Monday 30 December 2013

VIAGEM ATRAVÉS DE UNS CABELOS TODOS BRANCOS


Estamos a vê-lo todos e sabemos.

Foram anos de fome, quantas vezes
à beira dos mercados e das feiras.
Foram anos com o perigo a escorrer das paredes.
Foram anos de todas as esquinas vigiadas.
Anos de encontros mais cronometrados
do que o fio-de-prumo sobre a lâmina.
Foram anos eternos de prisão
numa ilha de mar, de guardas, de muralhas
e de silêncio com o olhar feroz
de grades sobre o dia.

Foi toda a vida com o coração
sem nunca se esquecer por que batia.

Mário Castrim

Friday 27 December 2013

CANÇÃO INFANTIL


Era um amieiro.
Depois uma azenha.
E junto
um ribeiro.

Tudo tão parado.
Que devia fazer?
Meti tudo no bolso
para os não perder.

Eugénio de Andrade

Tuesday 24 December 2013

O desempregado com filhos


Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.

Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão que te resta.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.

Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a cabeça.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.

 Gonçalo M. Tavares 
In O Senhor Brecht 

Saturday 21 December 2013

ESMAGADOS...


Esmagados sob as patas
das bestas taciturnas
os nossos peitos ansiosos,

que havemos nós de fazer senão, irados,
mesmo imprudentemente,
erguer-nos contra quanto
é ordem truculenta,
crença mutiladora,
ou crime sistemático?

Armindo Rodrigues

Wednesday 18 December 2013

AINDA ME ACOLHO


Ainda me acolho, Pai,
à tua madressilva.
Ali tens a passiflora,
não envelheceu.
O cedro grande, maior ainda.
O forno, dedadas
expungidas pelas portas.
A buganvília, não esqueço,
é preciso cortá-la.
A Mãe não está nem volta.

António Osório

Sunday 15 December 2013

ESTA GENTE


Esta gente cujo rosto
às vezes luminoso
e outras vezes tosco

ora me lembra escravos
ora me lembra reis

faz renascer meu gosto
de luta e de combate
contra o abutre e a cobra
o porco e o milhafre

Pois a gente que tem
o rosto desenhado
por paciência e fome
é a gente em quem
um país ocupado
escreve o seu nome

E em frente desta gente
ignorada e pisada
como a pedra do chão
e mais do que a pedra
humilhada e calcada

meu canto se renova
e recomeço a busca
de um país liberto
de uma vida limpa
e de um tempo justo.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Thursday 12 December 2013

CAMINHEMOS SERENOS


(Para Julius e Ethel Rosemberg)

Sob as estrelas, sob as bombas,
sob os turvos ódios e injustiças,
no frio corredor de lâminas eriçadas,
no meio do sangue, das lágrimas,
caminhemos serenos.

De mãos dadas,
através da última das ignomínias,
sob o negro mar da iniquidade,
caminhemos serenos.

Sob a fúria dos ventos desumanos,
sob a treva e os furacões de fogo
dos que nem com a morte podem vencer-nos,
caminhemos serenos.

O que nos leva é indestrutível,
a luz que nos guia connosco vai.
E já que o cárcere é pequeno
para o sonho prisioneiro,
já que o cárcere não basta
para a ave inviolável,
que temer, ó minha querida?:
caminhemos serenos.

No pavor da floresta gelada,
através das torturas, através da morte,
em busca do país da aurora,
de mãos dadas, querida, de mãos dadas,
caminhemos serenos.

Papiniano Carlos

Monday 9 December 2013

APONTAMENTO PARA UM POEMA EM LAPÃO


Se a civilização do consumo pôs o problema
da falta de espaços verdes
ou da solidão da velhice,
por que é que um presidente de município comunista se sente
na obrigação de resolvê-lo?
De que se trata?
Da aceitação de uma realidade fatal?
E, uma vez que as coisas se apresentam deste modo,
o dever histórico é o de procurar melhorá-las
através do entusiasmo comunista?
O «modelo de desenvolvimento» é
o preconizado pela sociedade capitalista
que está para alcançar a máxima maturidade.
Propor outros modelos de desenvolvimento
significa aceitar o primeiro modelo de desenvolvimento.
Significa querer melhorá-lo,
modificá-lo, corrigi-lo.
Não: é preciso não aceitar tal «modelo de desenvolvimento».
E nem sequer basta rejeitar tal «modelo de desenvolvimento».
É preciso rejeitar o «desenvolvimento».
Este «desenvolvimento»: porque é um desenvolvimento capitalista.
Este parte de princípios não só errados
mas também malditos.
Triunfantes, pressupõem uma sociedade melhor e portanto burguesa.
Os comunistas que aceitem este «desenvolvimento»,
considerando o facto que a industrialização total
e a forma de vida que daí resulta é irreversível,
seriam sem dúvida realistas colaborando,
se a diagnose fosse absolutamente justa e segura.
E, pelo contrário, não é verdade -
e existem já as provas -
que tal «desenvolvimento» deva continuar
como começou.
Há, em vez disso, a possibilidade de uma «regressão».
Cinco anos de «desenvolvimento» tornaram os italianos
um povo de nevróticos idiotas,
cinco anos de miséria podem reconduzi-los
à sua mísera humanidade.
E então -
pelo menos os comunistas -
poderão ter em conta a experiência vivida:
e visto que se deverá voltar ao princípio
com um «desenvolvimento»,
este «desenvolvimento» deverá ser totalmente diferente
do que tem sido.
Coisa diversa do que propor
novos «modelos»
ao «desenvolvimento» tal como ele é agora.

Pier Paolo Pasolini

Friday 6 December 2013

QUEM...


Quem tem a consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
e no centro da própria engrenagem
inventa a contra-mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
e envolto em tempestade decepado
entre os dentes segura a primavera.

João Apolinário

Tuesday 3 December 2013

NÃO DIREI

Não direi maçãs rosadas,
nem limões, nem laranjas.

Direi que me gela
o sangue nas mãos
e me enoja viver neste tempo
e neste país.

Não direi maçãs rosadas,
nem limões, nem laranjas;
Gritarei ainda mais alto
e lutarei pela nossa liberdade.

Carles-Jordi Guardiola
(In Poetas Catalães de Hoje)

Sunday 1 December 2013

PASOLINI


Por três vezes - com dois poemas do Autor e um fotograma do filme Teorema - o Cravo de Abril recordou essa figura maior da cultura italiana (e europeia) que foi Pier Paolo Pasolini.

Hoje, partilhamos com os nossos visitantes parte da intervenção proferida por Pasolini no comício realizado no Verão de 1974, em Milão, no decorrer da Festa do Unitá (então órgão central do então Partido Comunista Italiano).

«Eis a angústia de um homem da minha geração, que viveu a guerra, os nazis, as SS, de que sofreu um traumatismo nunca totalmente vencido.
Quando vejo à minha volta os jovens que estão perdendo os antigos valores populares e absorvem os novos modelos impostos pelo capitalismo, arriscando assim uma forma de desumanidade, uma forma de afasia atroz, uma brutal ausência de capacidade crítica, uma facciosa passividade, recordo que estas eram precisamente as formas típicas das SS: e vejo assim estender-se sobre as nossas cidades a sombra horrenda da cruz gamada.
Uma visão apocalíptica, certamente, a minha.
Mas se ao lado dela e da angústia que a produz, não existisse em mim, também, um elemento de optimismo, isto é, o pensamento de que existe a possibilidade de lutar contra tudo isto, simplesmente eu não estaria aqui, convosco, a falar».

Fernando Samuel

Comentário no blogue:
Se não se importam, sento-me aqui neste lugar vago desta mesa redonda dirigida por Pasolini - que, há 34 anos, via o desenrolar sombrio das coisas, a sua evolução previsível, os perigos que nos espreitavam... E via o mais importante: com a luta é possível alterar o rumo dessas coisas, e nós estamos cá para lutar sejam quais forem as circunstâncias...

(melhor do que isto, seria se esta mesa redonda não fosse virtual e se concretizasse... sei lá, em casa de um de nós, por exemplo, com uns comes e bebes a participar na conversa: um queijo lá de cima, da Serra, um panito alentejano, um vinho especial ali de Palmela, uns pastéis de Belém, uma Trança de Espinho, etc, etc...)

Saturday 30 November 2013

E AGORA DIREI


E agora direi,
como homem do povo,
o que quer
a gente do meu país:

queremos a liberdade.

Queremos que esta nossa terra
se acalme na paz,
sem angústia ou medo,
sem roubos nem dor.
Queremos chegar ao segredo,
subir por veredas e caminhos
à terra prometida,
onde a alegria dos pássaros,
o perfume das flores
e o olhar de um amigo
se fundem finalmente.

E todos,
por um mesmo caminho,
debaixo da sombra compacta
das bandeiras e canções
avançaremos unidos:
os da velha Catalunha,
os d'além-mar,
e os do país valenciano.
E nos subúrbios
deste país nascente
levantaremos um novo templo
onde o homem catalão
se sentirá, apenas,
trabalhador do seu país.
Sentir-se-á seguro,
guiado pelos deuses
da justiça e do amor,
e oferecerá, se for preciso,
a vida da sua canção,
descalço sobre a terra,
de alfaia bem segura
na mão,
enquanto a voz
dos mortos em sacrifício
dirá
uma palavra de perdão.

Joan Colomines

Wednesday 27 November 2013

UM RAIO DE SOL É A ESPERANÇA


Um raio de sol é a esperança
do prisioneiro, que passeia em silêncio
nas celas do subterrâneo;
um barco à vela o seu sonho;
as pancadas e gritos
que ecoam pelos muros,
o seu horror.
Se ninguém escrevesse tudo o que se sabe,
enchiam-se montanhas e montanhas
de justiças violadas,
dedos apontados, acusadores,
de violências e repressões organizadas.
Então talvez o mar atacasse a cidade
e as estradas ficariam cheias de lama, de sal,
e as verdades das nossas mãos afogariam,
assim se espera,
todos os carrascos.

