em nós,
ainda espera por nós,
para que lhe demos um pouco mais
do que o vazio,
agora que se mostra mais terrível a pilhagem
num tempo em que não há história
nas histórias.

Alguém emboscou a nossa casa
para roubar às palavras a carícia do que somos
para se deter contando as nossas feridas,
mas as palavras resistem,
não deixam de pensar,
trazem em si o fogo e a turbação da coragem,
as palavras amam-nos,
são guardiãs do nosso amor,
e se eu tiver de morrer sangrando,
que seja com elas, sem ter
de lamentar a minha luta, sem
ter de renegar o canto
imprescindível
do amor.

Joaquim Pessoa

Wednesday 3 January 2018

os sonhos


ao longo do corredor estreito
comprimo-me e sonho contigo
num quarto de hotel com a luz a raiar p'la janela
em traços oblíquos de tinta rasgando o fumo
do cigarro denso que espessa o ar.


na porta do quarto número tal,
olhando para um lado e depois o outro,
bato os nós dos dedos e fulmina-me uma ferida
que o passado me cravou sem cicatriz à vista.

e o sonho esvai-se
quando o teu sorriso afinal é um grito.

Miguel Tiago


Monday 1 January 2018

O LIVRO COM CAPA DE COURO

Na noite passada
à luz
fo luar
li, durante horas,
como um derviche louco
cuja vela se tivesse apagado,
li o livro com imagens a cores,
o grande livro da capa de couro dourado, já rasgada.

Cada página amarelecida
do livro que dorme
por baixo da capa rasgada
de couro dourado
espalhava
um odor a bafio.

As suas linhas animaram-se uma a uma
e diante da mesa de leitura
ergueram-se sob a forma
que lhe dão as fábulas:
O Diabo
tomou o aspecto de uma serpente,
Adão
sucumbiu
à atracção de Eva.
Vi Abel matar Caim como um danado,
um grande navio em madeira singrou no Oceano do sonho.
No horizonte vi Noé
à espera de uma pomba.
Então pareceu-me estar a calcar
a terra de um túmulo.
No alto do Monte Sinai vi Moisés
levantar os braços para Deus, que o ouviu
e a um sinal da sua vara o mar abriu-se.
Os filhos de Israel
encontraram o caminho da Terra Prometida...
A oração de Zacarias
trasnformou-se num suspiro infinito.
Jesus nasceu e Maria
fez Dom da sua virgindade a Deuas...

Medina ofereceu a morada
a Mahomé o chorichita,
e Kerbela para Husseyin
tornou-se uma sepultura de fogo.
Sim, pouco a pouco tudo isso
se levantava e despenhava através das idades,
à medida que eu virava as páginas
do livro que espalhava odor a bafio.
Desapareceu a lua, o sol ergueu-se
uma chama nova nasceu
no meu coração.
E depois
com um gesto profundo e solene
atirei-o para o fundo de um poço
de forma a poder dormir lá o sono eterno -
o livro das páginas amarelas
com capa de couro dourado, já rasgada!...

Pobres, pobres de nós que fomos enganados
durante séculos.
Que rastejámos
como répteis.
Que ardemos
como tochas
para lobrigar na escuridão
os sinais que lá foram traçados,
para vê-los
na noite escura
e prosternar-nos diante deles.
Tudo mentiras,
o céu não concedeu
nem a misericórdia nem a salvação
aos escravos que sofrem até mais não poderem,
Moisés, Mahomé, Jesus
concederam tão-só uma prece vã, um incenso mentiroso
com os seus infernos e os seus diabos,
apontaram-nos o caminho do paraíso das fábulas,
continuamos a ser escravos e a ter senhores,
e há sempre um muro,
um muro de pedras malditas cobertas de musgo,
que atribuiu dois destinos diferentes
aos filhos da terra,
chamando senhores a uns e escravos a outros!
Que todos os seus donos, santos e eremitas
desapareçam nos profundezas das trevas eternas
cujo caminho até agora nos fizeram seguir.

Nos caminhos da luz
só existe
uma única religião,
uma única lei, uma única fé, um único direito,
igual aqui como em toda a parte:
O TRABALHO DO TRABALHADOR!

Nazim Hikmet