Sunday 30 December 2018

Minuciosa Formiga


Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.

Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.

Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.

Assim devera eu ser
se não fora não querer.

Alexandre O'Neill

Thursday 27 December 2018

Respiro o teu corpo


Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

Monday 24 December 2018

Dia de Natal


Hoje é dia de era bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

António Gedeão

Friday 21 December 2018

Natal

Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.

Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.

Manuel Alegre

Tuesday 18 December 2018

Posso escrever os versos mais tristes esta noite


Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.


Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.
Pablo Neruda

Saturday 15 December 2018

O menino de sua mãe




No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
de balas trespassado
- Duas, de lado a lado -
Jaz morto e arrefece

Raia-lhe a farda o sangue
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino de sua mãe"

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve
Dera-lhe a mão. Está inteira
É boa a cigarreira.
Ele é que já não serve

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço...deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo

Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o império tece)
Jaz morto, e apodrece,
O menino de sua mãe.

Fernando Pessoa

Wednesday 12 December 2018

Noivado


Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura.
- És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia.

Mário Henrique Leiria

Sunday 9 December 2018

Paraíso


Deixa ficar comigo a madrugada,
Para que a luz do sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
Deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
Onde eu oiça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois podes partir. Só te aconselho
Que acendas, para tudo ser perfeito,
À cabeceira a luz do teu joelho,
Entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
Para a minha ilusão do Paraíso.

David Mourão-Ferreira

Thursday 6 December 2018

Canção


Tenho a certeza
De que entre nós tudo acabou.
- Não há bem que sempre dure,
E o meu, bem pouco durou.

Não levantes os teus braços
Para de novo cingir
A minha carne de seda;
- Vou deixar-te, vou partir!

E se um dia te lembrares
dos meus olhos cor de bronze
e do meu corpo franzino,
Acalma
A tua sensualidade
Bebendo vinho e cantando
os versos que te mandei
naquela tarde cinzenta!

Adeus!
Quem fica sofre, bem sei;
Mas sofre mais quem se ausenta!

António Botto

Monday 3 December 2018

Coisa amar


Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.

Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te longamente como dói

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.

Manuel Alegre

Saturday 1 December 2018

Início


Uma dor fina que o peito me atravessa,
A escuridão que envolve o pensamento,
Um não ter para onde ir cheio de pressa,
Um correr para o nada em passo lento,

Um angustiante urgir que não começa,
Um vazio a boiar no alheamento,
Uma trôpega ideia que tropeça
No vácuo de um estranho abatimento.

É tédio? É depressão? Talvez loucura?
É, para um além de mim, passagem escura?
Um ir por ir que não tem outro lado?

É, sem máscaras, a esperança enfim deposta,
Ou no extremo da verdade exposta
A ironia feroz de um deus calado?

Natália Correia

Friday 30 November 2018

Ainda que


Ainda que mal pergunte,
Ainda que mal respondas;
Ainda que mal te entenda,
Ainda que mal repitas;

Ainda que mal insista,
Ainda que mal desculpes;
Ainda que mal me exprima,
Ainda que mal me julgues;

Ainda que mal me mostre,
Ainda que mal me vejas;
Ainda que mal te encare,
Ainda que mal te furtes;

Ainda que mal te siga,
Ainda que mal te voltes;
Ainda que mal te ame,
Ainda que mal o saibas;

Ainda que mal te agarre,
Ainda que mal te mates;
Ainda assim te pergunto
E me queimando em teu seio
Me salvo e me dano: Amor.

Carlos Drummond de Andrade

Tuesday 27 November 2018

No silêncio da noite


 
Às vezes no silêncio da noite
Eu fico imaginando nós dois
Eu fico ali sonhando acordado, juntando
O antes, o agora e o depois

Por quê você me deixa tão solto?
Por quê você não cola em mim?
Tô me sentindo muito sozinho!

Não sou nem quero ser o seu dono
Mas é que um carinho às vezes cai bem
Eu tenho meus desejos e planos secretos
Só abro pra você mais ninguém

Por quê você me esquece e some?
E se eu me interessar por alguém?
E se ela de repente me ganha?

Quando a gente gosta é claro que a gente cuida
Fala que me ama só que é da boca para fora
Ou você me engana ou não está madura
Onde está você agora?

Caetano Veloso

Saturday 24 November 2018

Rifão Quotidiano


Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse:
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece

Mário-Henrique Leiria

Wednesday 21 November 2018

Eu não sei quem te perdeu


Quando veio,
Mostrou-me as mãos vazias,
As mãos como os meus dias,
Tão leves e banais.
E pediu-me
Que lhe levasse o medo,
Eu disse-lhe um segredo:
Não partas nunca mais.

E dançou,
Rodou no chão molhado,
Num beijo apertado
De barco contra o cais.

E uma asa voa
A cada beijo teu,
Esta noite
Sou dono do céu
E eu não sei quem te perdeu.

Abraçou-me
Como se abraça o tempo,
A vida num momento
Em gestos nunca iguais.
E parou,
Cantou contra o meu peito,
Num beijo imperfeito
Roubado nos umbrais.

E partiu,
Sem me dizer o nome,
Levando-me o perfume
De tantas noites mais.

Pedro Abrunhosa

Sunday 18 November 2018

Porta Aberta


Porta aberta a quem bater
Quem mo havia de dizer
Que isso seria verdade
Esse teu corpo sonhado
O teu corpo bem-amado
Aberto a toda a cidade

Braço dado com a aventura
Vais de rua a outra rua
Em busca doutros amores
És de todos, de ninguém,
És a imagem de quem
Vende um punhado de flores

E dizer que te quis tanto
Que foste todo o encanto
Todo o sol do meu jardim
Quem sabe como eu te quis
Sabe bem que em ti perdi
Mais de metade de mim.

António Calém

Thursday 15 November 2018

Partida


Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.

A minha alma nostálgica de além
Cheia de orgulho, ensombra-me entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar a bruma,
Correr no azul à busca da beleza.

Mário de Sá-Carneiro

Monday 12 November 2018

As facas


Quatro facas nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome
Quatro facas meu amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome

Este amor é de guerra de arma branca
amando ataco amando contratacas
este amor é de sangue que não estanca
quatro letras nos matam quatro facas

Amando estou de amor e desarmado
morro assaltando morro se me assaltas
e em cada assalto sou assassinado

Ninguém sabe porquê nem como foi
e as facas ferem mais quando me faltas
quatro letras nos matam quatro facas
quatro facas meu amor com que me matas.

Manuel Alegre

Friday 9 November 2018

Um homem na cidade


Agarro a madrugada
como se fosse uma criança
uma roseira entrelaçada
uma videira de esperança
tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem por força da vontade
de trabalhar nunca se cansa.

Vou pela rua
desta lua
que no meu Tejo acende o cio
vou por Lisboa maré nua
que desagua no Rossio.

Eu sou um homem na cidade
que manhã cedo acorda e canta
e por amar a liberdade
com a cidade se levanta.

Vou pela estrada
deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresça na vela da canoa.

Sou a gaivota
que derrota
todo o mau tempo no mar alto
eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.

E quando agarro a madrugada
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada
um malmequer azul na cor.

O malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém
o malmequer desta cidade
que me quer bem que me quer bem!

Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis que me quer bem!

José Carlos Ary dos Santos

Tuesday 6 November 2018

O mar fala de ti


Eu nasci nalgum lugar
Donde se avista o mar
Tecendo o horizonte
E ouvindo o mar gemer
Nasci como a água a correr
Da fonte

E eu vivi noutro lugar
Onde se escuta o mar
Batendo contra o cais
Mas vivi, não sei porquê
Como um barco à mercê
Dos temporais

Eu sei que o mar não me escolheu
Eu sei que o mar fala de ti
Mas ele sabe que fui eu
Que te levei ao mar quando te vi
Eu sei que o mar não me escolheu
Eu sei que o mar fala de ti
Mas ele sabe que fui eu
Quem dele se perdeu
Assim que te perdi

Vou morrer nalgum lugar
De onde possa avistar
A onda que me tente
A morrer livre e sem pressa
Como um rio que regressa
À nascente

Talvez ali seja o lugar
Onde eu possa afirmar
Que me fiz mais humano
Quando, por perder o pé,
Senti que a alma é
Um oceano.

Tiago Torres da Silva

Saturday 3 November 2018

Não disse nada amor


Não disse nada, amor, não disse nada
Foi o rio que falou com a minha voz
A dizer que era noite e é madrugada
A dizer que eras tu e somos nós

A dizer os mil rostos de Lisboa
Ao longo do teu rosto se te beijo
À luz de um pombo chamo Madragoa
E Bairro Alto ao mar se te desejo

Não disse nada, amor, juro, calei-me
Foi uma voz que ao longe se perdeu
Cuidei que era Lisboa e enganei-me
Pensei que éramos dois e sou só eu.

António Lobo Antunes

Thursday 1 November 2018

Sombra do desejo


Não vês a sombra do desejo
Furtiva em cada esquina do teu gesto
Não vês que tudo aquilo que em ti vejo
É tudo em que o amor é manifesto

Não vês que as mariposas no cabelo
E a rosa que em teus lábios se desnuda
Não vês que o teu olhar é o modelo
Das vinte madrugadas de Neruda

Não vês no teu sorriso fogo posto
Que lavra nos fados onde morei
Se não vês tudo isto no teu rosto
Perdoa meu amor porque sonhei.