Isidre Molas

Sunday 24 November 2013

DIREMOS A VERDADE, SEM DESCANSO


Diremos a verdade, sem descanso,
pela honra de servir, sob os pés de todos.
Detestamos os grandes ventres, as grandes palavras,
a indecente ostentação do ouro,
as cartas mal distribuídas pela sorte,
o denso fumo do incenso a quem é potente.
Agora é a vil raça dos senhores,
agacha-se no seu ódio como um cão,
ladra de longe, ao pé usa cacete,
segue, para além da lama, caminhos de morte.

Com a canção construamos no escuro
altas paredes de sonho, defesa deste turbilhão.
Pela noite chega o rumor de muitas fontes:
estamos fechando as portas do medo.

Salvador Espriu

Thursday 21 November 2013

23/6/1958

No dia 23 de Junho de 1958, cerca de trezentos operários agrícolas concentraram-se junto à Câmara Municipal de Montemor-o-Novo.
Tinham iniciado nesse dia uma greve que, para além da exigência de melhores salários, era um protesto assumido contra a fraude eleitoral que havia roubado a vitória ao candidato antifascista general Humberto Delgado nas «eleições» de 8 de Junho desse ano.

José Adelino dos Santos, operário agrícola de 46 anos de idade, era um dos presentes.
Numa altura em que falava com outros trabalhadores, de costas para o edifício da Câmara, foi atingido por um tiro, disparado do interior do edifício, e assassinado.
Não foi um tiro de acaso: foi um tiro dirigido: dirigido a José Adelino dos Santos.
Porquê a ele?

Militante do PCP desde o início dos anos 40, José Adelino dos Santos teve um papel destacado no desenvolvimento da organização do PCP no Concelho de Montemor-o-Novo. Ele era, desde a sua juventude, um corajoso lutador antifascista, um organizador da luta de todos os dias pela democracia, pela liberdade, pela justiça social.
Por isso, e pela sua postura fraterna e solidária, era altamente prestigiado junto dos seus companheiros de trabalho - e por tudo isso, ele era também um alvo permanente da PIDE.
Foi preso pela primeira vez, em 1945; e, pela segunda, em 1949 - e de ambas as vezes barbaramente torturado. Cumpriu um total de três anos de prisão.
Estas as razões pelas quais, naquele dia 23 de Junho de 1958 aquele tiro mortal foi dirigido José Adelino dos Santos.

Uma multidão de cinco mil pessoas - que a PIDE e a GNR tentaram inutilmente impedir de entrar no cemitério - acompanhou o corpo do militante comunista à sua última morada.

Hoje, precisamente no local onde, há 50 anos, foi assassinado pelo fascismo, José Adelino dos Santos foi homenageado pelos seus camaradas e amigos - uma homenagem que foi, ao mesmo tempo, a afirmação do compromisso de continuar a luta por ele travada: pela democracia, pela liberdade, pela justiça social, pelo socialismo e pelo comunismo.

Fernando Samuel

Monday 18 November 2013

ORGULHOSAS...


Orgulhosas, por toda a parte,
a carvão, a zarcão, a ocre,
se lêem palavras de esperança,
sóbrias, serenas, sem ódio.
O ódio é com os agrários
e os guardas-republicanos,
uns e outros bem alimentados,
uns e outros cruéis e inúteis.

Armindo Rodrigues

Friday 15 November 2013

CICLO


O molar solitário duma prostituta
que morrera no anonimato
tinha uma aplicação de ouro.
Os restantes, como por mudo acordo tácito,
tinham caído.
O funcionário da morgue arrancou-o,
pô-lo no prego e foi dançar.
É que, dizia ele,
só o que é terra à terra deve voltar.

Gottfried Benn

Tuesday 12 November 2013

MEDITATIO


Ao estudar com atenção
os curiosos hábitos dos cães
sou forçado a concluir
que o homem é o animal superior.
Ao estudar
os curiosos hábitos do homem
confesso, meu amigo, que fico perplexo.

Ezra Pound

Saturday 9 November 2013

ESTIO


Horizonte
todo de roda
caiado de sol.
Ao meio
do cerro gretado
esguia cabeça de cobra
olha assobios de lume
sobre espigas amarelas...
(...Campaniços degredados
na vastidão das searas
sonham bilhas de água fria!...)

Manuel da Fonseca

Wednesday 6 November 2013

Stockausen. Música eletrónica. Viagem espacial


Em cada homem
há uma viagem para um planeta longínquo...

(Para os pobres é a Terra.)

José Gomes Ferreira

Sunday 3 November 2013

O PREGUIÇOSO


Continuarão a viajar coisas
de metal entre as estrelas,
subirão homens extenuados,
violentarão a Lua suave
e ali abrirão farmácias,

Neste tempo de uva cheia
o vinho começa a viver
entre o mar e as cordilheiras.

No Chile bailam as cerejas,
cantam as moças morenas
e nas violas brilha a água.

O sol bate a todas as portas
e faz milagres com o trigo.

O primeiro vinho é rosado,
doce como um menino pequeno,
o segundo vinho é robusto
como a voz de um marinheiro
e o terceiro é um topázio,
uma papoila e um incêndio.

A minha casa tem mar e terra,
a minha mulher tem grandes olhos
da cor da avelã silvestre,
quando chega a noite o mar
veste-se de branco e de verde
e depois a Lua na espuma
sonha como noiva marinha.

Não quero mudar de planeta.

Pablo Neruda

Friday 1 November 2013

A ÚLTIMA MOEDA


Gasta a última moeda, companheiro,
e avança contra o vento contrário,
homem despedaçado mas inteiro,
nem tu, nem ninguém escreve o teu diário,

- mas se o entusiasmo fosse dinheiro
serias milionário.

Sidónio Muralha

Wednesday 30 October 2013

ENSAIO DE CÂNTICO NO TEMPLO


Ah, que farto que eu estou da minha
cobarde e velha terra, tão selvagem,
e como gostaria de abalar
para o norte
onde dizem que a gente é
limpa e nobre, culta e rica,
viva, livre, feliz!
Então, na confraria, os irmãos diriam
reprovando: «Como pássaro que deixa o ninho,
assim o homem que deixa o lugar»,
enquanto eu, bem longe, riria
da lei, da sabedoria
antiga desta terra tão ávida.

Porém de que me serve prosseguir um sonho -
aqui hei-de ficar até morrer,
pois cobarde e selvagem também eu o sou,
e além disso amando
com dor desesperada
esta pobre,
suja, triste, desgraçada pátria minha.

Salvador Espriu

Sunday 27 October 2013

O SONÂMBULO E O OUTRO


Durante a noite não pregou olho.
Seguia os passos do sonâmbulo sobre o tecto.
Cada passo, pesado e ôco,
ressoava infindamente num canto
vazio de si próprio.
Fica à janela, esperando
apará-lo nos braços, se viesse a cair.
Mas se o outro o arrastasse na queda?
Era a sombra de um pássaro na parede?
Uma estrela? Era o outro? As suas mãos?


Ouviu-se um baque surdo no pavimento.
Amanhecia.
Abriram-se janelas. Os vizinhos acorreram.
O sonâmbulo descia rapidamente
as escadas de serviço
para acudir àquele que tombara da janela.

Yannis Ritsos

Thursday 24 October 2013

TURNO


primeiro a neve.

depois da última neve
o primeiro filho.

depois das últimas dores de parto
a primeira comunhão.

depois da última porcaria
o primeiro amor.

depois da última palavra
a primeira hipoteca.

depois do último centavo
a primeira guerra mundial.

depois da última advertência
o primeiro fiscal.

depois da última instância
o primeiro clube de futebol de nuremberg.

depois da última camisa
o primeiro auxílio.

depois da última idiotice
o primeiro violino.

depois da última honraria
o primeiro cantar do galo.

depois da última porcaria

por fim

a primeira neve.

Hans Magnus Enzensberger

Monday 21 October 2013

FLORILÉGIO


um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão

Tão longa
procissão,
tão curto
o pão.

Francisco Viana

Friday 18 October 2013

O BICHO

Vi ontem um bicho
na imundície do pátio
catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
não era um gato,
não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira

Tuesday 15 October 2013

O GLOBO


Ofereçamos o globo às crianças, ao menos por um dia.
Para que brinquem com ele como se fosse um balão multicolor.
Para que brinquem e cantem por entre as estrelas.
Ofereçamos o globo às crianças,
entreguemo-lo como uma maçã enorme
como uma bola de pão quente.
Que ao menos por um dia comam até se fartarem.
Ofereçamos o globo às crianças.
Que ao menos por um dia o mundo aprenda a camaradagem,
As crianças tomarão o globo das nossas mãos
e plantarão nele árvores imortais.

Nazim Hikmet

Saturday 12 October 2013

TELEGRAMA DE MOSCOU


Pedra por pedra reconstruiremos a cidade.
Casa e mais casa se cobrirá o chão.
Rua e mais rua o trânsito ressurgirá.
Começaremos pela estação da estrada de ferro
e pela usina de energia eléctrica.
Outros homens, em outras casas,
continuarão a mesma certeza.
Sobraram apenas algumas árvores
com cicatrizes, como soldados.
A neve baixou, cobrindo as feridas.
O vento varreu a dura lembrança.
Mas o assombro, a fábula
gravam no ar o fantasma da antiga cidade
que penetrará o corpo da nova.
A que se chamava
e se chamará sempre Stalingrado
- Stalingrado: o tempo responde.


Carlos Drummond de Andrade

Wednesday 9 October 2013

Cantámos em redor da Estátua


Em multidão
os homens parecem maiores do que são.

Nela,
a nossa voz,
tão rude quando cantamos sós,
parece mais bela.

Num coro de cantar
sai cá para fora
tudo o que há em nós de sol-treva no luar.

(O resto - os sonhos mesquinhos -
fica para a solidão
dos caminhos.)


José Gomes Ferreira

Sunday 6 October 2013

CARTAS NA MESA


Vou pondo cartas
dos meus amigos
sobre esta mesa
de conivência

E, a sós, descubro
que viver só
não é poesia
nem é ciência...

Raul de Carvalho

Thursday 3 October 2013

Todo o dia e toda a noite grunhe

Todo o dia e toda a noite grunhe
em forma de símbolo debaixo do meu quarto

Eh! vizinho porco,
todo o dia de borco
a foçar na terra onde nasceu!
Ensine ao aldeão
a sua lição
de pensar menos no céu
e mais no chão.

