Monday 30 May 2016

Voz do Sangue


Palpitam-me
os sons do batuque
e os ritmos melancólicos do blue

Ó negro esfarrapado
do Harlem
ó dançarino de Chicago
ó negro servidor do South

Ó negro da África
negros de todo o mundo

eu junto
ao vosso magnífico canto
a minha pobre voz
os meus humildas ritmos.

Eu vos acompanho
pelas emaranhadas africas
do nosso Rumo.

Eu vos sinto
negros de todo o mundo
eu vivo a nossa história
meus irmãos.

Agostinho Neto.

Friday 27 May 2016

O SACRIFÍCIO

Não gostaria de falar desse primeiro
encontro com as dificuldades do corpo.
Ou não seriam do corpo? Fora
do corpo haverá alguma coisa?
Foi há tantos anos, que espanta
que dure ainda na memória.
A extrema juventude guarda melhor
o tempo. Idade da flor, assim
lhe chamam. Idade de ser homem,
dizem também. O que é então
ser homem? Ou ser mulher?, se poderá
perguntar. Aqui, era ser homem: idade
de ir às putas. Entrava-se na sala
envergonhado, depois de se bater
à porta. Elas lá estavam: num salto
uma apalpou-o: Que cheiro a cueiros,
exclamou, olhando o cordeiro
do sacrifício. Ao fim, com dez escudos
pagavas o seres homem.
Não era caro, provares a ti mesmo
que pertencias ao rebanho.

Eugénio de Andrade

Tuesday 24 May 2016

Com os olhos secos


Com os olhos secos
-estrelas de brilho inevitável
Através do espírito
Sobre os corpos inânimes dos mortos
Sobre a solidão das vontades inertes
Nós voltamos


Nós estamos regressando África
E todo o mundo estará presente
No super-batuque festivo
Sob as sombras do Maiombe
No Carnaval grandioso
Pelo Bailundo pela Lunda

Nós voltamos África
Estrelas de brilho irresistível
com a palavra escrita nos olhos secos
-LIBERDADE

Agostinho Neto.

Saturday 21 May 2016

CANÇÃO DA MÃE DE UM SOLDADO DE PARTIDA PARA A BÓSNIA


É muito jovem, sem tempo ainda
de ser triste. Demora-se nos meus olhos
enquanto leva a maçã à boca.

Nenhuma fala obscura escurece a tarde,
a cabeleira solta é a sua bandeira;
o pés brancos, irmãos
da chuva de verão, anunciam a paz.

Suplico à estrela da manhã
que lhe guie os passos, agora que partiu;
que tenha em conta a sua ignorância,
não só da morte, também da vida.

Eugénio de Andrade

Wednesday 18 May 2016

Poema de uma quarta feira de cinzas


Entre a turba grosseira e fútil
Um pierrot doloroso passa.
Veste-o uma túnica inconsútil
feita de sonho e de desgraça…


O seu delírio manso agrupa
atrás dele os maus e os basbaques.
Este o indigita, este outro apupa…
indiferente a tais ataques,

Nublaba a vista em pranto inútil,
Dolorosamente ele passa.
veste-o uma túnica inconsútil,
Feita de sonho e de desgraça…

Manuel Bandeira

Sunday 15 May 2016

SIGLA

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
a pança do patrão não lhe cabe na pele
a mulher do gerente não lhe cabe na cama.
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o canedal estoira
e o capital derrama

O salário é sagrado
o direito é divino
mais o caso arrumado
do poder que é bovino.

O papel é ao quilo
o cadáver ao metro
mais o isto e aquilo
com que se mata o preto.

O retrato é chapado
a moldura é antiga
para um homem armado
a catana é cantiga.

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o respeito algemado
o sorriso fiel
do senhor cão pastor que tem coleira aos bicos
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
só salvamos a pele se formos cães de ricos:

A palhota de mágoa
a casota de medo
mais o pão e a água
que nos dão em segredo.

A gaveta arrumada
a miséria contida
mais a fome enfeitada
que há num dia de vida.

O cachorro quieto
o prazer solitário
do filho predilecto
do doutro numerário.

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
a folha de serviços a folha de papel
o fabrico o penico o sono estuporado.
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o silêncio por escrito o silêncio ladrado:

A mensagem urgente
o envelope fechado
mais o rabo pendente
do animal escorraçado.

O contínuo presente
o contínuo passado
mais a fala deferente
do contínuo coitado:

Permite-me permite
Vossa celebridade
o limite o limite
o limite de idade?

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
Ai o sal deste mar ai o mel deste fel
o azeite o bagaço
o cagaço o aceite
deste lagar Tarzan traumatizado.
Ai a fase do leite
ai a crise do gado
neste curral sinónimo do homem
ANÓNIMO
RESPONSÁVEL
LIMITADO.