João Monge

Tuesday 30 October 2018

Amália


Na tua voz há tudo o que não há
Há tudo o que se diz e não se diz
Há os sítios da saudade em tua voz
O passado o futuro o nunca o já
Há as sílabas da alma e há um país
Porque tu mais que tu és todos nós

Na tua voz embarca-se e não mais
Não mais senão o mar e a despedida
Há um rastro de naufrágio em tua voz
Onde há navios a sair do cais
Nessa voz por mil vozes repartida
Porque tu mais que tu és todos nós

Há mar e mágoa e a sombra de uma nau
A gaivota de O'Neill e o rio Tejo
Saudade da saudade em tua voz
Um eco de Camões e o escravo Jau
Amor Ciúme Cinza e Vão Desejo
Porque tu mais que tu és todos nós.

Manuel Alegre

Saturday 27 October 2018

Adriano


Não era só a voz o som a oitava
Que ele queria sempre mais acima
Nem sequer a palavra que nos dava
Restituída ao som de cada rima

Era a tristeza dentro da alegria
Era um fundo de festa na amargura
E a quase insuportável nostalgia
Que trazia por dentro da ternura

O corpo grande e a alma de menino
Trazia no olhar aquele assombro
De quem queria caber e não cabia

Os pés fora do berço e do destino
Pediu uma cerveja e poesia
E foi-se embora de viola ao ombro.

Manuel Alegre

Wednesday 24 October 2018

Preciso de espaço


Preciso de espaço
Para ser feliz
Preciso de espaço
Para ser raíz
Ter a rede pronta
Para o mar de sempre
Ter aves e sonho
Quando a terra escuta
E falar de amor
Aos tambores da luta

Ter palavras certas
No sol do caminho
E beber a rir
O doirado vinho
Misturar a vida
Misturar o vento
E nas madrugadas
Quando o povo abraço
Para estar contigo
Preciso de espaço

Preciso de espaço
Para ser feliz
Preciso de espaço
Para ser raíz
Caminhar sem ódio
Falar sem mentira
Ter meus olhos longe
Na luz d'uma estrela
E ser como um rio
Que se agita ao vê-la.

Vasco de Lima Couto

Sunday 21 October 2018

Dei-te um nome em minha cama


Dei-te um nome em minha cama
Aberta no meu Outono
Depois amei-te em silêncio
Que é uma forma de abandono

Dei-te um nome em minha cama
Rasgada em lençóis de sono
Tentei ser tudo o que era
No gesto da mão parada

Campo e corpo aberto ao vento
Que encaminha a madrugada
Tentei ser a Primavera
Mas chorei meu triste nada

Vi-te ao canto da memória
Por te viver e sonhar
Amor de amor sem glória
Como um rio ao começar
Que te veio contando a história
Onde eu não posso morar.

Vasco de Lima Couto

Thursday 18 October 2018

Tenho a Pátria num rosto de criança


Tenho a Pátria num rosto de criança
Que me pergunta porque estou alegre...
Ouve criança: são as ruas todas
Com a pureza que o passado deve

E fico a olhar-me e a olhar o reino aberto
Nas palavras caladas do lamento
Que fez a minha infância adormecida
A chorar, em silêncio, o pensamento

Horas perdidas nos regaços frios
Anos achados para te dizer:
O Sol começa agora a ter sentido,
E nós criança, vamos renascer.

Vasco de Lima Couto

Monday 15 October 2018

Vinha dizer adeus


Vinha dizer adeus mas reparei
Que na faia do pátio era Setembro
Vinha dizer adeus mas encontrei
Um livro na cadeira do alpendre

Vinha dizer adeus mas as maçãs
Estavam no forno a assar e esse cheiro
Fez-me parar na porta das manhãs
A relembrar o nosso amor inteiro

Vinha dizer adeus mas o teu cão
Veio lamber-me os dedos hesitantes
Vinha dizer adeus mas vi no chão
A manta ao pé do lume, como dantes

Vinha dizer adeus mas senti fome
Ao ver a mesa posta para dois
Dálias e o guardanapo com o meu nome
Sem ter havido o antes nem depois

Vinha dizer adeus mas que surpresa
À passionata… o último andamento
Como se tu tivesses a certeza
Que eu ia chegar nesse momento

Vinha dizer adeus mas nesse olhar
Vi tanta solidão, tantos abraços
Tantas amendoeiras ao luar
Que me escondi chorando nos teus braços

Vinha dizer que já não estou contigo
Que este amor singular já não é nosso
Vinha dizer adeus mas já não digo
Vinha dizer adeus mas já não posso!

Rosa Lobato de Faria

Friday 12 October 2018

Valsa


Ficámos finalmente meu amor
Na praia dos lençóis amarrotada
O mal que venha é sempre um mar menor
Sorriso de vazante na almofada

Se chamo som das ondas ao rumor
Dos passos dos vizinhos pela escada
É porque à noite acordo de terror
De me encontrar sem ti de madrugada

Qual a cor desta noite e de que dedos
São feitas estas mãos que não me dás
Ó meu amor a noite tem segredos
Que dizem coisas que não sou capaz.

António Lobo Antunes

Tuesday 9 October 2018

MINHA SENHORA DE MIM


Comigo me desavim
minha senhora
de mim
*
sem ser nem ser cansaço
nem o corpo que disfarço
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
*
nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços
*
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
*
recusando o que é desfeito
no interior do meu peito

Maria Teresa Horta

Saturday 6 October 2018

Sou barco


Sou barco abandonado
Na praia ao pé do mar
E os pensamentos são
Meninos a brincar.


Ei-lo que salta bravo
E a onda verde-escura
Desfaz-se em trigo
De raiva e amargura.

Ouço o fragor da vaga
Sempre a bater no fundo,
Escrevo, leio, penso,
Passeio neste mundo
De seis passos
E o mar a bater ao fundo.

Agora é todo azul,
Com barras de cinzento,
E logo é verde, verde,
Seu brando chamamento.

Ó mar, venha a onde forte
Por cima do areal
E os barcos abandonados
Voltarão a Portugal.

António Borges Coelho

Wednesday 3 October 2018

Dia 237


Abraço a água, rezo o terço, lavo o cesto, levo o resto, rasgo a raiva, travo a fala, atrevo a farpa, cravo o prego, prego o bem, bendigo o morto, mato a fome, enterro o medo, marco a cruz, mantenho o lume, acendo o escuro, abato o nome, risco a folha, abafo a falha, queimo a palha, passo a senha, salvo a réstea, ajeito a forca, forço o tempo, dobro o lenço, penso o vento, apresso o lento, ocupo o espaço, esqueço o gesso, armo o braço, lanço o dardo, caço o lince, espanto a caça, aqueço o tacho, habito a praça, aprendo à pressa, engano a moça, esquento a massa, visto a farda, afio a faca, esgoto a taça, bebo o lodo, lambo o lábio, invejo o sábio, odeio a mosca, rasgo o verso, puxo o laço, apanho o pássaro.

Joaquim Pessoa

Monday 1 October 2018

A uma Árvore


Recortada no azul
Vestindo as cores do outono
E abraçada pelo vento
— Uma árvore.

Desprendendo-se dos ramos,
Como pássaros cansados
Que já não sabem voar,
As folhas tombam no chão.

De verde se vestirá
Ao chegar a primavera.

Fazer, desfazer e refazer...
É esse o mágico ofício do Tempo.

Isaura Moreira

Sunday 30 September 2018

revolta


choro por nós,
mas não verto lágrimas.
cerro os dedos,
ambos os punhos
e choro revolta.

Miguel Tiago

Thursday 27 September 2018

- sem título -


a pior morte é a que nos deixa vivos.


Miguel Tiago

Monday 24 September 2018

Ao cair da noite


No banco do jardim, como numa sala de espera,
pergunta se alguém virá para a buscar, antes
que a noite chegue. E eu, do outro lado do tempo,
abro o caderno para lhe escrever: «Um dia
saberás o que disseram todas as cartas
que não abriste; e perante o vazio a que
a tua vida se resume, responderás que
pouco importa o tempo, quando a eternidade
te cobriu com a sua noite, há muito.»
Depois, vou ao correio. «Esqueceu-se
de pôr a morada», diz-me o empregado.
«Não sei para quem escrevo», digo-lhe.
E meto na caixa o envelope em branco
para que alguém, um dia, o descubra num
fundo de posta restante. E ao ler o que
lhe escrevi, talvez se sente num banco
de jardim, pouco antes da noite, pensando
no que é a vida em que todo o futuro se
fixa nesse instante que não chegou a ser.

Nuno Júdice

Friday 21 September 2018

Repouso


Esta manhã, quando acordei, e a tua imagem
se atravessou à minha frente, ainda olhei pela
janela, não fosse ter nascido da luz que entrava.
Depois, pensei que podia ter sido um pedaço de
sonho que se partiu durante a noite, quando
o atirei para o chão. Mas não vi
nada, à minha volta, como se uma imagem pudesse
ter desaparecido de um momento para o outro,
ou a noite nunca tivesse existido. Saí
de casa, atravessei a rua até ao café e, enquanto
o bebia, fechei os olhos. E a imagem voltou,
tão real que, quando olhei de novo para a frente,
a mesa vazia transformara-se num sofá onde
estavas estendida, em repouso, como se o dia todo
tivesse passado por ti, e a noite te envolvesse
com o seu peso branco.