(Na terra, camponês,
também há estrelas
que tu não vês...
Mas hás-de vê-las.»

José Gomes Ferreira

Tuesday 1 October 2013

É PRECISO AVISAR TODA A GENTE




É preciso avisar toda a gente
dar notícia informar prevenir
que por cada flor estrangulada
há milhões de sementes a florir.

É preciso avisar toda a gente
segredar a palavra e a senha
engrossando a verdade corrente
duma força que nada detenha.

É preciso avisar toda a gente
que há fogo no meio da floresta
e que os mortos apontam em frente
o caminho da esperança que resta.

É preciso avisar toda a gente
transmitindo este morse de dores
é preciso imperioso e urgente
mais flores mais flores mais flores.

João Apolinário

Monday 30 September 2013

A HISTÓRIA DA MORAL



Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.

Que uma coisa pensa o cavalo,
outra quem está a montá-lo.

Alexandre O'Neill

Friday 27 September 2013

EFICÁCIA


Um comunista nunca fala de ódio.
Palavras que não leva para casa:
vingança, violência, lucro, promoção,
destruição, solidão, desprezo, ira.

Por simples eficácia:
nada de peso inútil sobre os ombros.


Mário Castrim

Tuesday 24 September 2013

NOCTURNO


Eram, na rua, passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral, o espinho de uma rosa brava...

Era, no copo, além do gim, o gelo;
além do gelo, a roda de limão...
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.

Era, no gira-discos, o Martírio
de São Sebastião, de Debussy...
Era, na jarra, de repente, um lírio!
Era a certeza de ficar sem ti.

Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, na sombra, um choro de criança...


David Mourão-Ferreira

Saturday 21 September 2013

NATUREZA MORTA


As bombas destruíram todas as casas menos uma,
as casas onde viviam os homens que não tinham cor nenhuma.

Por entre os escombros
alguns milhões de cadáveres contavam anedotas e encolhiam os ombros.

Quando já não havia mais homens para matar,
nem pedras por calcinar,
nem searas por destruir,
foi só então que as bombas cessaram de cair.

Sobre a mesa vermelha
uma verde maçã e uma garrafa amarela e torta.
Natureza morta.

Felizmente as bombas destruíram todas as casas menos uma,
as casas em que viviam os homens que não tinham cor nenhuma.

Aí, com perícia esmerada,
os sábios reconstituíram um corpo, tão perfeito como se fosse vivo.
A casa, essa, foi reservada
para museu e arquivo.

António Gedeão

Wednesday 18 September 2013

TU, PIEDADE


(Os jornais e os filmes divulgam, com terror sinistro, a existência dos campos de concentração hitlerianos. Montes de esqueletos.)

Tu, piedade,
que vens lá do fundo
da raiz do instinto
e és capaz de incendiar o mundo
para aquecer um faminto.

Tu que me embalas
com a voz rouca
da cólera do amor
que deixa na boca
o frio das balas
e todo o amargor
da outra sede
que só se sufoca
com pus e suor
- e os dedos sangrentos
na cal da parede
dos fuzilamentos.

Tu que me afagas
como quem estrangula
com mãos de bandido...
E beijas as chagas
com lábios de gula
e chumbo derretido.

Tu que só amas
a dor com esgares
nos gritos das chamas,
nas cordas dos potros,
na cruz do Rabi
~para assim chorares,
através dos outros,
o que dói em ti.

Tu que me levas
de rastos na estrada
ao fundo da rampa
onde só há trevas
- raiz misturada
de estrelas e trampa.

Tu que descobres
toda a secura
de cinza nos frutos
que há na ternura
de chorar os pobres
de olhos enxutos.

Tu, piedade,
mãe de todas as mães
e de todos os vícios,
que lambes como os cães
oe vergões dos cilícios.

Dá-me lágrimas reais
na cara a correr
como se a pele sangrasse...
Dessas que deixam sinais
e fazem doer
por dentro da face.

Dá-me lágrimas geladas
como dedos nos gatilhos
em noite de lobos...
Que eu quero baptizar com elas
todos os filhos
da fúria das cadelas,
dos réprobos e das ladras,
de estrupos e de roubos.

Dá-me o ódio frio
que vem lá do fundo
do bafio das prisões
- ódio que há-de salvar o mundo
num dia de lágrimas nos olhos,
quentes como corações.

José Gomes Ferreira

Sunday 15 September 2013

CANÇÃO


Na fome verde das searas roxas
passeava sorrindo Catarina.
Na fome verde das searas roxas
ai a papoila cresce na campina!

Na fome roxa das searas negras
que levas, Catarina, em tua fronte?
Na fome roxa das searas negras
ai devoravam corvos o horizonte!

Na fome negra das searas rubras
ai da papoila, ai de Catarina!
Na fome negra das searas rubras
trinta balas soaram na campina.


Trinta balas
te mataram a fome, Catarina.

Papiniano Carlos

Thursday 12 September 2013

O SONHO


Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

- Partimos. Vamos. Somos.


Sebastião da Gama

Monday 9 September 2013

É OBRIGATÓRIO


É obrigatório ter mitos
e eu desobedeço de bom grado,
de bom grado bruno as minhas blusas
quando me sobra o tempo
porque prefiro conversar com os amigos.

É obrigatório mostrar-se bem vestido,
com boas obras - já interessa menos -,
é obrigatório não assomar à janela
porque é preciso estar vivo se fizerem a guerra.

É obrigatório não divulgar que há tumultos
porque podem mandar-te embora do trabalho
e por cantar verdades dar-te-ão uma cela
e preparam-te o pranto porque é obrigatório:
sofrer sendo racional,
guardar rancor,
adular o pedante,
entrar de meias na igreja,
ter bastantes filhos
voltar amanhã,
possuir inimigos...

Tudo isto é absolutamente obrigatório
e, além do mais, é proibido cuspir no chão.

Glória Fuertes

Friday 6 September 2013

DOIS CAMINHOS


Há um silêncio imposto e outro de repouso.
Um é nocturno e estreito e o outro um dia aberto.
Num, apenas a medo o sonho é um débil gozo.
No outro, o sonho cabe após dele desperto.
Num, o que é certo e necessário é enganoso.
No outro, mesmo o engano é necessário e certo.

Armindo Rodrigues

Tuesday 3 September 2013

Manhã de Junho

 
Talvez, talvez sejam os últimos
dias. Se for assim, são um esplendor.
Apesar dos aviões da Nato despejarem
bombas e bombas no Kosovo, a perfeição
mora neste muro branco
onde o escarlate
da flor da buganvília sobe ao encontro
da luz fresca da manhã de Junho.
A beleza (não há outra palavra
para dizê-lo), desta manhã
é terrível: persiste, domina –
apesar dos aviões, mesmo com
bombas a cair e crianças a morrer.
 
Eugénio de Andrade

Sunday 1 September 2013

NÃO POSSO ADIAR O AMOR


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora intensa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa

Friday 30 August 2013

UMA GOTA NO CAUDAL


Sozinhos, que somos nós?
Gota de água diminuta
sumida da terra enxuta.
Nem a sede de uma boca
pode assim ser saciada,
porque sós não somos nada,
nem fonte de nenhum rio,
nem onda do mar ou espuma,
maré de coisa nenhuma.

Gota a gota a terra bebe,
rompe o ventre e verte um fio,
cresce a fonte e faz-se rio.
Quantas rotas tem o mar?
Quantas vagas a maré?
Quem as conta perde o pé.
Gota a gota. Cada é pouca.
Mas se a vida é una e vária
cada gota é necessária.

Mesmo sós sejamos sempre
uma gota no caudal,
diminuta, fraternal.

Carlos Aboim Inglês

Tuesday 27 August 2013

O CAMPONÊS TRATA DAS LEIRAS


1
O camponês trata das leiras
mantém em forma as vacas, paga impostos
faz filhos pra poupar criados e
está dependente do preço do leite.
Os da cidade falam do amor do camponês ao torrão
da sadia vida campesina e
que o camponês é o fundamento da Nação.

2
Os da cidade falam do amor do camponês ao torrão
da sadia vida campesina e
que o camponês é o fundamento da Nação.
O camponês trata das leiras
mantém as vacas em forma, paga impostos
faz filhos pra poupar criados e
está dependente do preço do leite.


Brecht

Saturday 24 August 2013

INVOCO


Claridade, não te afastes
dos meus olhos, não humilhes
a razão que me alenta
a prosseguir. Escuta
por trás das minhas palavras
o grito dos homens
que não podem falar.

Pelos seus esforços,
pela luta que sustentam
contra o muro de sombra,
eu te peço: persiste
no teu fulgor, ilumina
a minha vida, permanece
comigo, claridade.

José Agustin Goytisolo

Wednesday 21 August 2013

CRIAÇÃO



Criar não é sonhar, mas, ao invés,
atento construir o que se sonha.
Fugir alguém ao sonho é que é vergonha,
pois sonhar é fugir à pequenez.

Armindo Rodrigues

Sunday 18 August 2013

O MENINO NEGRO NÃO ENTROU NA RODA


O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas - as crianças brancas
que brincavam todas numa roda viva
de canções festivas, gargalhadas francas...

O menino negro não entrou na roda.

E chegou o vento junto das crianças
- e bailou com elas e cantou com elas
as canções e danças das suaves brisas,
as canções e danças das brutais procelas.

E o menino negro não entrou na roda.

Pássaros, em bando, voaram chilreando
sobre as cabecinhas lindas dos meninos
e pousaram todos em redor. Por fim,
bailaram seus voos, cantando seus hinos...

E o menino negro não entrou na roda.

«Venha cá, pretinho, venha cá brincar»
- disse um dos meninos com seu ar feliz.
A mamã, zelosa, logo fez reparo;
e o menino branco já não quis, não quis...

E o menino negro não entrou na roda.

O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas. Desolado, absorto,
ficou só, parado com olhar de cego,
ficou só, calado com voz de morto.