José Carlos Ary dos Santos

Thursday 12 May 2016

Dia 335


No estio, uma flecha ardente atravessa sem passaporte a minha
admiração. É uma aventura feliz que só termina quando chegam
as chuvas a uma terra que a ninguém foi prometida. A minha bi-
ografia estará para sempre escondida no universo de uma laran-
ja, e se gosto de correr para o mar de braços abertos é porque,
nesse momento, não existe nada que não seja meu.
Só o verão me pede coisas, durante as outras estações são as
coisas que me puxam até elas. Subjugam-me, obrigam-me, man-
dam em mim e, por maior que seja a minha revolta, não consegui
ainda livrar-me dessa ditadura. É por isso que a minha liberdade
veste cores quentes, ocres, laranjas, vermelhos, cujas excepções
são o azul e o muito azul.
E canto, canto como a cigarra dourada, até rasgar as asas, embo-
ra a minha imaginação ande sempre por entre bosques cheios de
sombra, mastigando palavras doces como se fossem frutos fres-
cos, inventando alquimias e desculpas.  Verei depois chegar os
pássaros do outono com os seus fatos escuros, como se algo de
trágico estivesse para acontecer. A vocação da terra é a sensuali-
dade, e essa obrigação de repetidamente ficar prenhe, de parir
coisas heróicas, permitindo-nos ser descuidados, fúteis, e capa-
zes de nos contentarmos por saber tão pouco.
Ao menos, no estio, tudo é quase, quase inocente. Até a sabedo-
ria, entre o tempo e o lugar, não é nunca a última a despir-se pa-
ra um despreocupado banho de mar, à hora a que recolheram já
a casa, não só o escaravelho mas também a toutinegra e o pintar-
roxo.

Joaquim Pessoa

Monday 9 May 2016

A CORTIÇA

É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal
há gente que arrefece que arrefece
de sol a sol
de mal a mal.
É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal.

Passando o Tejo para além da ponte
que não nos liga a nada
só se vê horizonte
horizonte
e tristeza queimada.

É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
uma fome tão grande que trespassa
o ventre de quem a leva.
É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:

Mal finda a noite escurece logo o dia
e uma espessa energia
feita de pus no sangue
de lama na barriga
nasce da terra exangue e inimiga.

É o vapor da sede é o calor do medo
a cama do ganhão
a casca do sobredo.
É o suor com pão
que se come em segredo.

É preciso dizer-se o que nos dão
no meu país de boa lavra
aonde um homem morre como um cão
à míngua de palavra:

Por cada tronco desnudado um lado
do nosso orgulho ferido
e por cada sobreiro despojado
um homem esfomeado e mal parido.

Ah não, filhos da mãe!
Ah não, filhos da terra!
Os enjeitados também vão à guerra.

José Carlos Ary dos Santos

Friday 6 May 2016

POEMA OCTOGÉSIMO QUARTO


A manhã rompe-se com o canto dos pássaros e as flores amarelas pedem justiça ao vento, que saiu de casa feliz, para incendiar nos pensamentos a intimidade do dia.
Ganham entusiasmo as minhas mãos, os olhos dizem-me que hoje a felicidade é possível, que é de vida que se alimenta a fogueira do amor.
E eu caminho com a sabedoria das coisas que escolheram apaixonar-se pelo mar, essas coisas simples que procuram tornar ainda mais simples cada minuto, cada gesto, cada beijo.
Amo as coisas simples porque a sua simplicidade é a de carregar o mundo, grávidas que estão da sua nudez, sabendo que a morte não é mais que uma palavra e o amor são todas as palavras, as doces e temíveis palavras que vestem a vida de brocados e de sedas tão macias, tão raras, tão intensas como a simples e profunda memória do cheiro e do sabor que só tem a pele de uma mulher.

Joaquim Pessoa


Tuesday 3 May 2016

O TURISMO


Visitar este país
até à última gota:
O porco e o Porto a bola e a bolota
o que é como quem diz
itinerar a derrota.

Tudo tem lugar no mapa
Paris Washington Moscovo
Em Itália vê-se o papa
em Lisboa vê-se o povo.

Welcome Bienvenus Salud Wilkommen Viva
a sífilis saúda-vos saúda-vos a estiva
desta carga de heróis em carne viva
nociva mas barata
vindes matar a sede com uva
beber o sumo de ócio que nos mata.

Desemborcais nos cais desembolsais demais
mas não sabeis
as coisas viscerais as coisas principais
deste país azul
com mais hotéis do que hospitais
talvez por ser ao sol talvez por ser ao sul.

Aqui ao pé do mar bordamos a tristeza
as toalhas de mão as toalhas de mesa
que levais para casa Souvenir
deste povo sem pão
que se cose a sorrir.

Aqui ao pé do rio gememos a saudade
nosso fado submisso nossa água a correr.
Canção de mal devir Souvenir Souvenir
deste povo de trégua
que se canta a morrer.

Aqui ao pé do vento forjamos o lamento
dum país que se vende a peso nos prospectos
tanto de sol ardente tanto de cal fervente
e uma nódoa de céu nos xailes pretos.

Aqui ao pé do fel gritamos o segredo
do que parece fácil neste país de luz:

é apenas a fome.

É apenas o medo.

É apenas o sangue.

É apenas o pus.


José Carlos Ary dos Santos

Sunday 1 May 2016

AMIGOS...


Amigos, quero compor para vós uma canção,
uma canção nova, uma canção melhor!
Queremos instaurar aqui na terra,
agora mesmo, o reino dos céus.

Queremos ser felizes nesta terra,
aqui queremos derrotar a fome
e que o ventre preguiçoso não devore
o que mãos trabalhadoras produziram.

Cresce, aqui em baixo, pão que chega
para os filhos dos homens
e ainda há rosas e mirtos,
beleza, alegria e ervilhas-de-cheiro.

Sim, ervilhas-de-cheiro para todos,
logo ao abrir das vagens!
O céu, não o queremos para nada,
fiquem com ele os anjos e os pardais.

Uma nova canção, uma canção melhor!
Dir-se-iam flautas e violinos...
O miserere terminou,
calou-se o dobre fúnebre dos sinos.

Heinrich Heine