Nuno Júdice

Tuesday 18 September 2018

Longe


Há uma gramática aberta
no teu corpo, e soletro cada palavra
que o teu olhar me oferece.

Limpo as sílabas que te
escorrem pelo rosto com um lenço de
vidro, descobrindo a tua transparência.

E sais de dentro de um pó de
advérbios, para que eu te dê um nome,
e a vida volte a correr por ti.

Nuno Júdice

Saturday 15 September 2018

Primavera


Tem na cabeça um curso de história de arte, mas
quando as flores começam a abrir à sua volta, e
os ramos da árvore se agarram a ela, como braços
obscenos, liberta-se das preocupações teóricas e
oferece o corpo à vista do pintor, para que ele
o transforme numa alegoria da manhã. Entre ela
e o seu corpo, então, surge um conflito que não
consegue resolver: será a mulher do quadro mais
real do que ela? E terão aquelas flores o perfume
que ela respira, enquanto espera que o pintor
termine o seu retrato? As ideias que lhe passam
pela cabeça esvaziam-na de sentimentos; e pode
olhar friamente para aquela situação, pensando
que o próprio pintor se limita a executar o
que vê. Mas aquilo que está em frente dele
é ela; e quando ele se cansa, pousa os pincéis,
e arruma a tela para o fundo do atelier,
resta-lhe vestir-se, receber o que ele lhe
deve, e voltar à sua vida. Porém, já não é
a mesma coisa; e não se esquece da mulher
deitada num canto, respirando o perfume de um
jardim que vai secando, com o tempo, e que
sabe mais do que ela sobre o que é o destino
de quem entregou o seu corpo a quem não soube
o que fazer com ele, depois de o pintar.

Nuno Júdice

Wednesday 12 September 2018

Ouvindo o pássaro


Às vezes, um pássaro parece cantar
para si próprio. Está na árvore, quando
o dia nasce, e a luz encontra-o
no meio da sombra. «Que manhã é esta,
pensa, em que o sol vem ter comigo
como se não houvesse mais ninguém
para o receber?» E saúda-o
com o seu canto, sem saber que
alguém o ouve, por trás dos arbustos,
e recolhe o que ele diz
para o dizer ao mundo.

Nuno Júdice

Sunday 9 September 2018

Olhando-se


O espelho enche-se com a tua
imagem; e queria tirá-lo da tua
mão, e levá-lo comigo, para
que o teu rosto me acompanhe
onde quer que eu vá.

Mas sem ti, o espelho
fica vazio; e ao olhá-lo, vejo
apenas o lugar onde estiveste, e
os olhos que os meus olhos procuram
quando não sei onde estás.

Por que não fechas os olhos
para que o espelho te prenda, e
outros olhos te possam guardar,
para sempre, sem que tenham de olhar,
no espelho, o rosto que eu procuro?

Nuno Júdice

Thursday 6 September 2018

Acordar


Um pássaro canta de fora da janela;
o sol da manhã despeja a sua luz
sobre o campo. Ela ocupa-se em nada,
como a libélula que procura
os filamentos de brilho na água
do charco. E a vida declina
na oblíqua sonolência dos seus olhos.

Nuno Júdice

Monday 3 September 2018

Regresso do baile


Falo de poesia pura, como se de pura
abstracção estivessem a tratar as mãos
que despem este corpo. E quando passo de um verso
a outro, sabendo que a imagem vai nascendo
deste movimento em que as palavras
dançam na página, limito-me a seguir
os dedos que abrem botão após
botão, e desfazem laço
após laço, até descobrirem o que
sabíamos que existia, sem nunca o ter visto:
o belo, na sua exacta proporção.

No centro do quadro, onde uma janela
se abre para o que é, talvez, uma paisagem,
o olhar distrai-se do significado que
o gesto constrói. E quem passa o limite,
e se confronta com a sombra, perde
a possibilidade de um regresso a este
instante luminoso, em que num simples
eco a música da noite se concentra,
enchendo os ouvidos que se habituaram
ao silêncio.

Por isso, espero que o trabalho
chegue ao fim, para que a mulher se volte,
e dê à dança o argumento
da sua nudez.

Nuno Júdice

Saturday 1 September 2018

MADRIGAL TÃO ENGRAÇADINHO



Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi
até hoje na minha vida,
inclusive o porquinho-da-Índia
que me deram quando eu tinha seis anos.


Manuel Bandeira

Thursday 30 August 2018

Bilhete


Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...


Mário Quintana

Monday 27 August 2018

SALAMARGO


Salamargo é o pão de cada dia;
pão de suor, amargonia.
Amargura por viver nesta agonia,
salamargando a tirania.


Salamargo é o tirano, segundo a segundo
amargo sal que salga o mundo.
Assassino das manhãs, carrasco das tardes,
ladrão de todas as noites
e de seu mistério profundo;
carcereiro de seu irmão, a transmudar
a fantasia em noite de alcatrão.

Amaro é fado de nascer escravo,
amargonauta em mar de sal,
nesta salsa-ardente irreal em que cravo
unha e dentes, buscando viver
como um bravo entre decadentes.

Salamargo, tão amargo quanto
o mais amargo sal, é comer
o pão de cada dia sob o tacão
da tirania. Um pão amargo,
sem sal, pobre de amor e fantasia.
Salamargo existir sem poesia.

Eduardo Alves da Costa,
no livro “No Caminho com Maiakóvski”

Friday 24 August 2018

falha astronómica


aquela poeta que te diz 
que o mais importante da poesia 
é falar verdade, não para terceiros
senão para o próprio
e percorres um caminho 
de anos-luz e relâmpagos 
algumas órbitas 
em torno do teu coração 
um pulsar um quasar
uma volta no ar 
um horizonte de eventos que nem a luz deixa escapar
tantas léguas tantas lágrimas tantas verdades
que nunca escolherás a certa.
 
Miguel Tiago

Tuesday 21 August 2018

De onde vem a cidade


Quando passeio à noite pela cidade recolhida em íntimo silêncio,
olho admirado as ruas e as árvores
e interrogo enigmático sobre os olhos cerrados dos homens citadinos
o serem eles o sentido disto tudo.

E penso nas formosas flores públicas plantadas para todos,
penso na janela clara aberta sobre o mar,
nas avenidas livres fechando junto ao céu....
então maciamente vou,
espantado de estar na vida a ser um homem
e a cumprir o tempo de ser grande,
descerrar as pálpebras descidas dos humanos irmãos emparedadas
e mostrar-lhes porque existem avenidas,
de onde vêm as casas e as fábricas
e porquê quando rente à madrugada
um pássaro cantando entre o cimento e as flores
na tenra primavera da cidade
pode encher de frescura e de sentido e vida.

Eduardo Valente da Fonseca.

Saturday 18 August 2018

Pausa


Sentada, de costas para mim, olhas
esse ponto em que todos os sonhos
se concentram; e a serenidade envolve-te
com o seu lençol efémero, para que
não penses em mais nada.

Nuno Júdice

Wednesday 15 August 2018

Trânsito


Ao voltar a casa, com o rádio do carro
aberto, lembrei-me de ti, com o cabelo apanhado,
o alfinete de dama a prender-te o vestido,
que podia ser uma farda, e o teu rosto
dividido: de um lado, a luz da vida,
do outro, a obscuridade que o flash do
fotógrafo não conseguiu resolver. Posso
dizer-te que amo os teus olhos, e que
muitas vezes os atravessei para descobrir
o outro lado da alma, onde se esconde
o que os teus lábios não revelam. Um
dia, porém, perguntar-te-ei: quem és?
E talvez saias da sombra, abrindo-me
um sorriso que me empurrará para
a outra margem que não conheço. Servir-me-ás
de guia? Ou voltarás para o teu canto,
desapertando o alfinete de dama que
sempre te incomodou. O rádio do carro
continua aberto, com as notícias do dia;
mas o que quero saber é o que tens
para me contar, e o tempo apagou.

Nuno Júdice

Sunday 12 August 2018

Ninfa apanhada no bosque


Por que se despe? Ou por
que se veste? Entre um e outro
movimento, é o corpo que
se oferece. A quem? Para
quê? Não se sabe quem
a merece: fauno à deriva
em campos sem ninguém,
ou amante perdido
à sua mercê. É para ti
que ela olha? Ou para
mim, que a pinto? No seu
pedaço de campo, talvez
me acolha; e se disser
que não a quero, minto.

Nuno Júdice

Thursday 9 August 2018

Distância


Entro no teu quarto, como se
entrasse no mar. Um temporal de perguntas
enrola os teus cabelos. Lanças-te
contra as ondas de um sonho antigo,
e abres a porta da varanda
para te sentares à cadeira
do oriente, apanhando o vento
da tarde. «Não te levantes, digo,
e deixa que os teus olhos se libertem
de sombra, depois de uma noite
de amor, para me abrigarem
da luz estéril da madrugada.» Mudas
de posição, como se me tivesses
ouvido; e o teu corpo enche-se
de palavras, como se fosses
a taça da estrofe.

