Tuesday 30 June 2020

FÁBRICA

Oh, a poesia de tudo o que é geométrico
e perfeito,
a beleza nova dos maquinismos,
a força secreta das peças
sob o contacto frio e liso dos metais,
a segura confiança
do saber-se que é assim e assim exactamente,
sem lugar a enganos,
tudo matemático e harmónico,
sem nenhum imprevisto, sem nenhuma aventura,
como na cabeça do engenheiro.
Os operários têm nos músculos, de cor,
os movimentos dia a dia repetidos:
é como se fossem da sua natureza,
longe de toda a vontade e de todo o pensamento,
como se os metais fossem carne do corpo
e as veias se abrissem
àquela vida estranha, dura, implacável
das máquinas.
Os motores de tantos mil cavalos
alinhados e seguros de si,
seguros do seu poder;
as articulações subtis das bielas,
o enlace justo das engrenagens:
a fábrica, todo um imenso corpo de movimentos
concordantes, dependentes, necessários.

Joaquim Namorado

Saturday 27 June 2020

O ANDAIME


O andaime era alto,
alto...
(e uma viga estava mal segura...)

Os ladrilhos vermelhos
saltavam de mão em mão
como peixes voadores...;
os aprendizes traziam e levavam
taboleiros de cal;
e os muros cresciam
e abriam-se janelas
e os andares subiam.

O andaime era cada vez mais alto,
mais alto...
(e aquela viga estava mal segura...)
Os operários cantavam - o ritmo dos braços,
o bater dos martelos, era o ritmo da canção
- cantavam e riam...

Em volta, a Natureza representava a comédia
da mais inteira confiança:
o sol baixava num céu calmo, infinitamente azul,
um céu de charco;
da rua subia o marasmo destas horas
em que os burgueses dormem a sesta
e as moscas zumbem nas vitrines;
a canção era a mesma de sempre:
o mesmo bater dos martelos que enchia o silêncio;
um bando de pombas viera poisar,
confiadamente,
no cimo alto das estacas...
(e uma viga estava mal segura...)

Os operários cantavam,
cantavam e riam;
nada lhes dizia
da ameaça que pesava
- em toda a parte a traição do encoberto...

E o andaime era alto...
tão alto que,
quando ele caiu, como uma ave ferida,
o seu corpo ficou desenhado a sangue na calçada,
que era um outro santo-sudário.
Então a canção parou em todas as bocas
e mais as roldanas e o bater dos martelos;
por um momento
tudo parou em redor do mesmo espanto.
Mas a vida continuou
e a Natureza afivelou de novo
a máscara da cega confiança.

- Depois levaram o corpo para a morgue
e lavaram com baldes de água
o sangue
que secara na calçada e tinha
um aspecto repugnante.

A casa é alta,
alta...
tem ascensor, água encanada e uma mercearia
no rés-do-chão;
as andorinhas fizeram ninhos nos beirais;
das varandas debruçam-se cravos e malvas;
uma toalha que enxuga numa janela
é uma bandeira de paz;
a menina loira, do terceiro andar, esquerdo,
namora e vai casar...

Todos os dias
vem um caos destes nos jornais...

Joaquim Namorado

Wednesday 24 June 2020

ROMANCE DE FEDERICO


I 
Num pueblo de Espanha
la Barraca se levanta:
Num pueblo de Espanha,
numa praça de Castela...

Mas não se ouvem poemas,
nem guitarras, nem canções
- que la Barraca é deserta...
Morreram vozes e risos
(no chão, com as folhas arrancadas,
D. Quijote de Cervantes)
e calaram-se as canções,
geladas no oiro frio
das cordas dos violões
- que la Barraca está deserta
como uma alma... deserta.

Correi ventos de Espanha!
Chamai vozes de Espanha!
Mirad olhos de Espanha!
- Aonde está Federico?

Chorai corações de Espanha!

- No acampamento cigano
uma virgem desmaiou:
romance da «pena negra»
a feiticeira agoirou.
Romance da «pena negra»,
romance da negra sorte,
com uma bala na fronte
e outra no coração
morto para sempre ficou...
(No veludo dos estojos,
as cordas da guitarras estalaram
com um ai grave e profundo...)
as mãos estendidas, sem raiva,
os olhos cheios de terra,
morto ficou.