Geraldo Bessa Victor

Thursday 15 August 2013

Anos de seca, menos nos olhos dos pobres


Vem, sol,
doirar cinicamente
os cabelos de hoje
destas crianças esfarrapadas
que se atrevem a ser loiras
com olhos de trono azul.

Vem, sol,
tu que secas os rios
e os segredos dos poços
- e não deixas na terra
um charco para as estrelas
tremerem de luz despida...

Vem, sol,
secar estas lágrimas
dos olhos dos pobres.

Torna-os duros, implacáveis e frios
como canos de pistolas
nas manhãs coléricas de lobos.

José Gomes Ferreira

Monday 12 August 2013

A PORTUGAL


Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, de vileza,
de mesquinhez, de fátua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol caiada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:

eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço: mas seres minha, não.

Jorge de Sena

Friday 9 August 2013

NÃO VALE A PENA PISAR



O capim não foi plantado
nem tratado,
e cresceu. É força
tudo força
que vem da força da terra.
Mas o capim está a arder
e a força que vem da terra
com a pujança da queimada
parece desaparecer.

Mas não! Basta a primeira chuvada
para o capim reviver.

Manuel Rui

Tuesday 6 August 2013

TRÊS QUADRAS


Os que vivem na grandeza
dizem, vendo alguém subir:
- Há que manter a pobreza,
p'rá grandeza não cair.

A ninguém faltava o pão,
se este dever se cumprisse:
ganharmos em relação
com o que se produzisse.

Quem trabalha e mata a fome,
não come o pão de ninguém,
mas quem não trabalha e come,
come sempre o pão de alguém.

António Aleixo

Saturday 3 August 2013

ESTE CAOS ORGANIZADO...


Este caos organizado que é o capitalismo,
esta triunfante infâmia,
este nojo dos nojos,
com a sua opulência agressiva
e os seus lacaios sem imaginação,
quando virá o grande vendaval que o varra
para dar a todos conforme as suas necessidades,
e não a miséria repartida
pelas mãos parasitas e ávidas dos ricos?
Quando virá essa ofuscante claridade,
essa lúcida paz amassada de suor,
e de contentamentos para além
do agudo contentamento da alvorada?

Armindo Rodrigues

Thursday 1 August 2013

MAR DE PENICHE


1
Todos os dias
acordam
violadas
estas praias
que dizemos
virgens.

2
A chuva
esse suor
do mar
já não desfaz
a solidão dos homens
ou o piar dos corvos.

3
Mar de Peniche
onde os peixes se atiram
contra os barcos
e as grutas dos rochedos
nada acoitam.

4
As traineiras
juntaram-se a dormir.
Mas o mar não esquece
e grita
contra a fortaleza.

5
O mar
sorveu
todo este dia
exausto.
E o que fica
da praia
são estas pedras
lassas
transidas
pelo sono.

6
O que fica
das pedras
é este mar
de sono
que os homens
já submersos
sorvem
a curtos haustos.

7
O que fica
da noite
são os presos
exaustos
que as pedras
dissimulam
e o mar
absorveu.


Armando Silva Carvalho

Tuesday 30 July 2013

SALMO 57


Senhores defensores da Ordem e da Lei:
porventura o vosso Direito não é de classe?
o Civil para proteger a propriedade privada
o Penal para aplicá-lo às classes dominadas

A liberdade de que falam é a do capital
o seu «mundo livre» é a livre exploração
Sua lei é a das armas, sua ordem a dos gorilas
vossa é a polícia
são vossos os juízes
Na prisão não há latifundiários nem banqueiros

Extraviam-se os burgueses já no seio materno
têm preconceitos de classe desde que nasceram
como a cascavel nasce com venenosas glândulas
como nasce o tubarão devorador de gente

Oh Deus acaba com o statu quo
arranca os colmilhos aos oligarcas
Que se precipitem como a água dos autoclismos
e sequem como as ervas sob o herbicida

Eles são os «gusanos» quando chega a Revolução
não são células do corpo mas somente micróbios
Abortos do homem novo que é preciso atirar
Antes que lancem espinhos que o tractor os arranque
O povo irá divertir-se nos clubes privativos
entrará na posse das empresas privadas
o justo há-de alegrar-se com os Tribunais do Povo
Festejaremos em grande praças o aniversário da Revolução

O Deus que existe é o dos proletários


Ernesto Cardenal

Saturday 27 July 2013

O REGINO


O Regino era um homem sem trabalho;
de tanto padecer fez-se mendigo
e levava já de ofício vinte anos.
De cór sabia o bater das portas,
os degraus das catedrais
e as pedras de todos os caminhos;
polia com as costas as esquinas,
aquecia ao sol suas sardinhas.
Tinha calos de pedir esmola,
a mão curtida pelos ventos
e uma ferida no centro da palma
por onde já caíam as moedas.

Fora seu ofício o de mineiro
porém tossia quando ia à mina
e o médico aconselhou «mudança de ares»;
mendiga desde então
pelas aldeias da serra.


Glória Fuertes

Wednesday 24 July 2013

CANÇÃO DO SEMEADOR


Eu estou semeando,
a terra da minha amada ser-me-á fecunda.

Eu estou semeando,
eu estou possuindo o corpo suave da minha amada,
eu tomei o arado, abri as leivas, lancei as sementes,
milhões de homens, milhões de palavras, milhões de searas
tudo será novíssimo.

Eu estou semeando,
milhões de sementes nesta hora lanço à terra da minha amada,
benéficas me serão as chuvas,
as colheitas virão em breve no seu tempo
e todas as dores terão sido necessárias,
tudo estará saldado.

Eu estou semeando,
eu estou semeando milhões como NÓS,
eu estou semeando as novas searas abundantes,
eu estou semeando as novas palavras humanas,
eu estou semeando na terra da minha amada.

Eu estou semeando,
o ventre da minha amada eu o perfumei
de rosmaninho silvestre,
a terra da minha amada é vermelha e fecunda,
eu lanço as sementes e estou vendo o futuro,
vejo as searas e as vinhas e os homens em flor.

Papiniano Carlos
(In A ave sobre a cidade)

Sunday 21 July 2013

CORO DOS ÓRFÃOS



NÓS ÓRFÃOS
queixamo-nos ao mundo:
Cortaram-nos o nosso ramo
e atiraram-no ao fogo -
lenha de queimar fizeram dos nossos protectores -
nós órfãos jazemos nos campos da solidão.
Nós órfãos
queixamo-nos ao mundo:
Na noite os nossos pais jogam connosco às escondidas -
por trás das dobras negras da noite
as suas faces nos olham,
falam as suas bocas:
Lenha seca fomos nós na mão de um lenhador -
mas os nossos olhos fizeram-se olhos de anjos
e olham para vós,
através das dobras negras da noite
eles olham -
Nós órfãos
queixamo-nos ao mundo:
das pedras fizemos os nossos brinquedos,
pedras têm caras, caras de pai e mãe
não murcham como flores, não mordem como bichos -
e não ardem como lenha seca quando as metem no forno -
Nós órfãos
queixamo-nos ao mundo:
Mundo porque nos tiraste as nossas mães tenras
e os pais que dizem: Meu filho és parecido comigo!
Nós órfãos não somos parecidos com ninguém mais no mundo!
Ó Mundo
queixamo-nos de ti!

Nelly Sachs

Thursday 18 July 2013

COMO OS TECELÕES DE TAPETES DE KUJAN-BULAK HONRARAM A MEMÓRIA DE LÉNINE


1

Muitas vezes e à farta foi honrado
o Camarada Lénine. Há bustos dele e estátuas.
Puseram o nome dele a cidades e crianças.
Fazem-se discursos em muitas línguas
há assembleias e demonstrações
desde Xangai a Chicago em honra de Lénine.
Mas foi assim que o honraram os tecelões de tapetes
de Kujan-Bulak, pequena povoação no Sul do Turquestão:
Vinte tecelões de tapetes levantam-se ali ao anoitecer
do miserável tear, sacudidos pela febre.
Anda febre por lá: a estação de caminho-de-ferro
está cheia do zumbir dos mosquitos, nuvem espessa
que se ergue do pântano por detrás do velho cemitério dos camelos.
Mas o comboio
que de quinze em quinze dias traz água e fumo, traz
também um belo dia a notícia
que vem aí o dia da homenagem ao Camarada Lénine.
E as gentes de Kujan-Bulak, gente
pobre, tecelões de tapetes, decidem
que também na sua povoação
se erga o busto de gesso ao Camarada Lénine.
Mas quando se vai juntar o dinheiro para o busto
ei-los todos sacudidos de febre a pagar
os copeques penosamente ganhos com mãos a adejar.
E Stepa Gamalev, do Exército Vermelho, que vai contando
e vendo com cuidado e precisão.
vê a prontidão deles em honrar Lénine, e fica contente,
mas vê também as mãos vacilantes,
e faz de repente a proposta
de comprar, com o dinheiro para o busto, petróleo
para derramar no pântano atrás do cemitério dos camelos
donde vêm os mosquitos
que causam febres.
Para assim combater as febres em Kujan-Bulak, e em verdade
em honra do falecido, mas
não esquecido
Camarada Lénine.

Assim o resolveram. No dia da homenagem levaram
os seus baldes amolgados cheios de petróleo negro
um após outro, para lá,
e regaram o pântano com ele.
Assim tiraram proveito para si mesmos ao honrarem Lénine e
honraram-no, com proveito para si mesmos, e assim
o tinham entendido.

2

Ouvimos pois como as gentes de Kujan-Bulak
honraram Lénine. Mas à noitinha,
comprado e espalhado o petróleo sobre o pântano,
eis se levantou um homem na assembleia e exigiu
que se colocasse uma placa na estação do comboio
com o relato do acontecido, contendo
também exactamente a alteração do plano e a troca
do busto de Lénine pela tonelada de petróleo que acabou com as febres.
E tudo isto em honra de Lénine.
E assim fizeram também isto
e puseram a placa.

Brecht

Monday 15 July 2013

SOLIDARIEDADE



Vamos, dêem as mãos.

Porquê esse ar de eterna desconfiança?
esse medo, essa raiva?
Porquê essa imensa barreira
entre o Eu e o Nós na natural conjugação do verbo ser?

Vamos, dêem as mãos.