Nuno Júdice

Monday 6 August 2018

Nau dos Corvos


Nau parada de pedra que tanto navega
e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar
nau só a ocidente e todo o mar em frente
condensada insolência intemerato desafio
a mundos devassados mas desconhecidos
corvos de água e de vento aves feitas de tempo
que tão completamente são dois olhos côncavos
e fitos só nas coisas que importam verdadeiramente
nave que sulca não as águas mas os dias
navio de carreira entre o tempo e a eternidade
num espaço onde um simples segundo tem a minha idade
pedra que só aqui se liquefaz
água que só aqui solidifica
cais quente coração de corvos
vistos por quem nunca antes vira a solidão caber
em tão poucos centímetros quadrados
do mínimo de corpo necessário para a vida se afirmar
ó nau navio corvos pedra água cais
aqui estou eu sozinho todos os demais ficaram para trás
Aqui nada decorre e nada permanece
aqui os corvos são a solidão multiplicada
consistente conglomerada mas estilhaçada
unificada mas feita em bocados
De todos estes bicos curvos extremo ósseo dos corvos
onde depois os corvos passam a ser pedra e depois água
sai uma voz vasto discurso cada vez
Os corvos são a pedra menos pétrea de cabo
é nos corvos que o mar deixa de ser marítimo
Nesta nau se efectua esse comércio secular
da terra feita pedra com a água mais doméstica do mar
A névoa envolve e como que enovela os corvos
a rocha é um buliçoso e anárquico aeroporto
donde em cada momento sai um corvo
aéreo ante cujo vulto que levanta eu me curvo
O moreira baptista decerto gostaria que os corvos
se não os palradores os que ganham prémios literários
pelo menos os rudes negros os incultos mas os verdadeiros corvos
poisassem sempre no mais alto do rochedo
mas quando no inverno sopra o vento norte
e sentem frio poisam nalguma parte baixa para o lado sul
e estão-se marimbando para a propaganda
de um país vendido que eles não compraram
eles humildes corvos aves e não peixes nunca tubarões
Só aqui podem ver-se às vezes coisas invisíveis
o infinito aqui começa a acabarem nenhum outro sítio se ouve tanto o inaudível
nem assim se define o que não tem definição
Deste porto se parte para mais que transatlânticas viagens
e em tão poucos segundos é difícil ver tantas imagens
Ninguém é cidadão deste tão pétrea pátria
nem mesmo há quem mereça aqui poisar só por instantes a cabeça
até que a prostração mais funda no total desapareça
Permite ó nau petrificar aqui
a minha sensação mais passageira
ou o meu mais instável pensamento
Eu nunca até agora e já sou velho vi
quebrar assim o tempo como quebra em ti
Que aqui o sol escureça e a noite que amanheça
neste morrer da terra onde uma vida sem cessar começa
Que após ter visto a nau mais náutica de todas essas naus
que sulcaram os inumeráveis séculos oceânicos
feitos tanto de tempo como de água
finalmente me fosse lícito fechar
definitivamente os olhos que apesar de tanto olhar
não conseguem optar entre a pedra e o mar
E só agora findas as palavras eu pressinto
pela primeira vez haver algum poema
por detrás do poema pura coisa de palavras

Ruy Belo

Friday 3 August 2018

- sem título -


tantas palavras os olhos
trementes.



o sol a pôr-se, lançando sobre os campos a incerteza

de amanhã,

e as últimas sombras de um castelo.


Miguel Tiago

Wednesday 1 August 2018

agosto


sinto a espuma espalhar-se no ar,
mar.
e o corpo a clamar pela noite,
brisa.

Miguel Tiago

Monday 30 July 2018

Dia 63


Sobrou a minha culpa. Agora resta ouvir o que tenho para me dizer.  Estou ofendido comigo mesmo.  Noite e dia, a qualquer hora, procuro libertar-me desse arbusto escuro que tenho enraízado no coração e, ao longo do cansaço, praticar a lição mais humilde, como a do camponês que sabe que se estafa por uma colheita pobre.  Por enquanto, a esperança é como um cenário pintado, frágil, perdido no tempo.
Mais luz, mais luz, em vez de ar. Preciso apenas de luz para viver, para respirar-te.  Esvoaçam na minha lembrança os teus dedos iluminados e, sobre a minha pele, pequenos pássaros brancos afastam-se a caminho do sul.
Há veredas no vento que ainda se lembram de nós, permanecem perfumadas com os nossos corpos e surpreendidas com os nossos beijos. Mas sinto-me agora prisioneiro, com o peso da culpa estatelando-me de costas contra a terra, fixando a noite e o céu, procurando os contornos do teu rosto, que não consigo enxergar.
Já não te encontro em mim, nem longe de mim. Não é mais que um pequeno consolo, constatar que as estrelas têm um sorriso parecido com o teu.

Joaquim Pessoa

Friday 27 July 2018

Para sempre


Espero-te na foz do rio, onde desaguas. É lá que me encontro. De olhar pousado no futuro. De corpo inteiro. Não te esqueças que todos os rios desaguam no mar. Não importa quanto tempo levam, mas é no mar que desaguam. Onde eu te espero, rio que és. No mar onde o silêncio é interrompido pelas ondas que se desfazem no areal. Que posso ser eu, ou tu. Ou todos nós.
Percorri todos os cais e não te vi. Talvez tivesse passado a desoras. Mas foi o meu tempo. Vento meu onde respiro. Não me inquietam as ausências. Inquietam-me as presenças. As ausências são suaves, as presenças são sangue fervente que me corre (ainda) nas veias. As noites são a minha companhia, manto de estrelas que recolho a cada madrugada. Deixo fluir as águas de mim que correm como ribeiro e um dia serão rio e chegarão ao mar. É lá que pouso o meu olhar, sempre. É no mar que te vejo, que te sinto, que te amo. É no mar que me devolvo a vida. Numa chegada de ficar. Para sempre.

MM

Tuesday 24 July 2018

Uma vez que já tudo se perdeu


Que o medo não te tolha a tua mão
Nenhuma ocasião vale o temor
Ergue a cabeça dignamente irmão
falo-te em nome seja de quem for


No princípio de tudo o coração
como o fogo alastrava em redor
Uma nuvem qualquer toldou então
céus de canção promessa e amor

Mas tudo é apenas o que é
levanta-te do chão põe-te de pé
lembro-te apenas o que te esqueceu

Não temas porque tudo recomeça
Nada se perde por mais que aconteça
uma vez que já tudo se perdeu

Ruy Belo

Saturday 21 July 2018

Alegria


Alegria é este pássaro que voa
da minha boca à tua. É esse beijo.
É ter-te nos meus braços toda nua.
Sentir-me vivo. E morto de desejo.

Alegria é este orgasmo. Esta loucura
de estar dentro de ti. E assim ficar.
Como se andasse perdido e à procura
de possuir-te.
E possuir-te devagar...

Joaquim Pessoa

Wednesday 18 July 2018

*


É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações.


Eugénio de Andrade

Sunday 15 July 2018

sem título


muitos gatos
ao redor do eclipse
e uma chama ondulando numa bandeira
à beira do mar
nas mãos de uma criança de olhos vadios
joelhos rotos
e ganas de comandar um exército
capaz de marchar sobre as ondas
em noites de vendaval

guerreiros que nos resgatam
dos túmulos onde morremos.

Miguel Tiago, 2017

Thursday 12 July 2018

A QUEIMADA


A erva daninha era o escalracho.
NÓS o arrancámos.
Depois botámos fogo à planície.
Nada houve tão necessário
desde o fundo dos tempos.
Cresceram chamas até aos astros
e o clamor da nossa voz
foi um cântico de certeza
na boca do vento.

Agora o nosso olhar possui a planície.
NÓS trazemos as águas,
NÓS trazemos o arado e as sementes
e suamos sangue:

Irmãos, a planície é nossa!

Papiniano Carlos

Monday 9 July 2018

Bilhete


Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...


Mário Quintana

Friday 6 July 2018

DOENÇA URGENTE


Sentes uma dor?
A dor aumenta?
Os médicos na América não são chamados,
não visitam ninguém. O teu médico
de família, se lhe pedires que te acuda,
responde-te que vás para o hospital.
Vais para o hospital.
Ninguém te conhece,
ninguém te ouve,
ninguém te pergunta nada.
Sentes uma dor?
Continuarás a senti-la
enquanto os exames, as análises, as conferências
(previamente verificado o valor dos teus
seguros de saúde e a tua conta bancária)
se sucedem.
A dor aumenta?
Gritas?
Acabas por calar-te?
Morres?
Os exames deram um diagnóstico correcto
que tecnicamente não poderia ter sido dado antes
- e a tua família não pode processar
ninguém pelo facto de teres morrido.
Apenas poderá mandar a conta à
companhia de seguros.