Chorai corações de Espanha!

Com os olhos cheios de terra,
sob o céu de su Granada,
morto ficou...

Cavalos negros da noite
encobriram as estrelas.
De Cádis até Navarra,
de Badajoz ao Levante.

II 
A noite desceu sobre o corpo da Espanha.
A noite das águias carniceiras
desceu sobre o corpo da Espanha...

Ferem o chão fúrias soltas
- ruínas foram cidades e vilas,
escolas, lares, catedrais;
incêndios foram celeiros e searas;
ódio foi amor,
lágrimas foram riso...
A noite poisou seus dedos de treva
no coração da Espanha...

Espanha,
em teus braços de Mãe,
em teus braços de terra,
apodrecem os corpos
de teus filhos inocentes...
Espanha,
na sombra que desceu
as feridas dos cadáveres abrem-se
como flores roxas de agonia...

Espanha,
noites de serenata,
sob os balcões floridos, nunca mais:
que os corações não batem já para o amor,
só para o aço dos punhais...

Espanha,
Carmen, cigana,
corpo de bronze, olhos de lume,
não mais amante...
Espanha,
na noite das catedrais,
correm lágrimas de marfim
pelas faces dos crucificados
- na tua face
são de sangue, Espanha!
Espanha,
no silêncio das catedrais
sorrisos seráficos da Virgem
- na tua boca
sangue e fel, Espanha!

Joaquim Namorado

Sunday 21 June 2020

A MÁQUINA DE FAZER NOTAS FALSAS


A máquina de fazer notas falsas
era uma máquina tão falsa
que nem notas fazia...

Mas trabalhava perfeito...
dentre dois rolos saíam,
em vez de notas de mil,
folhas de velhos jornais

Com notícias falsas.

Joaquim Namorado

Thursday 18 June 2020

PORT-WINE


O Douro é um rio de vinho
que tem a foz em Liverpool e em Londres
e em Nova Iorque e no Rio e em Buenos Aires:
quando chega ao mar vai nos navios,
cria seus lodos em garrafeiras velhas,
desemboca nos clubes e nos bares.

O Douro é um rio de barcos
onde remam os barqueiros suas desgraças,
primeiro se afundam em terra as suas vidas
que no rio se afundam as barcaças.

Nas sobremesas finas as garrafas
assemelham cristais cheios de rubis,
em Cape-Town, em Sidney, em Paris,
tem um sabor generoso e fino
o sangue que dos cais exportamos em barris.

As margens do Douro são penedos
fecundados de sangue e amarguras
onde cava o meu povo as vinhas
como quem abre as próprias sepulturas:
nos entrepostos do cais, em armazéns,
comerciantes trocam por esterlino
o vinho que é o sangue dos seus corpos,
moeda pobre que são os seus destinos..

Em Londres, os lords e em Paris os snobs,
no Cabo e no Rio os fazendeiros ricos
acham no Porto um sabor divino,
mas a nós só nos sabe, só nos sabe,
à tristeza infinita de um destino.

O rio Douro é um rio de sangue,
por onde o sangue do meu povo corre.
Meu povo, liberta-te, liberta-te!,
liberta-te, meu povo! - ou morre.

Joaquim Namorado

Tuesday 16 June 2020

Pele


Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele


David Mourão-Ferreira

Monday 15 June 2020

ÁFRICA


África do Congo,
África distante do Congo
distante...
África apertada, cingida,
no périplo do meu abraço:
nó dos meus pulsos
fechando o teu corpo negro
aberto para a minha ânsia.
Descoberta do acaso
das minhas navegações:
África perdida nos «cabarets»
com o teu riso branco de espanto
das civilizações.

Ó minha negra,
escrava humilde e fiel,
encontro do meu destino pirata...

Floresta nunca pisada;
virgindade das florestas virgens rasgada;
rosa desfolhada
como a tua boca no riso branco,
como o teu destino branco
na lotaria da vida.

Cadeia dos meus sentidos,
febre da minha aventura...