Para quê esses bons-dias, boas-noites,
se é um grunhido apenas e não uma saudação?
Para quê esse sorriso
se é um simples contrair de pele e nada mais?

Vamos, dêem as mãos.

Já que a nossa amargura é a mesma amargura,
já que a miséria para nós tem as mesmas sete letras,
já que o sangrar dos nossos corpos é o vergão da mesma chicotada,
fiquemos juntos,
sejamos juntos.
Porquê esse ar de eterna desconfiança?
esse medo, essa raiva?

Vamos, dêem as mãos.


Mário Dionísio

Friday 12 July 2013

ARTE POÉTICA



A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.
A poesia está na vida.
Nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos, de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica
e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vai-vem de milhões de pessoas ou falando ou praguejando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
- e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas dos comboios a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.

A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos rasgados abertos para amanhã.


Mário Dionísio

Tuesday 9 July 2013

Utilidade



Só as mãos que se estendem para a frente interessam.
Só os olhos que vêem para além do que se vê,
só o que vai para o que vem depois,
só o sacrifício por uma realidade que ainda não existe,
só o amor por qualquer coisa que ainda não se vê e ainda, nem nunca, será nossa,
interessa.


Mário Dionísio

Saturday 6 July 2013

O OUTONO DOS TIRANOS


Tirano vem, tirano vai,
no vai-e-vem sempre cai,
não há tirano que não caia.
Vive no cai-que-não-cai
com sua lei, sua laia
temendo o homem que vai,
o homem que vai
e vaia.

Sidónio Muralha

Wednesday 3 July 2013

Poema


(Morreu Picasso, que não se limitou a
mostrar com génio nos seus quadros as coisas e
os homens destruídos pelo sistema capitalista...)

Mais nos ensinou Picasso:
que não se é jovem apenas biologicamente,
em virtude
da força com que se luta, o vigor do passo,
o sangue ardente,
nenhuma ruga na face,
o punho agreste e rude.

Na opinião dele
a juventude
nada tem a ver com a pele.
É um sonho mais profundo.
Constrói-se, faz-se
hora a hora, dia a dia,
segundo a segundo.

Sobretudo quando se é comunista
como ele era,
e se ambiciona um Novo Mundo
em que exista
a imaginação, a alegria
e a dupla primavera
nos homens e na Terra.

José Gomes Ferreira

Monday 1 July 2013

AO MORRER...



Ao morrer, nada mais me importará.
Por antecipação, nem já me importa.
Com consciência, pois, do paradoxo,
é que ouso dizer com bonomia
que até quem se incomode a acompanhar-me
o corpo hirto, inerte, a apodrecer,
ao cemitério sossegado e claro,
o fará com desgosto meu actual.
Nunca gostei de incomodar ninguém.
Mas quem não quero lá, fique isto assente,
são padres, charlatães, capitalistas,
para nem morto suportar ofensas.

Armindo Rodrigues

Sunday 30 June 2013

CANTIGA DE ABRIL


Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste país,
a conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.

Qual cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever,
com que palavras gritar!

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essa paz do cemitério
toda prisão e censura,
e o poder feito galdério,
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essas guerras de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por política demente.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim altiva e nua
com força que não recua,
a verdade mais veraz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Jorge de Sena

Thursday 27 June 2013

Viva Abril!


Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de Abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

Eugénio de Andrade

Monday 24 June 2013

Nesta hora


Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
a metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados

Não basta gritar povo é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão

Para construir o canto do terrestre
- Sob o ausente olhar silente de atenção -

Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste.

20 de Maio de 1974

Sophia de Mello Breyner Andresen

Friday 21 June 2013

COM FÚRIA E RAIVA



Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Junho de 1974


Sophia de Mello Breyner Andresen

Tuesday 18 June 2013

DRAMA


A quem falo no mundo? Por quem foi
esta bandeira branca de poeta?
A quem descubro a chaga que me rói
por não ser seu artista e seu profeta?

A quem arranco com beleza a seta
do calcanhar humano que lhe dói?
A quem vejo chegado à sua meta,
novo senhor da terra e novo herói?

A nenhum homem, que a nenhum conheço.
Água de um rio que não tem começo,
nas duas margens sinto o mesmo não.

Mas na direita a vida é gasta e velha...
Só na outra uma chama se avermelha
capaz de me aquecer o coração.


Miguel Torga

Saturday 15 June 2013

QUADRILHA



João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


Carlos Drummond de Andrade

Wednesday 12 June 2013

O BURGUÊS


A gravata de fibra como corda
amarrada à camisa mal suada
um estômago senil que só engorda
arrotando riqueza acumulada.

Uma espécie de polvo com açorda
de comida cem vezes mastigada
de cadeira de braços baixa e gorda
de cómoda com perna torneada.

Um baú de tolice. Uma chatice
com sorriso passado a purpurina
e olhos de pargo olhando de revés.

Para dizer quem é basta o que disse
é uma besta humana que rumina
é um filho da puta é um burguês.

José Carlos Ary dos Santos

Sunday 9 June 2013

Liberdade


Quem marca uma fronteira
àquela nuvem
a asa que é a sua sombra
onde mora?


Sob as mordaças
calam-se as palavras
mas ninguém te cala
pensamento.

Quem manda à semente
não germines
ao fruto dela
que o não seja?

Amarram-se os pulsos
com algemas
mas ninguém te amarra
pensamento.

Quem impõe ao dia
que não nasça
ao sol que é a sua fonte
que não brilhe?

Fecham-se as janelas
com tapumes
mas ninguém te cega
pensamento.

Quem diz ao amor
é impossível
à lembrança que é seu laço
que o não seja?

Separam-se os amantes
na distância
ninguém te roubará
meu pensamento.

Joaquim Namorado
In “A Poesia Necessária”



Thursday 6 June 2013

As palavras que eu cantei



Quanto caminho cantado que eu andei
Quanta palavra secreta te inventei
Quando eu parti transportava
Uma angústia que não sei
E não era mais que as palavras que eu cantei

A palavra amor pôs-me os olhos rasos de água
A palavra ausência pôs-me as mãos cheias de mágoa
E quando as cantei eu vivi tudo quanto pressenti
Dentro das palavras que eu cantei mas não escrevi

A palavra dor que era minha foi dos outros
Soltei as palavras como asas, como potros
Arranquei de mim e cantei, cantei até ao fim
A canção de amar, de cantar por ser assim...

Foi por ti que eu lutei
Foi por ti que eu parti
Foi por ti que eu calei
E morri!

Foi por ti que eu voltei
Foi por ti que eu nasci
A canção que eu conquistei
Porque a sofri!

Canção é sol, é água, é fúria, é vento
Canção é mar do sal do sofrimento
E por isso eu sou quando canto
A lança que lancei
Como se vingasse as palavras que eu cantei.

José Carlos Ary dos Santos

Monday 3 June 2013

ENVENENA-ME


Aperta-me forte
ao coração
Abraça-me depressa sobre as asas
*
Debruça-te em mim
e porque não?
Envenena-me de ti porque me salvas
*

Maria Teresa Horta
In "Só de Amor" - 1999

Saturday 1 June 2013

QUEM SE DÁ AO QUE SE DEVE


Quem se dá ao que se deve
nada deve ao que se dá.
Não raro a distância é breve
da decisão boa à má.
A simples espinha sugere
à razão um peixe inteiro.
Para a pobreza entender
há que sofrê-la primeiro.
O mal é que algo se acate
apenas por boa fé.
Se mau for, má morte o mate.
Se for bom, prove que o é.

Armindo Rodrigues

Thursday 30 May 2013

O PRIMEIRO ASTRONAUTA



O primeiro astronauta
devia ter sido
Silvestre José Nhampose

Só ele
teria sacudido os pés
à entrada da lua.

Só ele
teria pedido
com suave delicadeza:
- Dá licença?


Mia Couto

Monday 27 May 2013

EM GERAL, NÃO SOU NEUTRO


Em geral não sou neutro.
Raro é conseguir sê-lo.
Falta-me para isso
a delicadeza pérfida
dos falsos independentes,
o comodismo cobarde
dos falsos sobranceiros,
a hipocrisia velhaca
dos falsos melindrosos.

Armindo Rodrigues

Friday 24 May 2013

VILANCETE CASTELHANO DE GIL VICENTE



Por mais que nos doa a vida
nunca se perca a esperança;
a falta de confiança
só da morte é conhecida.
Se a lágrimas for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remédio na vida.
E pois que outro preço tem
depois do mal a bonança,
nunca se perca a esperança
enquanto a morte não vem.

Carlos de Oliveira

Tuesday 21 May 2013

TODA ESPERANÇA É PERDIDA


Toda esperança é perdida,
tudo veo a falecer,
e o que fica da vida
ficou para m'eu perder.

Aquela esperança minha,
assi falsa e vã como era,
c'os olhos que eu nela tinha,
a todo o mal se atrevera.
Ora ela é toda perdida;
Mas não m'hão de fazer crer
que não há mais nesta vida
senão nascer e morrer.

Sá de Miranda

Saturday 18 May 2013

Arte poética



Liberdade
é também vontade.

Benditas roseiras
que em vez de rosas
dão nuvens e bandeiras.


José Gomes Ferreira

Wednesday 15 May 2013

CANTIGA PARTINDO-SE


Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d'esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

João Roiz de Castel-Branco
(Século XV)

Sunday 12 May 2013

SONETO


Sete anos de pastor, Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la:
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se não a tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: - Mais servira, se não fora
Pera tão longo amor tão curta a vida!

Camões

Thursday 9 May 2013

MÁSCARA MORTUÁRIA DE GRACILIANO RAMOS


Feito só, sua máscara paterna,
sua máscara tosca de acridoce
feição, sua máscara austerizou-se
numa preclara decisão eterna.

Feito só, feito pó, desencantou-se
nele o íntimo arcanjo, a chama interna
da paixão em que sempre se queimou
seu duro corpo que ora longe inverna.

Feito pó, feito pólen, feito fibra,
feito pedra, feito o que é morto e vibra,
sua máscara enxuta de homem forte

Isto revela em seu silêncio à escuta:
Numa severa afirmação da luta,
uma impassível negação das morte.