Jorge de Sena

Tuesday 3 July 2018

Como uma flor vermelha



À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Sunday 1 July 2018

Túmulo de Lorca


Em ti choramos os outros mortos todos
Os que foram fuzilados em vigílias sem data
Os que se perdem sem nome na sombra das cadeias
Tão ignorados que nem sequer podemos
Perguntar por eles imaginar seu rosto
Choramos sem consolação aqueles que sucumbem
Entre os cornos da raiva sob o peso da força

Não podemos aceitar. O teu sangue não seca
Não repousamos em paz na tua morte
A hora da tua morte continua próxima e veemente
E a terra onde abriram a tua sepultura
É semelhante à ferida que não fecha

O teu sangue não encontrou nem foz nem saída
De Norte a Sul de Leste a Oeste
Estamos vivendo afogados no teu sangue
A lisa cal de cada muro branco
Escreve que tu foste assassinado

Não podemos aceitar. O processo não cessa
Pois nem tu foste poupado à patada da besta
A noite não pode beber nossa tristeza
E por mais que te escondam não ficas sepultado

Sophia de Mello Breyner Andresen

Saturday 30 June 2018

Tantos anos


Tantos anos depois
meu amor
tanta paixão
*
tanto fogo de chama
acicatada
*
tanto desejo
meu amor
pelo teu corpo
*
nesta entrega
de nós
inseparável

*

Maria Teresa Horta

Wednesday 27 June 2018

Êxtase e Perdição


Sempre
que me despia
eu vestia a desmesura
*
entretecendo o prazer
da vertigem
com a loucura
*
na minha entrega
sem pressa
de êxtase e perdição
*
Sempre
que me despia
eu vestia o coração

*

Maria Teresa Horta

Sunday 24 June 2018

Voamos


Voamos a lua
menstruadas
*
Os homens gritam:
- são as bruxas
*:
As mulheres pensam:
- são os anjos
*
As crianças dizem:
- são as fadas

*

Maria Teresa Horta

Thursday 21 June 2018

No lençol da minha página


Faço poesia erótica
quando me deito contigo
no lençol da minha página
*
ao escrever o infinito
*
A iludir a vertigem
da paixão que eu persigo
sem confessar o desejo
*
de fazer amor contigo

*

Maria Teresa Horta

Monday 18 June 2018

VIAGEM



Desejo-te que mordas
o meu pulso
desejas-me ir tocar o cotovelo
*
Entreabres-me as pernas
tão de súbito
e devagar afagas-me os cabelos
*
Debruças-te sobre a boca que tão ávida
se abre no meu corpo
e ao descê-lo
*
Vais nadando de bruços
e na viagem
preferes morrer de amor do que perdê-lo

*

Maria Teresa Horta

Friday 15 June 2018

A las cinco de la tarde


Eran las cinco en punto de la tarde.
Un niño trajo la blanca sábana
a las cinco de la tarde.
Una espuerta de cal ya prevenida
a las cinco de la tarde.
Lo demás era muerte y sólo muerte
a las cinco de la tarde. 


El viento se llevó los algodones
a las cinco de la tarde.
Y el óxido sembró cristal y níquel
a las cinco de la tarde.
Ya luchan la paloma y el leopardo
a las cinco de la tarde.
Y un muslo con un asta desolada
a las cinco de la tarde.
Comenzaron los sones de bordón
a las cinco de la tarde.
Las campanas de arsénico y el humo
a las cinco de la tarde.
En las esquinas grupos de silencio
a las cinco de la tarde.
¡Y el toro solo corazón arriba!
a las cinco de la tarde.
Cuando el sudor de nieve fue llegando
a las cinco de la tarde
cuando la plaza se cubrió de yodo
a las cinco de la tarde,
la muerte puso huevos en la herida
a las cinco de la tarde.
A las cinco de la tarde.
A las cinco en Punto de la tarde.

Un ataúd con ruedas es la cama
a las cinco de la tarde.
Huesos y flautas suenan en su oído
a las cinco de la tarde.
El toro ya mugía por su frente
a las cinco de la tarde.
El cuarto se irisaba de agonía
a las cinco de la tarde.
A lo lejos ya viene la gangrena
a las cinco de la tarde.
Trompa de lirio por las verdes ingles
a las cinco de la tarde.
Las heridas quemaban como soles
a las cinco de la tarde,
y el gentío rompía las ventanas
a las cinco de la tarde.
A las cinco de la tarde.
¡Ay, qué terribles cinco de la tarde!
¡Eran las cinco en todos los relojes!
¡Eran las cinco en sombra de la tarde!

Federico García Lorca

Tuesday 12 June 2018

SON(H))O


é nas sombras da noite que respira
entre o sono e o sonho a tua imagem
não sei se parte ou chega de viagem
e não sei se é verdade ou se é mentira


sei que tu vens nas horas mais ansiosa
e que é dentro de mim que te insinuas
e sei que a noite derramou as suas
golfadas de luar sobre estas rosas

e há nelas os enganos de que falo
em pétalas de fogo e de ilusão,
pulsando no bater do coração
quando não há ninguém para escutá-lo,

nesse rumor tão triste me reduz
(não digas nada, meu amor, eu sei)
à minha solidão a tua lei...
e as rosas são de música e de luz

Vasco Graça Moura

Saturday 9 June 2018

Os Amigos


Voltar ali onde
A verde rebentação da vaga
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
Guardam intacta a impetuosa
Juventude antiga -
Mas como sem os amigos
Sem a partilha o abraço a comunhão
Respirar o cheiro a alga da maresia
E colher a estrela do mar em minha mão

Sophia de Mello Breyner Andresen

Wednesday 6 June 2018

A Federico García Lorca


Sobre teu corpo, que há dez anos
se vem transfundindo em cravos
de rubra cor espanhola,
aqui estou para depositar
vergonha e lágrimas.

Vergonha de há tanto tempo
viveres — se morte é vida —
sob chão onde esporas tinem
e calcam a mais fina grama
e o pensamento mais fino
de amor, de justiça e paz.

Lágrimas de noturno orvalho,
não de mágoa desiludida,
lágrimas que tão-só destilam
desejo e ânsia e certeza
de que o dia amanhecerá.

(Amanhecerá.)

Esse claro dia espanhol,
composto na treva de hoje
sobre teu túmulo há de abrir-se,
mostrando gloriosamente
— ao canto multiplicado
de guitarra, gitano e galo —
que para sempre viverão
os poetas martirizados.

Carlos Drummond de Andrade

Sunday 3 June 2018

Mulheres do Alentejo


Mulheres do Alentejo
Com papoilas nos olhos
São primaveras erguidas
Contra os bastões contra as balas
Oculto o rosto
Seus negros chapéus descidos
Frene ao sol
O claro choro nas mãos
Com bagos de amanhã.
São cor de terra
Cor de trabalho
Cor da habituação à dor.
Nossa Pátria do sofrimento
E do valor
Meu sinal de luz
Em toda a palavra que escrevo
Meu território do regresso e do futuro
Minha praia de secura
Percorrida pelo ódio e pelo pânico
Eis o ardente povo torturado
Esperança viva de um sonho feito carne
Mulheres searas fontes azinheiras
Nossa esperança, ainda em flor e fruto
No vermelho das feridas deste País de Abril

Urbano Tavares Rodrigues

Friday 1 June 2018

A Federico García Lorca



Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada
quem senão eu, te cantará primeiro. Quem senão eu
pontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu
que bebi na tua boca a fúria de umas águas
eu, que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei
porque dizias: “amor de mis entrañas, viva muerte”.
Ah! Se soubesses como ficou difícil a Poesia.
Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE.
E mais um tempo, nem será lícito ao poeta ter memória
e cantar de repente: “os arados van e vên
dende a Santiago a Belén”.


Os cardos, companheiro, a aspereza, o luto
a tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo:
deglutindo a palavra cada vez e cada vez mais fundo.
Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão:
Mas se está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebram
Se tu cantas! ESTÁS MORTO. Sabes por quê?

“El passado se pone
su coraza de hierro
y tapa sus oídos
con algodón del viento.
Nunca podrá arrancársele
un secreto.”

E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos
azuis, braços e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados
de infância, de plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão.
Companheiro. Que dor de te saber tão morto.

Hilda Hilst
 “Poemas aos homens de nosso tempo”

Wednesday 30 May 2018

Areia por entre os dedos


Descalço corri
desertos marés palavras e ventos
só para te ver
formosa duna
estavas de vigília em vão
colar de limos ao pescoço
quase vegetal nas areias
O mar já tinha invadido
os teus barcos mais restritos
a luz ardia na praia
os nossos barcos preferidos
Descalço corri
só para te ver
formosa duna
estavas a dormir silvestre
no chão das memórias
areia
tão livre de fronteiras
por entre os dedos

eufrázio filipe

Sunday 27 May 2018

No princípio dos pássaros


Nunca foi importante
salvar o mundo
construir poemas
com palavras ininteligíveis

saber se és vento
barco relâmpago
mulher incerta
metáfora
escarpa
ou flor de estação

importante é quando passas
corpo de seara
sem magoar os cravos

e dulcíssima te desfolhas

Sempre me apaixonei
por esta desordem de cores
quando passas

não pelos teus passos
mas pela sua leveza
como no princípio dos pássaros


Eufrázio Filipe

Thursday 24 May 2018

Cadeiras vazias


Em cardume
nos olhos dos peixes
lá estavam os pescadores

Na véspera dos relâmpagos
e outros afectos
dulcíssimos corações
clareavam as noites
e nós só podíamos fazer
o que fizémos

sentámos à mesa
os ausentes
levitámos em voz alta
o sussurro das marés
recolhemos metáforas
e algumas estrelas
no chão das águas

soltámos um grito

celebrámos as cadeiras vazias


eufrázio filipe

Monday 21 May 2018

Domingo no campo

Aos domingos, quando os sinos tocam
de manhã, o que neles se toca é a manhã,
e todas as manhãs que nessa manhã
se juntam, com os dias da infância que
nunca mais acabavam, as casas da aldeia
de portas abertas para quem passava,
as ruas de terra batida onde as carroças
traziam as coisas do campo, os cães que
corriam atrás delas, uma crença no sol
que parecia ter expulso todas as nuvens
do céu, e a eternidade desses domingos
que ficaram na memória, com o ressoar
dos sinos pelos campos para que todos
soubessem que era domingo, e não havia
domingo sem os sinos tocarem a lembrar,
a cada badalada, que os domingos não
são eternos, e que é preciso viver cada
domingo como se fosse o primeiro, para
que o toque dos sinos não dobre por
quem não sabe que é domingo.