Roubei os diamantes do teu seio,
o oiro das tuas pulseiras,
e negociei tudo nas bancas!
Vendi as tuas terras
e os teus rebanhos,
derrubei as tuas florestas
e arrasei as tuas aldeias,
despovoei os teus reinos,
trocei as tuas crenças...

Veneno europeu...

Fiz dos teus filhos escravos
e, senhor do meu destino,
amarrei-te à minha sorte.

Veneno europeu...

Teu corpo de mapas,
neste leito do mundo,
quantas vezes o fiz meu...

Ris com esse riso de cartaz:
branco,
límpido,
fixo.
Ris.

O jazz toca um desses blues
- e o negro do cornetim
rasga o silêncio
com o seu grito de faca.

O eco fica bailando
no teu corpo
como o ramo das palmeiras...
das palmeiras lá do Congo.
O som cavo das marimbas
bate o compasso no fundo da música...

África civilizada,
vestida à moda das nações,
fazendo ouvir nos boulevards
a tua música de recorte primitivo.

Outros batuques distantes,
ouros batuques mais distantes
que me vêm no sangue
- o bater das marimbas foi que o acordou.

A virgem loira desfalece
nos barços de quem dançou.
A saxofone, do espanto
dos teus olhos, se entornou...

E o teu riso de cartaz,
branco
como marfim de amuletos,
brilha nos acordes do piano.

Capa de magazine:
A luz correu no teu corpo
que brilhou como uma lança...
Já não há lanças em África...
dança,
dança...
Já não há lanças em África,
já não há guerra,
já não há guerra...
- batuque de lanças quebradas,
batuques do Congo já não são de guerra!
Batuques de lanças quebradas:
batuques de guerra... não!

Nos cofres fortes do Cabo
o teu suor corre em libras...
- Yes, whisky and soda.

Nos cofres fortes do Cabo
o teu suor corre em libras:
África da colonização!

Joaquim Namorado

Friday 12 June 2020

ROMANCE DE SEU SILVA COSTA


«Seu Silva Costa
chegou na ilha...»

Seu Silva Costa
chegou na ilha:
calcinha no fiozinho
dois moeda de ilusão
e vontade de voltar.

Seu Silva Costa
chegou na ilha:
fez comércio di álcool
fez comércio di homem
fez comércio di terra.

Ui!
Seu Silva Costa
virou branco grande:
su calça não é fiozinho
e sus moedas não têm mais ilusão!...

Francisco José Tenreiro

Tuesday 9 June 2020

ROMANCE DE SAM MÀRINHA


Sam Màrinha
a que menina foi no norte
chegou naquele navio à ilha.

Risadas brancas
e goles de champanhe!

À hora do espalmadoiro
os moços do comércio
passaram de gravatas garridas.
O monhé chegou na porta
e limpou o suor
ao lenço di seda que importou do Japão!

Ai!
Aquela que chegou na ilha
como uma risada branca
está fechando a carinha à terra.

Braços pendentemente tristes
só os olhinhos
estão pulando pra lá da fortaleza
querendo ver a Europa!...

Francisco José Tenreiro

Saturday 6 June 2020

Solidão


Que venham todos os pobres da Terra
os ofendidos e humilhados
os torturados
os loucos:
meu abraço é cada vez mais largo
envolve-os a todos!

Ó minha vontade, ó meu desejo
— os pobres e os humilhados
todos
se quedaram de espanto!…

(A luz do Sol beija e fecunda
mas os místicos andaram pelos séculos
construindo noites
geladas solidões.)

Manuel da Fonseca

Wednesday 3 June 2020

REFEIÇÃO


Estendemos a toalha
Trouxeste o pão, o vinho
Eu trouxe a fome, a sede o cansaço
E a mão para colher
A pureza espontânea do teu gesto
Que tem a dimensão do teu braço

Eu recebi
Tu deste
Compartilhámos.
Da refeição ficou o travo doce e bom do mel
E a certeza daquilo que está certo.

Maria Eugénia Cunhal

Monday 1 June 2020

Che Guevara


Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra
De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas

Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece

Sophia de Mello Breyner Andresen