Vinícius de Moraes

Monday 6 May 2013

PARÁFRASE DE RONSARD


Foi para vós que ontem colhi, senhora,
este ramo de flores que ora envio.
Não no houvesse colhido e o vento e o frio
tê-las-iam crestado antes da aurora.

Meditai nesse exemplo, que se agora
não sei mais do que o vosso outro macio
rosto, nem boca de melhor feitio,
a tudo a idade afeia sem demora.

Senhora, o tempo foge... o tempo foge...
Com pouco morreremos - e amanhã
já não seremos o que somos hoje...

Por que é que o vosso coração hesita?
O tempo foge... A vida é breve e é vã...
Por isso amai-me... enquanto sois bonita.

Manuel Bandeira

Friday 3 May 2013

CANTO E LAMENTAÇÃO NA CIDADE OCUPADA


6.

Pelo silêncio na planície pela tranquilidade em tua voz
pelos teus olhos verdes estelares pelo teu corpo líquido de bruma
pelo direito de seguir de mãos dadas na solidão nocturna
lutaremos meu Amor

Pela infância que fomos pelo jardim escondido que não teve
o nosso amor
pelo pão que nos recusam pela liberdade sem fronteiras
pelas manhãs de sol sem mácula de grades
lutaremos meu Amor

Pela dádiva mútua da nossa carne mártir
pela alegria em teu sorriso claro pelo teu sonho imaterial
pela cidade escravizada pela doçura de um beijo à despedida
lutaremos meu Amor

Pelos meninos tristes suburbanos
contra o peso da angústia contra o medo
contra a seta de fogo traiçoeira cravada
em nosso coração aberto
lutaremos meu Amor

Na aparência sózinhos multidão na verdade
lutaremos meu Amor

Daniel Filipe
(in A Invenção do Amor e outros poemas)

Wednesday 1 May 2013

MAL-ME-QUER, BEM-ME-QUER


Falemos, pois, de amor: serenamente.
A esfinge que nós somos, adormece cansada
e a criança de um dia olha-nos, frente a frente.

(Muito, pouco, nada).

Daniel Filipe
(in Pátria, lugar de exílio)

Tuesday 30 April 2013

OS MEDOS


É a medo que escrevo. A medo penso,
a medo sofro e empreendo e calo.
A medo peso os termos quando falo.
A medo me renego, me convenço.

A medo amo. A medo me pertenço.
A medo repouso no intervalo
de outros medos. A medo é que resvalo
o corpo escrutador, inquieto, tenso.

A medo durmo. A medo acordo. A medo
invento. A medo passo, a medo fico.
A medo meço o pobre, meço o rico.

A medo guardo confissão, segredo,
dúvida, fé. A medo. A medo tudo.
Que já me querem cego, surdo, mudo.

José Cutileiro
(In Versos da Mão Esquerda)

Saturday 27 April 2013

MASSA


No final da batalha,
e morto o combatente,
aproximou-se dele um homem
e disse-lhe: «Não morras, amo-te tanto!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Aproximaram-se dele dois homens e repetiram-lhe:
«Não nos deixes! Coragem! Volta à vida!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Acudiram-lhe vinte, cem, mil, quinhentos mil,
clamando: «Tanto amor, e não poder nada contra a morte!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Milhões de homens o rodearam,
num pedido comum: «Não nos deixes, irmão!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Então, todos os homens que há na terra
o rodearam; viu-os o cadáver triste, emocionado;
soergueu-se lentamente,
abraçou o primeiro homem.
E começou a andar...

César Vallejo

Wednesday 24 April 2013

Um momento de filosofia barata



Para além do «ser ou não ser» dos problemas ocos,
o que importa é isto:
- Penso nos outros.
Logo existo.


José Gomes Ferreira

Sunday 21 April 2013

DA «CARTILHA DE GUERRA ALEMû



A guerra que aí vem
não é a primeira. Antes dela
houve outras guerras.
Quando a última acabou
houve vencedores e vencidos.
Entre os vencidos, o povo baixo
passou fome. Entre os vencedores
passou fome também o povo baixo.

Na parede estava escrito a giz:
«Queremos a guerra».
O que escreveu isto já caíu morto.

As raparigas
à sombra das árvores da aldeia
escolhem os namorados.
A morte
escolhe também.

É noite.
Os casais vão deitar-se nas camas.
As mulheres novas
vão parir filhos órfãos.

Brecht

Thursday 18 April 2013

GRITO NEGRO



Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.

Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder, sim
e queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão
até não ser mais a tua mina, patrão.

Eu sou carvão
Tenho que arder
queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu serei o teu carvão, patrão!

José Craveirinha

Monday 15 April 2013

AMOR A DOER


Beijos.
Carícias.
Este infinito sentimento
no recíproco amor homem e mulher
para jamais nos esquecermos de vez
do amor dos amores mais amados
o amor chamado pátria!

Mordaças
Palmatoadas
Calabouços
Anilhas de ferro nos tornozelos.

E no infinito amor a doer
também o infantil beijo dos filhos
a magoada ternura incansável da esposa
um cobertor grande e um pequeno para os quatro
e numa tábua despregada no chão
escondido o jornal a falar do Fidel.

E nem que nos caia em cima o argumento
de cigarro na boca e lúgubre revólver em cima da mesa
não mostraremos o papel guardado na tábua do soalho
ali a fazer do amor escondido
o futuro de um povo.

(1958)

José Craveirinha
(In Cela 1)

Friday 12 April 2013

NÃO SEI SE É UMA MEDALHA


Alguma vez
um cigarro aceso sentirá o delicioso
sabor de te fumar de repente
o ombro direito?

Pois
sobre isso eu juro
que tudo é pura mentira.

Juro
que nunca um cigarro LM
apagou sua idiossincrásica boca de lume
no calor escuro da minha omoplata.

E também juro
que nunca plagiei um cinzeiro moçambicano
sentado a cheirar o bafo da própria cinza
com o subchefe de brigada Acácio
um deus fantasmagórico envolto
na especial nuvem de tabaco
mistura de Virgínia com pele.

E também confesso
que se esta invenção tivesse acontecido
muito provavelmente seria em mil novecentos
e sessenta e seis à tarde numa certa Vila Algarve
enquanto pela duodécima vez
eu abanava a cabeça
e dizia: - Não sei!

Por acaso
a mancha desta mentira está.
Não sei se é uma medalha.
Mas não sai mais.

(1967)

José Craveirinha
(In Cela 1)

Tuesday 9 April 2013

OS DOIS MENINOS MAUS ESTUDANTES


- Zeca-e-Stélio!
- Mamã!
- São horas da escola.
- !!!

- Vocês não ouvem? São horas.
- Não queremos ir à escola, mamã.
- O quê? Não vão à escola? Vão, sim-senhor!
- Não vamos à escola, mamã.
- Mas não vão à escola porquê? Não estudaram, não é?
- É a sôra professora, mamã.
- É a sôra professora o quê?
- !!!

- Olhem, amanhã é dia de visita e vou queixar ao vosso pai.
- Não vai queixar, mamã.
- Queixo, sim, vocês vão ver.
- A sôra professora chama... a sôra professora cha...
- A sôra professora não chama nada, vou queixar.
- A sôra professora chama-nos filhos de uma turra, mamã.
- !!!

- Está bem, mamã, não chore.
Não chore, mamã. Nós vamos à escola, mamã.

(Agosto de 1967)

José Craveirinha
(In Cela 1)

Saturday 6 April 2013

DA PRISÃO DE ISTAMBUL


Em Istambul, no pátio da prisão,
depois da chuva, num dia soalheiro de Inverno,
ao mesmo tempo que
as nuvens,
as telhas vermelhas,
os muros
e o meu rosto
tremelicam nas poças do chão,
assumindo
toda a coragem
toda a cobardia
toda a força
toda a fraqueza
que há em mim,
pensei no universo,
no meu país,
pensei em ti.


Nazim Hikmet
(Prisão de Istambul, Fevereiro de 1939)

Wednesday 3 April 2013

Viver sempre também cansa!


O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
 
O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
 
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
 
Tudo é igual, mecânico e exacto.
 
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
 
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
 
E obrigam-me a viver até à Morte!
 
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?
 
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
 
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."
 
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...
 
José Gomes Ferreira

Monday 1 April 2013

NO QUINTO DIA DE UMA GREVE DA FOME


Meus irmãos,
se eu não conseguir dizer correctamente o que tenho para vos dizer,
desculpar-me-eis, irmãos.
Estou levemente embriagado, a cabeça um pouco a andar à roda,
não de aguardente,
de fome, um nadinha.

Meus irmãos
da Europa, da Ásia, da América,
não estou na prisão, em greve da fome,
é como se estivesse deitado na relva, à noite, neste mês de Maio,
os vossos olhos brilham como estrelas à minha beira.
E as vossas mãos, uma só dentro da minha
como a da minha mãe,
como a mão da minha amada,
como a de Memet,
como a de Mémet.

Meus irmãos,
convosco eu nunca nunca estive sozinho:
não apenas eu,
mas também o meu país e o meu povo.
Porque vós amais os meus tanto quanto eu os vossos,
obrigado, irmãos, meus irmãos,
obrigado.

Meus irmãos,
não faço tenção de morrer.
Meus irmãos, continuarei a viver junto de vós, sei que sim:
estarei no verso de Aragon,
no teu verso que fala dos belos dias que hão-de vir.
Estarei na pomba branca de Picasso.
Estarei nas canções de Robeson.
E sobretudo
e melhor do que tudo,
entre os estivadores de Marselha,
estarei no riso vitorioso dos meus camaradas.

Numa palavra, meus irmãos,
sou feliz, feliz a mais não poder.

Nazim Hikmet

Saturday 30 March 2013

AOS MORTOS VIVOS DO TARRAFAL


Ao cabo de Cabo Verde
dobrado o cabo da guerra
quando o mar sabia a sede
e o sangue sabia a terra
acabou por ser mais forte
a esperança perseguida
porque aconteceu a morte
sem que se acabasse a vida.

Ao cabo de Cabo Verde
no campo do Tarrafal
é que o futuro se ergue
verde-rubro Portugal
é que o passado se perde
na tumba colonial,
ao cabo de Cabo Verde
não morreu o ideal.