Nuno Júdice

Friday 18 May 2018

Luta de classes: O quarto poder


Na primeira hipótese, há uma causa
que obriga a multidão a avançar pela rua,
sabendo o que tem pela frente. As suas vozes
esperam que alguém as acorde com uma fórmula
que dê sentido ao seu movimento; mas
nem isso é preciso, quando olhamos o conjunto
e encontramos uma lógica que
determina cada passo.
Na segunda hipótese, a expressão do rosto
transporta uma decisão que ultrapassa o objectivo
do grupo. Poderia falar-se de uma metafísica
colectiva, e recorrer à dialéctica do Hegel para
descobrir esta violência serena que antecede
o grande combate que o filósofo descreveu como
simples antítese. A abstracção do raciocíonio
liberta-nos da realidade.
O que não vemos é o que está à sua
frente, e nunca tem rosto. A devastação
do mundo é, no fundo das coisas, a terceira
hipótese, mesmo quando uma planta ainda nasce
no terreiro vazio, depois da batalha.

Tuesday 15 May 2018

Luta de classes: Movimento de massas


Na sua definição de um movimento de massas,
marx não viu a individualidade do sujeito, nem
a sua realidade única, como se a pessoa não fosse mais
do que uma peça no conjunto que poderia viver
sem ela, substituindo-a quando fosse preciso. Mas
ao olhar os rostos que fazem parte da multidão,
encontro as diferenças que nascem de cada vida, com
aquilo que as distingue, do nascimento à morte. Dentro
do grupo, porém, essas diferenças esbatem-se: e
se a multidão é a tese, cada um desses corpos
representa uma antítese que leva consigo
o problema que a dialéctica não resolve: dramas
e alegrias que não existem para além deles,
e que ouço quando me aproximo de cada rosto,
como se a tese nascesse de uma surpresa nos olhos,
ou na inesperada confidência de um sentimento. Mas
marx não precisava de saber o que havia na cabeça
de cada um para definir o pensamento colectivo;
e a revolução rolou pelos impérios, levando atrás
dela os destinos de que nada sabemos.

Saturday 12 May 2018

Luta de classes: O campesinato



 A chave do campo está na mão das mulheres
que o lavraram, desfazendo os nós do inverno
com a exactidão da pá. Vi estas mulheres no
grande caminho da História, perdendo as suas
vidas em cada nova colheita. O sol tisnou
a sua pele; o frio enrugou os seus rostos. À
noite, quando o vento batia nas janelas
de madeira, os seus olhos atravessavam
a treva e perdiam-se em destinos que
não conheciam, como se tivessem outra
saída. Ouvi as suas queixas no murmúrio
das árvores que as abrigaram; e vi os
seus corpos deitados nas igrejas, sem
ninguém que os velasse, a caminho da vala
comum. Amei-as, sem que o soubessem;
e ouço o ruído das pás na terra, quando os
seus rostos me atravessam a memória,
e o inverno cai sobre a lama dos campos.

Nuno Júdice

Wednesday 9 May 2018

Dia 146.


Era uma vez duas vezes. E como nunca há duas sem, três, algum
castigo tens guardado para mim. Não sei se me roubarás os livros,
se me esconderás os melros, se me negarás os beijos.
Alguma coisa destas tu farás.
Podes roubar-me os livros.
Hei-de recuperá-los, verso a verso, como a aranha que reconstrói
a teia, como o pensamento que reconstrói a ideia, como o vento que reconstrói a duna.
Podes esconder-me os melros.
Saberei cantar. Darei asas à minha esperança para a ver poisar em
todos os verdes, brilhar em todos os muros, debicar todos os desejos.
Não me negues os beijos.
Morrerei de fome. E de sede. E de saudade.
Morrerei de te ver e não te ter.
Morrerei de não morder a tua boca.
Morrerei de não viver.
Morrerei.


Joaquim Pessoa

Sunday 6 May 2018

A velha juventude


Não caio, mesmo que as forças me faltem,
cruzo-me com a tarde e com o assombro do mar
onde o meu coração aguardará a noite como as aves
nos ninhos construídos no interior da falésia.


Será uma noite surpreendente, uma noite sem ti,
porque será mais noite ainda, sem aquele brilho azul
que só as nossas noites tinham. E eu sinto-me vazio
como uma criança que fugiu de casa e não sabe voltar.

O meu olhar é uma pedra acesa na tua recordação,
a minha carne sente a falta da tua, e nas minhas mãos
o sol deixa os últimos raios de âmbar, as tímidas marcas
que os meus dentes costumavam gravar na tua pele.

Quando a noite vier fechar as suas portas,
lembrar-me-ei do interior da nossa casa, quando
esperava por ti, doente de esperar, mas fascinado
como só poderia sentir-se um amante faminto.

Caminho e não caio, mesmo que me faltem
as forças que me trouxeram para longe de ti. Sou
esse velho amante cheio de juventude, a quem a vida
não quis renovar mais que os próprios versos.

Joaquim Pessoa

Thursday 3 May 2018

Congresso Internacional do Medo



Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.


Carlos Drummond de Andrade

Tuesday 1 May 2018

abril


abril

seremos maio até que abril vença.

Miguel Tiago

Monday 30 April 2018

Recurso


Apenas quando as lágrimas me dão
um sentido mais fundo ao teu segredo
é que eu me sinto puro e me concedo
a graça de escutar o coração.

Logo a seguir (porquê?), vem a suspeita
de que em nós dois tudo é premeditado.
E as lágrimas então seguem o fado
de tudo quanto o nosso amor rejeita.

Não mais queremos saber do coração,
nem nos importa o que ele nos concede,
regressando, febris, àquela sede
onde só vale o que os sentidos dão.

David Mourão-Ferreira

Friday 27 April 2018

O meu é teu


O meu é teu. O teu é meu
e o nosso é nosso quando posso
dizer que um dente nos cresceu
roendo o mal até ao osso.

O teu é nosso. O nosso é teu.
O nosso é meu. O meu é nosso.
E tudo o mais que aconteceu
é uma amêndoa sem caroço.

Dizem que sou. Dizem que faço.
Que tenho braços e pescoço
- que é da cabeça que desfaço,
que é dos poemas que eu não ouço?

O meu é teu. O teu é meu.
E o nosso, nosso quando posso
olhar de frente para o céu
e sem o ver galgar o fosso.

Mas tu és tu e eu sou eu
Não vejo o fundo ao nosso poço,
o meu é meu dá-me o que é teu
depois veremos o que é nosso.

Ary dos Santos

Tuesday 24 April 2018

Creio


Creio nos anjos
que andam pelo mundo
Creio na deusa
com olhos de diamantes
Creio em amores lunares
com piano ao fundo,
Creio nas lendas,
nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho
que falta mais fecundo
De harmonizar
as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno
num segundo,
Creio num céu futuro
que houve dantes,

Creio nos deuses
de um astral mais puro,
Na flor humilde
que se encosta ao muro
Creio na carne
que enfeitiça o além

Creio no incrível,
nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo
pelas rosas,
Creio que o amor
tem asas de ouro.

Amén.

Natália Correia

Saturday 21 April 2018

Sempre que tu vens é Primavera


Aqui, em Portugal, donde partiste
No tempo da coragem de lutar
Em cada terra os ventos te murmuram
E as cartas da ausência te procuram
Para que venhas ver o teu lugar

Há um banco debaixo da videira
Que espreita a sombra que outra sombra dera
E há um rio a contar á sua margem
Que te chama do longe da viagem
Pois sempre que tu vens é Primavera

Ficou no cais do céu um lenço branco
Ou numa estrada a curva do horizonte
E uns olhos de mulher contam as horas
Nos pinheiros que sentem que demoras
Nas silvas do caminho ao pé da fonte

Vem ter aquela estrela que deixaste
E essa roseira no jardim que espera
E traz os filhos que te são raíz
Para que sintam o sol do seu país
Pois sempre que tu vens é Primavera.

Vem guardar o tempo na cidade que te espera
Guardar o sol e o mar no vento da amizade
Pois sempre que tu vens é Primavera.


Vasco de Lima Couto

Wednesday 18 April 2018

Começar de novo


Esta gaivota que vai
Seguindo o navio
Este céu que despreza a morte
Esta luz, este rio

Tudo num sonho que apenas
Foi desenhado
Para eu aprender de novo
A viver a teu lado

Dentro de nós temos nós
De seguir a lição
Desta luz que a manhã
Nos oferece novamente

Dentro de nós vai o mundo
Tornar-se canção
É preciso que tudo
Comece novamente

Vento no rosto
E tanto sol nos meus braços
Tanto sol que depois te cerca
A travar os teus passos

Tudo num sonho
Que foi assim desenhado
Para tu começares de novo
A viver a meu lado.

