Tuesday 30 March 2010

Tudo na mesma parede

Portinari não morreu.
A morte é o mármore, o silêncio, o frio
e sobretudo o esquecimento.
Porque estamos vivos, tu e eu,
Portinari não morreu
e é ele que sopra o vento
e que faz correr um rio
no nosso pensamento.

Será teu companheiro se tu partires
o Portinari da eternidade
que pinta no balouço do arco-íris
as sete cores da amizade.

Foi ele que deu à parede
toda a força de um gesto
e que fechou numa rede
tudo isto e tudo o resto
- barco, ondas e conchas do mar,
água para matar a sede
e um homem a gritar
(tudo na mesma parede
e coberto de luar).

De luar ou do cristal das alvoradas,
lá no alto abrem-se vidraças
e crianças de todas as raças
avançam no asfalto, de mãos dadas.

Meninos dançam, e as cores
de Portinari são as mesmas do Brasil
- venham, senhoras e senhores,
ver dançar à volta das flores
os homens do ano dois mil.


Sidónio Muralha
(«Os Olhos das Crianças» - 1963)

Saturday 27 March 2010

Telegrama ao Poeta

Poeta, mantém o estado de vigília,
está atento, não adormeças.
Quando os pássaros dormem
as plumas são fofas
mas o canto é ausente
as asas inúteis

e as cabeças decapitadas.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Wednesday 24 March 2010

As crianças e os monstros

A criança entrou numa casa de brinquedos e perguntou:
- Tem carícias para vender?
E o homem respondeu: - essas coisas não temos,
mas vendemos revólveres, metralhadoras
e canhões para crianças subdesenvolvidas,
e bombas atómicas em miniatura
para meninos de fino trato,
pagáveis em dez prestações
e com entrega mensal
de um monstro mais ou menos domesticado
ao cliente
que tiver praticado o crime atómico
em miniatura
mais horrível do mundo.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Sunday 21 March 2010

SONETO DO DIFÍCIL RETORNO (2)

Não. Este mar não é o que me dava
búzios que ressoavam ventanias
nas manhãs de coral e rola brava
- as horas que me dava eram macias

e macias as conchas que entregava
nas mãos que esvoaçavam alegrias,
enquanto a rola brava esvoaçava
nas manhãs de coral desses meus dias.

Não. Este mar é outro, mas às vezes
arrasta a nostalgia e os reveses
e lembra a minha praia de criança.

Suave praia, tu não estás perdida
pois nada está perdido enquanto há vida

- enxuga os olhos, pátria, tem confiança.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Thursday 18 March 2010

SONETO DO DIFÍCIL RETORNO (1)

Se fores a Portugal, um dia, se
pisares aquele chão, diz-lhe que aguarde
o difícil retorno deste que
nunca pensou voltar assim tão tarde.

Mas houve temporais e lutas e
se a batalha foi ganha sem alarde,
nunca foi sem alarde a raiva de
um inimigo oculto, hostil, cobarde.

Atravessei os mares e os continentes,
conheci outras línguas, outras gentes,
mas a minha poesia é lá que vive.

É lá que sou poeta e na verdade
a minha volta é só formalidade.

- Voltar não voltarei. Sempre lá estive.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» 1971)

Monday 15 March 2010

As férias

Deixei o anzol em casa
e a isca, nem tive tempo de pensar,
mas o dia tem uma brandura de asa
- vou pescar.

Pesca sem anzol nem isca.
Ter férias, tem, quem sente
a vida que mordisca
a linha negligente.

Ao pescador que se deixe
a tarefa de pescar.
Ter férias é deixar o peixe
ter suas férias no mar.

Hoje a suavidade
da areia e do sol.
Amanhã, a cidade
e o anzol.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Friday 12 March 2010

Os apaziguadores

A tribo é indócil.
Os apaziguadores são boas pessoas.
Eles cantam a paz
na boca das armas.
Eles desarmam as bocas
quando cantam a paz.
Só não desarmam as armas
porque a paz desarmada
passaria a ser paz
e eles ficariam desempregados
porque não há apaziguadores
em tempo de paz.

O medo tocou os apaziguadores.
O medo tocou o gatilho das armas,
e os indóceis ficaram apaziguados,
definitivamente apaziguados,
horizontalmente apaziguados.

E os apaziguadores voltaram aos lares
e com gestos medidos e apaziguados
guardaram as armas, lavaram as mãos,
e distribuíram beijos pacificamente
a toda a família.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Tuesday 9 March 2010

Manual do perfeito mendigo

Gesto pedindo clemência
cansa.
Modernizem a desgraça.
Ser pedinte com eficiência
é alugar uma criança
e arremessá-la aos olhos de quem passa.

Quem fala de caridade
usa a velha ferramenta
e compromete o seu papel.
Para comover a cidade
preguiçosa e sonolenta
só a criança de aluguel.

Só a criança. De baixo custo.
É pitoresca ou inefável,
sabe chorar, sabe sorrir,
exprime o pavor, o medo, o susto,
é facilmente transportável
e faz o drama explodir.

Pagam os homens comprometidos
para não verem na sua frente
os meninos alugados,
que falsas mães, de olhos doridos,
silenciosas, mostram à gente,
como brinquedos mutilados.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Saturday 6 March 2010

Mágica

O poeta é um prestidigitador.
Tira coelhos da cartola,
sim senhor.
Num gesto, cria pássaros vermelhos.
dizem que não faz parte de uma escola
quando em vez de tirar coelhos da cartola
passa a tirar cartolas dos coelhos.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Wednesday 3 March 2010

Ângulos diferentes

A diferença
entre cavalgar
e ser cavalgado
é pesada
contundente
crucial.

Cavalgando, o cavaleiro exclama:
- é épico.
Cavalgado, o cavalo constata:
- é hípico.

Frases de pouca monta
totalmente desmontadas
quando é o cavalo que monta
o cavaleiro.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Monday 1 March 2010

Profecia

Cada gesto de ódio
cada gesto de prepotência
cada gesto para amordaçar a verdade
cada gesto para amparar a mentira
cada gesto que suprime outro gesto
cada gesto - indigesto

- voltará implacável como um «boomerang»
e ninguém escapará a essa lei.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)