Entre o chicote e a malária
entre a fome e as bilioses
os mártires da classe operária
recuperam suas vozes.
E vêm dizer aqui
do cabo de Cabo Verde
que não morreram ali
porque a esperança não se perde.

Bento Gonçalves torneiro
ainda trabalhas o ferro
deste povo verdadeiro
sem a ferrugem do erro.

Caldeira de nome Alfredo
fervilham no teu caixão
contra o ódio e contra o medo
gérmens de trigo e de pão.

E tu também Araújo
e tu também Castelhano
e também cada marujo
que morreu a todo o pano.

Todos vivos! Todos nossos!
vinte trinta cem ou mil
nenhum de vós é só ossos
sois todos cravos de Abril!

No campo do Tarrafal
no sítio da frigideira
hasteava Portugal
a sua maior bandeira.

Bandeira feita em segredo
com as agulhas das dores
pois o tempo do degredo
mudava o sentido ás cores:
o verde de Cabo Verde
o chão da reforma agrária
e o Sol vermelho esta sede
duma água proletária.

Do cabo de Cabo Verde
chegam tão vivos os mortos
que um monumento se ergue
para cama dos seus corpos.
Pois se o sono é como o vento
que motiva um golpe de asa
é a vida o monumento
dos que voltaram a casa.


José Carlos Ary dos Santos
(poema feito quando da trasladação para Portugal dos
restos mortais dos 32 resistentes assassinados no Tarrafal) 

Wednesday 27 March 2013

EM QUALQUER LUGAR...


Em qualquer lugarem que alguém estiver,
há querer e buscar,
partir e chegar,
saber e ignorar,
achar e perder.

Armindo Rodrigues

Sunday 24 March 2013

ELOGIO DO TRABALHO CLANDESTINO



É bonito
usar da palavra na luta de classes
clamar alto e bom som pela luta de massas
pisar os opressores libertar os oprimidos.
Árdua e útil é a pequena tarefa de cada dia
que secreta e tenaz tece
a rede do partido sob
os fuzis apontados dos capitalistas:
Falar mas
escondendo o orador.
Vencer mas
escondendo o vencedor.
morrer mas
dissimulando a morte.
Pela glória, quem não faria grandes coisas? Mas quem
as faz pelo olvido?
No entanto, o pobre que mal come
senta a honra à sua mesa;
Das pequenas cabanas em ruínas
surge a grandeza irresistível.
E a glória busca en vão
os autores do grande feito.
Saí da sombra
por um momento
rostos anónimos, dissimulados, e aceitai
o nosso agradecimento.

Bertolt Brecht

Thursday 21 March 2013

TALVEZ A MINHA ÚLTIMA CARTA A MÉMET



Por um lado
os carrascos entre nós
como uma parede a separar-nos.
E por outro lado
este coração mal comportado
que me armou uma partida reles.
Meu pequenino, meu Mémet
o destino vai talvez impedir-me
de voltar a ver-te.
Sei-o
serás um rapaz parecido
com uma espiga de trigo
Eu próprio era assim ao tempo da minha juventude
louro, esbelto e de boa estatura;
Os teus olhos serão vastos como os da tua mãe
por vezes com traços de amargura
de tristeza,
a fronte será clara até ao infinito.
Terás também uma bela voz
a minha era horrível.
As canções que cantares
partirão corações
e serás um conversador brilhante.
Eu também era mestre em tal matéria
quando não me punham com os nervos em franja.
O mel fluirá da tua boca
Ah Mémet
que devastador de corações
tu vais ser!
É difícil criar um filho sem a presença do pai
Não magoes a tua mãe
se eu não pude dar-lhe alegrias
dá-lhas tu.
A tua mãe
forte e branda como a seda.
A tua mãe
ainda será bela quando tiver idade para ser avó.
Como no primeiro dia em que a vi
na margem do Bósforo
tinha ela dezassete anos.
Ela era o luar
e a luz do dia
Fazia lembrar uma rainha-cláudia.
A tua mãe,
uma manhã como de costume
separou-se de mim: Até logo!
Nunca mais nos vimos.
A tua mãe
na sua bondade a melhor das mães
que viva cem anos
e que Deus a proteja.
Eu, meu filho, não tenho medo de morrer.
Mas não obstante
por vezes quando estou a trabalhar
de repente
estremeço
ou então na solidão que precede o sono.
É difícil contar os dias
Não podemos saciar-nos do mundo
Mémet
não podemos saciar-nos.
Não vivas na terra
à maneira de um locatário
ou em vilegiatura
na natureza
Vive neste mundo
como se ele fosse a casa do teu pai
acredita nas sementes
na terra, no mar,
mas em primeiro lugar no homem.
Ama a nuvem, a máquina e o livro,
mas em primeiro lugar ama o homem.
Sente a tristeza
da árvore que seca
do planeta que se extingue
do animal enfermo,
mas em primeiro lugar a tristeza do homem.
Que todos os bens terrestres
te dêem alegria em profusão,
Que a sombra e a claridade
te dêem alegria em profusão
Que as quatro estações
te dêem alegria em profusão,
mas em primeiro lugar que o homem
te dê alegria em profusão.

A nossa pátria, a Turquia
é um belo país
entre os demais países
e os seus homens
aqueles que não se turvaram
são trabalhadores
meditativos e corajosos
mas horrivelmente miseráveis.
Já sofremos e havemos de sofrer mais
mas no fim a conclusão será esplêndida.

Tu, neste país, com o teu povo,
construirás o comunismo
vê-lo-ás com os olhos
tocá-lo-ás com as mãos.

Mémet, morrerei talvez
longe da minha língua
longe das minhas canções
longe do meu sal e do meu pão,
com a nostalgia da tua mãe e de ti
do meu povo e dos meus camaradas.
Mas não no exílio
não no estrangeiro
Morrerei no país dos meus sonhos
na cidade branca dos meus melhores dias,
Mémet, meu pequeno,
confio-te ao Partido comunista turco
Vou-me embora mas estou calmo
a vida que em mim se apaga
continuará em ti por muito tempo
E no meu povo, eternamente.


Nazim Hikmet

Monday 18 March 2013

O PODER E A VIOLÊNCIA


Não vamos discutir se,
quando o tínhamos, tirámos
algum proveito do poder
- agora que já o não temos.

Não vamos discorrer sobre
a necessidade ou não da violência - agora
que a violência nos deitou por terra.