David Mourão-Ferreira

Sunday 15 April 2018

Fogo preso


Quando se ateia em nós um fogo preso,
O corpo a corpo em que ele vai girando
Faz o meu corpo arder no teu aceso
E nos calcina e assim nos vai matando

Essa luz repentina
Até perder alento,
E então é quando
A sombra se ilumina,
E é tudo esquecimento,
Tão violento e brando

Sacode a luz o nosso ser surpreso
E devastados nós vamos a seu mando,
Nessa prisão o mundo perde o peso
E em fogo preso à noite as chamas vão pairando

E vão-se libertando
Fogo e contentamento,
A revoar num bando
De beijos tão sem tento
Que não sabemos quando
São fogo, ou água, ou vento

A revoar num bando
De beijos tão sem tento,
Que perdem o comando
Do próprio esquecimento.

Vasco Graça Moura

Thursday 12 April 2018

Gritava contra o silêncio


Gritava como se estivesse só no mundo,
como se tivesse ultrapassado
toda a companhia e toda a razão
e tivesse encontrado a pura solidão.
Gritava contra as paredes, contra as pedras,
contra a sombra da noite.

Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão,
como se o seu desespero e a sua dor
brotassem do próprio chão que a suportava.
Erguia a sua voz como se quisesse atingir com ela
os confins do universo e aí,
tocar alguém, acordar alguém, obrigar alguém a
responder.
Gritava contra o silêncio.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Monday 9 April 2018

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carneiro

Friday 6 April 2018

Lírio Roxo


Viajei por toda a terra
Desde o norte até ao sul;
Em toda a parte do mundo
Vi mar verde e céu azul

Em toda a parte vi flores
Romperem do pó do chão
Universais, como as dores do mundo
Que em toda a parte se dão

Vi sempre estrelas serenas
E as ondas morrendo em espuma
Todo o sol, um sol apenas,
E a lua sempre só uma

Diferente de quanto existe
Só a dor que me reparte
Enquanto em mim morro triste
Nasço alegre em toda a parte.

António Gedeão

Tuesday 3 April 2018

Era a noite que caía


Era a noite que caía
E na sombra recolhia
O voo das andorinhas.
Era a voz que se calava,
Era a dor de ver que estava
Sem as tuas mãos nas minhas

Eram passos que escutei,
Que eram teus ainda pensei,
Iludiu-me o coração.
Foram pela rua escura
Longe da minha amargura
E acompanhei-os em vão

Fiquei perto da janela,
Pus-me a abri-la com cautela,
Fiz disfarce da cortina.
Vi então na luz incerta
Que a rua estava deserta
E deserta estava a esquina.

Era só eu na escuridão,
Era no peito um rasgão,
Era já no céu a lua,
Que me importa?, á minha porta
A sombra que se recorta
Bem pode ainda ser a tua.

Vasco Graça Moura

Sunday 1 April 2018

Soneto


Não pode Amor por mais que as falas mude
exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção concede
é tão mesquinho o tom que o desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,
magoado parecer os olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais excede
não pode ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arredeio,
também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,
em verdade, em beleza, em doce enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde.


António Gedeão

Friday 30 March 2018

Vem, não te atrases


Quando te apressas
E me confessas
Que está na hora,
Eu não te digo
Que é um castigo
Ver-te ir embora

Finjo que a dor
Que sei de cor
Pouco me importa
Mas, mal me deixas,
Sinto que fechas
Para sempre a porta

Vem, não te atrases
O que fazes
Sem mim, a esta hora?
Volta para os meus braços,
Eu já esperei demais
Vem, não te atrases,
Eu perdoo-te a demora
Se morares nos meus abraços
E nunca mais me deixares

Quando tu partes,
Faltam-me as artes
Para te prender
Mas, se não estás,
Não sou capaz
De adormecer

Acendo estrelas
Pelas janelas
Da casa fria
Mas, se não chegas,
Sinto-me às cegas
Até ser dia.

Maria do Rosário Pedreira

Tuesday 27 March 2018

Anda, vem...


Anda vem..., porque te negas,
Carne morena, toda perfume?
Porque te calas,
Porque esmoreces,
Boca vermelha --- rosa de lume?

Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.

Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!

E ouve, mancebo alado:
Entrega-te, sê contente!
--- Nem todo o prazer
Tem vileza ou tem pecado!

Anda, vem!... Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos...
Tenho saudades da vida!
Tenho sede dos teus beijos!

António Botto

Saturday 24 March 2018

Parolagem da Vida


Como a vida muda.
Como a vida é muda.
Como a vida é nuda.
Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.
Tudo que se perde
mesmo sem ter ganho.
Como a vida é senha
de outra vida nova
que envelhece antes
de romper o novo.
Como a vida é outra
sempre outra, outra
não a que é vivida.
Como a vida é vida
ainda quando morte
esculpida em vida.
Como a vida é forte
em suas algemas.
Como dói a vida
quando tira a veste
de prata celeste.

Como a vida é isto
misturado àquilo.
Como a vida é bela
sendo uma pantera
de garra quebrada.
Como a vida é louca
estúpida, mouca
e no entanto chama
a torrar-se em chama.
Como a vida chora
de saber que é vida
e nunca nunca nunca
leva a sério o homem,
esse lobisomem.
Como a vida ri
a cada manhã
de seu próprio absurdo
e a cada momento
dá de novo a todos
uma prenda estranha.
Como a vida joga
de paz e de guerra
povoando a terra
de leis e fantasmas.
Como a vida toca
seu gasto realejo
fazendo da valsa
um puro Vivaldi.

Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida
em flor e formiga
em seixo rolado
peito desolado
coração amante.
E como se salva
a uma só palavra
escrita no sangue
desde o nascimento:
amor, vidamor!

Carlos Drummond de Andrade

Wednesday 21 March 2018

*


É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações.


Eugénio de Andrade,
in "Os sulcos da sede"

Sunday 18 March 2018

Pele


Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser a pele da minha pele?

Cintilação de luas
assim que te desnudas
às escuras

Diante do teu ventre
como não dizer “sempre”
novamente.

Ó lâmina e bainha
de outra espada ainda
Tua língua
Ruge. Reprende. Arrasa
Desde que sempre o faças
com as asas

Vem dos arcanos de outro tempo
ou dos anéis de outra galáxia
esta espessura transparente
que só na cama as almas ganham.

David Mourão-Ferreira
(Pequenos Poemas)

Thursday 15 March 2018

Fado da pedrada


quis fazer do amor um charro
quis que ardesse em minha posse
mas fumado não o agarro
talvez fosse do cigarro:
fez-me tosse, fez-me tosse

e um dia que estava só,
tão só que não vou contá-lo,
só sei que metia dó,
quis o amor desfeito em pó
e pus-me então a snifá-lo

noutra noite vil de luto
após triste despedida
preparei um crack em bruto
e do amor levei um chuto
que me deu cabo da vida

e o meu ser assim se joga
numa contínua desordem
pobre amor, em mim és droga,
que me pedra e perde e afoga,
não me acordem, não me acordem.

Vasco Graça Moura

Monday 12 March 2018

Quase Um Anjo / Fado Vadio (Má Fama)


Sei que já foste gaivota
És tão antiga a voar
Sabes da ilha remota
Que só se encontra no mar
Leva-me ave do destino
Faz de mim o teu poente
Tu que és quase, quase um anjo
Faz-me perto de ser gente

Sei que já foste gaivota
Candeia de um pescador
Amante de caravela
Aquele voo incolor
És um anjo sem andor
À procura de uma estrela
Quase nada, quase dor
Quase vão de uma janela

Sei que já foste gaivota
Sei de cor por onde andaste
Sei de cor todos os mapas
Do coração que traçaste
Leva-me ave do destino
Faz de mim o teu poente
Tu que és quase, quase um anjo
Faz-me perto de ser gente

- - - - - - - - - - - - - - - - - - -

já andei pelos telhados
para me vingar do céu
abri feridas na lua
mas de todos os pecados
aquele que me perdeu
foi demorar a ser tua

fui de viela em viela
bebi água da chuva
dormi onde me acolhiam
tive casas sem janela
mais de mil vezes viúva
dos amores que me morriam

já marquei homens dos tais
roguei pragas a quem passa
ganhei fama de vadia
como os gatos dos quintais
fui caçadora e fui caça
mas só queria companhia.

João Monge

Friday 9 March 2018

Soneto de Mal Amar


Invento-te recordo-te distorço
a tua imagem mal e bem amada
sou apenas a forja em que me forço
a fazer das palavras tudo ou nada.

A palavra desejo incendiada
lambendo a trave mestra do teu corpo
a palavra ciúme atormentada
a provar-me que ainda não estou morto.

E as coisas que eu não disse? Que não digo:
Meu terraço de ausência meu castigo
meu pântano de rosas afogadas.

Por ti me reconheço e contradigo
chão das palavras mágoa joio e trigo
apenas por ternura levedadas.

José Carlos Ary dos Santos

Tuesday 6 March 2018

PORQUINHO-DA-ÍNDIA


Quando eu tinha seis anos
ganhei um porquinho-da-Índia.
Que dor de coração eu tinha
porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra a sala
pra os lugares mais bonitos e mais limpinhos
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...


- O meu porquinho-da-Índia foi a minha primeira namorada.

