Thursday 30 April 2015

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Não morrerei.
Procurarei a sombra dos amieiros
-podes encontrar-me lá,
Quando buscares os meus dedos
À tua sede.
Junto ao rio
Adormecem as inquietações.
A vida toda fui lume
A consumir ao vento dos dias
O desassossego das giestas.
Procura-me lá.
Rente ao fresco
Como as tuas mãos frias
Depois do fogo.


Lains de Ourém

Monday 27 April 2015

O QUE DA RAZÃO NÃO FAZ...


O que da razão não faz
uma firme barricada
de que mais será capaz
que de não sê-lo de nada?
Pois vale a pena viver
a contrariar a vida?
Pior que a vida perder
é aceitá-la perdida.
Fique às nuvens e ao luar
a cobardia do céu.
Recto seria julgar
a lei primeiro que o réu.

Armindo Rodrigues

Friday 24 April 2015

Ao meu Povo


Nos cornos da saudade há uma forca
um fantasma castrado    uma agonia
caindo sobre o sangue com a força
com que as palavras doem dia a dia.

No átrio da pureza cresce a fome
que escrevo sobre o rosto das cidades
caiadas no teu ventre    no teu nome
onde invocam mentiras e verdades.

Meu povo    meu lírio    meu abraço
do linho que me envolve até à morte.
Por ti é que eu me dispo    é que eu me faço
mais pobre    mais triste    mas mais forte.

Joaquim Pessoa

Tuesday 21 April 2015

A CANÇÃO DA FOME


Prezado senhor e rei,
sabes a notícia grada?:
segunda comemos pouco,
terça não comemos nada.

Quarta sofremos miséria,
e quinta passámos fome,
na sexta quase nos fomos,
não se aguenta q2uem não come.

Por isso vê se no sábado
mandas cozer o pãozinho,
senão no domingo, ó rei,
vamos comer-te inteirinho.


Georg Weerth


(poeta alemão, nascido em 1822. Foi companheiro de luta de Marx e Engels, com os quais manteve estreito contacto. Preso a dada altura pelo conteúdo revolucionário dos seus escritos, viria a fugir para Inglaterra, onde acompanhou Engels no estudo da vida e da luta do proletariado inglês. Entre os dois criou-se uma sólida amizade. Engels considerava-o o maior e o mais importante poeta do proletariado alemão. Weerth morreu em 1856, com apenas 34 anos de idade)

Saturday 18 April 2015

Os Amigos


Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.


Eugénio de Andrade
in "Coração do Dia"

Wednesday 15 April 2015

O SUCESSO


Dentro da conhecida lógica
começou a operação psicológica
do «diz-se que».
E que diz o «se que»? diz que os aumentos
andam no vento
estão por um triz...

E talvez não - dizem alguns jornais -
talvez ainda demore uns dias mais...

Água, pão, luz - aí vêm os arremessos.
Cavaco aperfeiçoa o seu governo.
Em aumentos de preços
vai ser mesmo um governo de sucesso.

Mário Castrim

Sunday 12 April 2015

Dedicado ao deputado João Morgado


Já que o coito - diz o Morgado
Tem como fim cristalino
Preciso e imaculado
Fazer menina e menino,
E cada vez que o varão
Sexual petisco manduca
Temos na procriação
Prova que houve truca-truca.


Sendo pai de um só rebento
Lógica é a conclusão
De que o viril instrumento
Só usou - parca ração! –
Uma vez. E se a função
Faz o órgão - diz o ditado –
Consumada essa operação
Ficou capado o Morgado.

Natália Correia

Thursday 9 April 2015

DEMOTADURA


Estações de TV governo dá.
Descabeladamente aumenta o pão.
O Braga diz que mais aumentos, «não»
e que salários aumentados, ná.

Na Educação mil cortes? É pra já.
Os remédios mais caros? Aí estão.
A CEE vem-nos comer à mão
quiquiriqui, cocoricó, cacaracá...

Cavaco quer ter sempre o trunfo de ás.
Ele pensa, ele quer - logo ele faz.
Controvérsias, debates, não atura.

Na maré alta da hipocrisia
ele soletra bem de-mo-cra-cia
mas traduz mentalmente «ditadura».


Mário Castrim

Monday 6 April 2015

Defesa do Poeta


Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto
Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim
Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes
Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei
Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição
Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além
Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.


Natália Correia

Friday 3 April 2015

NÃO TRAIO (boca cerrada de raiva)


Não traio.
Porque insistes?
Não traio.

Desde criança que meu Pai me ensinou
não haver tempestade
na terra ou nos céus
que não traga
a praga
de um falso herói
salvador da Cidade.
Ou a esperança de um semideus
com um raio
na Mão
que tudo destrói
para pintar depois o sol e o Chão
de outra realidade.
Mas nunca encontrarás traidores
entre os que sempre como eu sonhámos combustões
de novas flores
com pétalas de asas de liberdade
que só nascem e crescem regadas pelos gritos e lágrimas
das multidões.

Povo, continua! Não páres a tua tempestade.

José Gomes Ferreira

Wednesday 1 April 2015

Quanto mais amada mais desisto


De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
.
Natália Correia,
in “Poesia Completa”