Bertolt Brecht

Friday 15 March 2013

CARTA A FIDEL



CAMARADA FIDEL

Li a tua carta na qual anuncias a decisão de não te candidatares ao cargo de Presidente do Conselho de Estado de Cuba. Decisão irrevogável, dizes, e explicas porquê.
E eu, que me habituei desde há muito a ouvir-te a palavra exacta no momento exacto, penso que também desta vez assim é.
Mas tenho pena que assim seja. E estou certo de que não sofro sozinho essa pena.
Sabes, melhor do que eu, que a tua doença preocupou – e preocupa – milhões de homens, mulheres e jovens em todo o mundo; milhões de pessoas que te têm como referência marcante das suas vidas; que guardam nas suas memórias, de forma imperecível, o teu contributo para a luta de libertação e emancipação dos povos, o teu exemplo de revolucionário digno, íntegro, vertical, de corpo inteiro.
Sabes, melhor do que eu, que construíste História – que, sem ti, sem a tua intervenção, sem o teu pensamento, sem o teu exemplo de lucidez, de coragem e de dignidade, a História teria sido diferente - e não apenas no que diz respeito a Cuba.
Sabes, melhor do que eu, que, na situação actual, a luta dos comunistas em qualquer parte do mundo é indissociável da experiência da Revolução cubana na perspectiva que, com a palavra exacta, no momento exacto definiste: «Revolução é sentido do momento histórico; é mudar tudo o que deve ser mudado; é igualdade e liberdade plenas; é ser tratado e tratar os demais como seres humanos: é emanciparmo-nos com os nossos próprios esforços; é desafiar as poderosas forças dominantes dentro e fora do âmbito social e nacional; é defender valores nos quais se crê seja qual for o sacrifício necessário; é modéstia, desinteresse, altruísmo, solidariedade e heroísmo; é lutar com audácia, inteligência e realismo; é não mentir jamais, nem violar princípios éticos; é convicção profunda de que não existe força no mundo capaz de esmagar a força da verdade e das ideias. Revolução é unidade, é independência, é lutar pelos nossos sonhos de justiça para Cuba e para o mundo, que é a base do nosso patriotismo, do nosso socialismo e do nosso internacionalismo.»
Sabes, melhor do que eu, que o papel singular que desempenhaste em todo o processo revolucionário cubano, desde Moncada até aos dias de hoje, constitui uma referência, um estímulo, uma fonte de inspiração para os revolucionários de todo o mundo.
Sabes, melhor do que eu, que nesses tempos longínquos de Moncada – em que caracterizaste com rigor cirúrgico o carácter da ditadura de Baptista e definiste a insurreição armada como a forma de luta decisiva para a derrubar – iniciaste uma caminhada revolucionária que ficará na história da humanidade como um dos seus momentos gloriosos.
Sabes, melhor do que eu, que da longínqua madrugada de 26 de Julho de 1953, os revolucionários de todo o mundo recordam com emoção o que disseste – a palavra exacta no momento exacto - aos 135 revolucionários que, contigo, iam dar o primeiro passo para o derrubamento da ditadura: «Camaradas: dentro de algumas horas, venceremos ou seremos vencidos. De qualquer forma, camaradas, o movimento triunfará. Se vencermos, alcançaremos mais depressa as aspirações de Marti; se formos vencidos, o nosso gesto servirá de exemplo para o povo de Cuba e ele empunhará a bandeira e seguirá em frente. O povo apoiar-nos-á no Oriente e em toda a Ilha. Camaradas, aqui, no Oriente, damos o primeiro grito de Pátria ou Morte, Venceremos!.»
Sabes, melhor do que eu, que desse tempo, guardamos nas nossas memórias esse texto notável – certamente a mais bela proclamação de rebeldia alguma vez produzida - que foi a tua defesa perante o tribunal fascista, onde, com a palavra exacta demonstraste, no momento exacto, o carácter ilegal, imoral, reaccionário, da ditadura; e fundamentaste a razão moral e jurídica da violência revolucionária face à situação; e explicaste a opção pelo caminho das armas; e concluíste que chegara o momento de substituir a arma da crítica pela crítica das armas; e proclamaste que «o direito à rebelião contra o despotismo está na própria raiz da nossa existência política»; e invocaste o direito à liquidação dos tiranos – sempre a palavra exacta no momento exacto, olhando de frente os juízes fascistas, convertendo os acusados em acusadores, desmascarando-os frontalmente como lacaios do Poder estabelecido, dizendo-lhes: «Condenai-me, não tem importância, a História me absolverá».
Sabes, melhor do que eu, todos os passos dados rumo à libertação de Cuba: aquele dia 25 de Novembro de 1956 em que, no Granma superlotado (no barco cabiam umas 25 pessoas e iam lá 82) partiste do México «rumo ao nascer do sol» - procurando levar o maior número de armas e não te preocupando, nem tu nem nenhum dos teus companheiros, com as provisões, cuja enunciação minuciosa leio sempre com lágrimas de comoção: «2000 laranjas, dois presuntos partidos às fatias, 48 latas de leite condensado, uma caixa de ovos, cem tabletes de chocolate e quatro quilos de pão».
Sabes, melhor do que eu, que mais importante do que as provisões era, para ti e para os que te acompanhavam a provisão das vossas fortes convicções revolucionárias, da vossa determinação inabalável, da vossa incomensurável coragem – e de uma muito grande confiança no apoio do povo de Cuba à vossa luta.
Sabes, melhor do que eu, que três anos depois, o povo cubano e os revolucionários de todo o mundo festejavam a vitória da Revolução, a tua entrada em Havana, o início da passagem a uma outra fase da longa caminhada.
Sabes, melhor do que eu, dos ataques de que Cuba foi alvo ao longo dos anos por parte dos sucessivos governos dos EUA: o criminoso bloqueio; os actos terroristas contra bens, equipamentos e pessoas, traduzidos nomeadamente na perda de mais de 3500 vidas humanas; a destruição de colheitas; as tentativas de invasão de Cuba; a intensa e feroz campanha mediática que, recorrendo às mais grosseiras provocações, falsidades e calúnias, é suporte essencial de todas as linhas da ofensiva imperialista contra a revolução cubana; enfim, o vale-tudo que caracteriza a prática do imperialismo norte-americano nas suas ofensivas contra os países e povos que, com dignidade, persistem na defesa da sua soberania e independência e, com dignidade, se recusam a enfileirar o rebanho de fiéis cumpridores das ordens emanadas dos bush’s de todas as épocas – um vale-tudo onde não faltaram as centenas de atentados contra a tua vida.
Sabes, melhor do que eu, da resistência vitoriosa da revolução cubana face à ofensiva que se seguiu ao desaparecimento da União Soviética, nesse tempo particularmente difícil para todos os partidos comunistas e de fragilização do movimento comunista internacional, com o desaparecimento ou descaracterização de vários partidos comunistas - mas também um tempo em que muitos outros partidos, como o Partido Comunista de Cuba – e como, deixa-me que te diga com orgulho, o meu Partido Comunista Português - resistiram, e assumiram e reafirmaram a sua identidade comunista, e proclamaram orgulhosamente que fomos, somos e seremos comunistas.
Sabes, melhor do que eu, desse tempo em que os coveiros de serviço proclamavam a morte do comunismo e a vitória definitiva do capitalismo e decretavam o desaparecimento de Cuba socialista: «é uma questão de dias»,: vaticinavam uns; «é uma questão de semanas»: prognosticavam outros; «é uma questão de meses»: garantiam terceiros – e que tu disseste a palavra exacta no momento exacto: resistir! E, assim, tu e o teu povo tornaram possível o que fora decretado como impossível: proclamaram a resistência e venceram.
Sabes, melhor do que eu, como essa vitória levou a esperança e a confiança a milhões de pessoas em todo o planeta, e foi um incentivo à continuação da luta, e mostrou a importância fundamental de lutar seja qual for a situação que se nos depare.
Sabes, melhor do que eu, da solidariedade internacionalista da revolução cubana com a luta de todos os povos do mundo:
- em Angola, onde os heróicos soldados cubanos destroçaram a ofensiva da África do Sul do apartheid conjugada com o imperialismo norte-americano e os fantoches da UNITA; e em vários outros países onde dezenas de milhares de médicos e professores cubanos, revolucionariamente, desenvolvem uma acção de elevado conteúdo civilizacional, levando os cuidados de saúde a milhões de pessoas que jamais haviam visto um médico, ensinando a ler milhões de analfabetos.
Sabes, melhor do que eu, que a ofensiva imperialista contra a revolução cubana vai prosseguir e intensificar-se e que o povo cubano vai continuar a viver momentos difíceis.
Mas – e essa é a questão crucial - sabes, melhor do que ninguém, que a determinação do teu povo de, com coragem e dignidade revolucionárias, continuar a resistir a essa ofensiva e a superar as suas consequências, constitui o dado mais relevante da situação cubana actual. E sabes, melhor do que ninguém, que a Revolução criou gerações de quadros revolucionários que prosseguirão a luta que tu iniciaste.
E por tudo isto, sabes, melhor do que ninguém, que o povo cubano está preparado para, 55 anos depois, repetir em uníssono o grito de Moncada.
E sabendo tudo isto melhor do que ninguém, sabes, camarada Fidel, quanto te devem o Partido, a Revolução, o Povo de Cuba, os revolucionários de todo o Planeta.
Sabes, por isso, que nos fazes muita falta, mas sabes que tudo o que nos deste é parte da nossa força, porque é património inalienável do nosso ideal comunista e da nossa determinação de lutar até à vitória final.
Camarada Fidel: em todo o mundo, milhões de homens, mulheres e jovens sentem como sua a revolução cubana e nela encontram os valores, os princípios, os objectivos da luta que travam todos os dias nos seus próprios países.
Alguém escreveu, que «a grandeza da revolução cubana pertence-nos a todos».
Se assim é – e é - tu, camarada Fidel, artífice maior dessa Revolução, pertences-nos, és nosso.
E serás sempre o nosso «Comandante en Chefe».
Até à vitória final.
A luta continua.

Fernando Samuel
22.2.2008

Tuesday 12 March 2013

A VIAGEM


A viagem fazemo-la num qualquer modesto cargueiro.
Existe ainda um porto onde não tivéssemos tocado?
Existe alguma espécie de tristeza que ainda não tivéssemos cantado?
O horizonte que a cada manhã tínhamos pela frente
não era igual ao que à noite deixávamos para trás?
Quantas estrelas desfilaram à nossa frente
roçando as águas?
Não era cada aurora o reflexo
da nossa nostalgia?

Mas é em frente que vamos, não é verdade?
É em frente que vamos.


Nazim Hikmet

Saturday 9 March 2013

DE CADA VEZ QUE UM GOVERNO...



De cada vez que um governo necessita de segredos,
por segurança do Estado
ou para melhor êxito
nas negociações internacionais,
é o mesmo que negar,
como negaram sempre desde que o mundo é mundo,
a liberdade.

Sempre que um povo aceita que o seu governo,
ainda que eleito com quantas tricas já se sabe,
invoque a lei e a ordem para calar alguém,
como fizeram sempre desde que o mundo é mundo,
nega-se
a liberdade.

Porque, se há algum segredo na vida pública
que todos não podem saber
é porque alguém, sem saber,
é o preço do negócio feito.
E se há uma ordem e uma lei que não inclua
mesmo que seja o último dos asnos e dos pulhas
e o seu direito a ser como nasceu ou o fizeram,
a liberdade
é uma farsa,
a segurança
é uma farsa,
a ordem é uma farsa,
não há nada que não seja uma farsa,
a mesma farsa representada sempre
desde que o mundo é mundo,
por aqueles que se arrogam ser
empresários dos outros
e nem pagam decentemente
senão aos maus actores.

Jorge de Sena

Wednesday 6 March 2013

PARA VÓS O MEU CANTO...



Para vós o meu canto, companheiros da vida!
Vós que tendes os olhos profundos e abertos;
vós, para quem não existe batalha perdida,
nem desmedida amargura,
nem aridez nos desertos;
vós, que modificais o leito dum rio;

- nos dias difíceis sem literatura,
penso em vós: e confio;
penso em mim: e confio;

- para vós os meus versos, companheiros da vida!

Se canto os búzios, que falam dos clamores,
das pragas imensas lançadas ao mar
e da fome dos pescadores,
- penso em vós, companheiros,
que trazeis outros búzios pra cantar...

Acuso as falas e os gestos inúteis;
aponto as ruas tristes da cidade
e crivo de bocejos as meninas fúteis...

Mas penso em vós e creio em vós, irmãos,
que trazeis ruas com outra claridade
e outro calor no apertar das mãos.

E vou convosco - definido e preciso,
erguido ao alto como um grito de guerra,
à espera do Dia do Juízo...

Que o Dia do Juízo
Não é no Céu... é na Terra!


Sidónio Muralha

Sunday 3 March 2013

CHAMA QUE NENHUM VENTO APAGA...


A Revolução
parece às vezes que pára
ou que recua
tornando mais funda a escuridão
e a noite menos clara
- como se qualquer Mágica Mão
apagasse o sol dentro da lua.

Mas só os medrosos temem
que a viagem
para a Manhã do Renovo
com limpidez de sémen
termine
- antes que cheguemos à paisagem
sonhada para o povo
por Lenine.

Não. A nossa Revolução
ainda não acabou
nem tão cedo acaba
- como no alto mar
não gela nenhuma vaga
ao sol de Verão.

Não. A nossa Revolução
continuará,
chama que nenhum vento apaga
- enquanto no coração
dos ricos-senhores
doer a ameaça
de os cavadores vermelhos
(o tojo inútil, os estevais, o rasto
das lebres e dos coelhos)
- guiados pelo malogro,
o asco
e a esperança
da sombra de fogo
da Voz do Vasco
colérica e doce.

José Gomes Ferreira