Manuel Bandeira

Saturday 3 March 2018

CAMARADA


Camarada é uma palavra bonita. Sempre. E assume particular beleza e significado quando utilizada pelos militantes comunistas.
O camarada é o companheiro de luta - da luta de todos os dias, à qual dá o conteúdo de futuro, transformador e revolucionário que está na razão da existência de qualquer partido comunista.
O camarada é aquele que, na base de uma específica e concreta opção política, ideológica, de classe, tomou partido - e que sabe que o seu lugar é o do seu partido, que a sua ideologia é a da classe pela qual optou.
O camarada é aquele com cujo apoio solidário contamos em todos os momentos - seja qual for o ponto da trincheira que ocupemos e sejam quais forem as dificuldades e os perigos com que deparamos.
O camarada é aquele que nos ajuda a superar as falhas e os erros individuais - criticando-nos com uma severidade do tamanho da fraternidade contida nessa crítica.
O camarada é aquele que, olhando à sua volta, não vê espelhos...: vê o colectivo - e sabe que, sem ter perdido a sua individualidade, integra uma outra nova e criativa individualidade, soma de múltiplas individualidades.
O camarada é aquele que, vendo a sua opinião minoritária ou isolada, mas julgando-a certa, não desiste de lutar por ela - e que trava essa luta no espaço exacto em que ela deve ser travada: o espaço democrático, amplo, fraterno e solidário, da camaradagem.
O camarada é aquele que, tão naturalmente como respira, faz da fraternidade um caminho, uma maneira de ser e de estar - e que, por isso mesmo, não necessita de a apregoar e jamais a invoca em vão.
O camarada é aquele que olhamos nos olhos sabendo, de antemão, que lá iremos encontrar solicitude, camaradagem, lealdade - e sabemos que esse olhar é uma fonte de força revolucionária.
O camarada é aquele a cuja porta não necessitamos de bater - porque a sabemos sempre aberta à camaradagem.
O camarada é aquele que jamais hesita entre o amigo e o inimigo - seja qual for a situação, seja qual for o erro cometido pelo amigo, seja qual for a razão do inimigo.
O camarada é o que traz consigo, sempre, a palavra amiga, a voz fraterna, o sorriso solidário - e que sabe que a amizade, a fraternidade, a solidariedade, são valores humanos intrínsecos ao ideal comunista.
O camarada é aquele que é revolucionário - e que não desiste de o ser mesmo que todos os dias lhe digam que o tempo que vivemos é coveiro das revoluções.

Camarada é uma palavra bonita - é uma palavra colectiva: é tu, eu, nós: é o Partido. O nosso. O Partido Comunista Português.

José Casanova
in Avante!, 20.6.2002

Thursday 1 March 2018

Daqui desta Lisboa

Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por Suíços habitada,
onde a tristeza vil, e apagada,
se disfarça de gente mais activa;

Daqui, deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;

Daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira da vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristôlho que se apaga;

Daqui, só paciência, amigos meus !
Peguem lá o soneto e vão com Deus...

Alexandre O'Neill

Tuesday 27 February 2018

Mandei recado à cidade


Vendi as palavras todas
Vendi-as para te encontrar
E comprei o meu silêncio
Como quem vai navegar

Dos jardins falei às flores
Do teu nome começado
Do espelho dos teus olhos
E do teu corpo fechado

Mandei recado á cidade
Mandei recado ao país
E cantei para não estar só
A libertar a raiz

Depois, amor, fui á praia
Molhar-me do coração
E regressei no instante
De me dar à tua mão.

Vasco de Lima Couto

Saturday 24 February 2018

Voltar a ser (fado do regresso)


Eu vou
voltar a ser
tudo o que eu já fui um dia
tudo o que eu já queria ser
antes de te querer

Eu vou
voltar a ver
o lado bom das pessoas
as suas coisas boas
antes de entristecer

Mais vale
somar paixão, somar desilusão
até tudo nos doer
porque eu vou
Voltar a ser
tudo o que eu já fui um dia
tudo o que eu já queria ser
antes de te querer

Eu sei
que vou voltar
ao coração por um fio
porque é do meu feitio
e já não sei mudar

Mais vale
somar paixão, somar desilusão
até tudo nos doer
porque eu vou
Voltar a ser
tudo o que eu já fui um dia
tudo o que eu já queria ser
antes de te perder.

João Monge

Wednesday 21 February 2018

Eu não existo sem você


Eu sei e você sabe,
Já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo
Levará você de mim
Eu sei e você sabe
Que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos
Me encaminham pra você

Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só têm razão se se cantar
Assim como a nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você.

Vinicius de Moraes

Sunday 18 February 2018

Vozes do Mar


Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d'oiro intenso
Donde vem essa voz cheia de mágoa
Com que falas à terra, ó mar imenso?

Tu falas de festins, e cavalgadas?
De cavaleiros errantes ao luar
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?

Teus cantos d'epopeias? Tens anseios
D'amarguras? Tu tens também receios
Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz, ó mar amigo?...
...Talvez a voz de um Portugal antigo
Chamando por Camões numa saudade!

Florbela Espanca

Thursday 15 February 2018

Dança de Mágoas


Como inútil taça cheia
Que ninguém ergue da mesa
Transborda de dor alheia
Meu coração sem tristeza

Sonhos de mágoa figura
Só para ter que sentir
E assim não tem a amargura
Que se temeu a fingir

Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.

Fernando Pessoa

Monday 12 February 2018

Sem Sentido


Naquela noite sem lua
talvez por andar perdido
entrei pela tua rua
em sentido proíbido

Tentei fazer marcha-atrás
mas disseste divertida
que o sentido tanto faz
se a rua não tem saída

Começando a sentir frio
e sendo já noite morta
ao ver um lugar vazio
estacionei à tua porta

Que sentido tão perverso
teve essa noite sem lua
andar em sentido inverso
p'ra acabar na tua rua

Se faz sentido não sei
mas não estou arrependido
dos sentidos que encontrei
nessa noite sem sentido.

Manuela de Freitas

Friday 9 February 2018

JÁ NÃO É POSSÍVEL


Já tudo é tudo. A perfeição dos
deuses digere o próprio estômago.
O rio da morte corre para a nascente.
O que é feito das palavras senão as palavras?
O que é feito de nós senão
as palavras que nos fazem?
Todas as coisas são perfeitas de
nós até ao infinito, somos pois divinos.
Já não é possível dizer mais nada
mas também não é possível ficar calado.
Eis o verdadeiro rosto do poema.
Assim seja feito: a mais e a menos.

Manuel António Pina

Tuesday 6 February 2018

SI NO EXISTIERAS


Qué sería de mí si no existieras,
mi ciudad de La Habana.

Si no existieras, mi ciudad de sueño
en claridad y espuma edificada,
que sería de mí sin tus portales,
tus columnas, tus besos, tus ventanas.

Cuando erré por el mundo ibas conmigo,
eras una canción en mi garganta,
un poco de tu azul en mi camisa,
un amuleto contra la nostalgia.

Y ahora te camino toda entera,
te vivo toda hasta la madrugada,
soy el viento en tus parques y rincones,
soy ese sol que te acaricia el alma.

Ciudad de mis amores en el polvo,
bella ciudad de podredumbre y alas,
en ti naci realmente un mes de enero
cuando golpeó en tu pecho la esperanza.

Si viví un gran amor fue entre tus calles,
si vivo un gran amor tiene tu cara,
ciudad de los amores de mi vida,
mi mujer para siempre sin distancia.

Si no existieras yo te inventaría,
mi ciudad de La Habana

Fayad Jamis

Saturday 3 February 2018

Quanto, quanto me queres


Quanto, quanto me queres?- perguntaste
Olhando para mim mas distraída;
E quando nos meus olhos te encontraste,
Eu vi nos teus a luz da minha vida.

Nas tuas mãos, as minhas, apertaste.
Olhando para mim como vencida,
"...quanto, quanto..." - de novo murmuraste
E a tua boca deu-se-me rendida!

Os nossos beijos longos e ansiosos,
Trocavam-se frementes! - Ah! ninguém
Sabe beijar melhor que os amorosos!

Quanto te quero?! - Eu posso lá dizer!...
- Um grande amor só se avalia bem
Depois de se perder.

António Botto

Thursday 1 February 2018

Tango Ribeirinho


É à beira da ribeira
Que Lisboa abre os olhos
Quando acorda de manhã
À cabeça da peixeira
Há fruta do mar aos molhos
Que põe mais sal na manhã

É à beira da ribeira
Que os marujos vão curtir
Os restos da bebedeira
Que apanharam a sorrir

É à beira da ribeira
Que acorda a cidade inteira
Que apregoa a vendedeira
Que a gente gosta de ouvir

Este tango ribeirinho
Sabe a Tejo e sabe a vinho
Este tango da cidade
Tem navalhas de saudade
Tem punhais de solidão
A doer devagarinho
Dentro do meu coração

Este tango ribeirinho
Tem fragatas de carinho
Tem andorinhas nas telhas
E cravos de pôr na orelha
Sardinheiras encarnadas
Junto às toalhas de linho
Penduradas nas sacadas
Este tango ribeirinho

É à beira da ribeira
Que há canalhas e há malandros
E mulheres de meia porta
Mas à beira da ribeira
Há cabazes de morangos
Que ainda nos sabem a horta

É à beira da ribeira
Que vai esperar o estivador
Uma manhã toda inteira
Que lhe comprem o suor

É à beira da ribeira
Que um ramo de erva cidreira
Traz a ternura que cheira
A Lisboa, meu amor.

José Carlos Ary dos Santos