Tuesday 30 December 2014

RETRATO


Amo-te; e o teu corpo dobra-se,
no espelho da memória, à luz
frouxa da lâmpada que nos
esconde. Puxo-te para fora
da moldura: o teu rosto branco
abre um sorriso de água, e
cais sobre mim, como o
tronco suave da noite, para
que te abrace até de madrugada,
quando o sono te fecha os olhos
e o espelho, vazio, me obriga
a olhar-te no reflexo do poema.


Nuno Júdice

Saturday 27 December 2014

O TEMPO É NOSSO


Espancaste-me.
Cegaste-me.
Olho por olho? dente por dente?

Talião perdeu a pena
que embora cheia de penas
o tempo é nosso, da nossa gente.
E mal na noite que dura
a dura dor permanece

já a canção amanhece.

Francisco Viana

Wednesday 24 December 2014

*


Se me pedes
um testemunho sincero
destes anos que já nem contam
não tenho senão
uma mão-cheia de lumes
de que fui solidário combustível
como o dia em que o limoeiro
do quintal
sonhou com uma grande planície
uma ventania que o tivesse
como único destinatário
e foi só a tosca acrobacia
de lhe chegar
aos frutos mais panorâmicos

não
não terei saudades das longas palavras
nem da música sincopada
a que viram costas as crianças
estou só disponível
para um vocábulo que me arranque
à hipnose dos que não se suicidam
e duvido que volte a assombrar-me
como naquele dia
em que te trouxe o limão alto
e disseste que preferias
o ácido dos meus dedos


Vasco Gato

Sunday 21 December 2014

ANTRO - 1966


Este é o Homem de Java,
o Pitecantropo,
há uns 600 mil anos!

Este é o Homem de Neanderthal,
há 60 a 70 mil anos!

Este é o Homem-Sequestrado
há já quarenta anos.

Francisco Viana

Thursday 18 December 2014

A JANELA ILUMINADA


Não chames ao mundo morada, não lhe dês um nome
pois falhas a tua Primavera
as sugestões atmosféricas tornam as paisagens equívocas
e nunca chegamos a perceber
como avança uma história
ou uma tempestade

Diante da janela iluminada
acredita apenas na duração
do amor


José Tolentino de Mendonça

Monday 15 December 2014

O PEQUENO PERSA


É um pequeno persa
azul o gato deste poema.
Como qualquer outro, o meu
amor por esta alminha é materno:
uma carícia minha lambe-lhe o pêlo,
outra põe-lhe o sol entre as patas
ou uma flor à janela.
Com unhas e dentes e obstinação
transforma em festa a minha vida.
Quer-se dizer, o que me resta dela.

Eugénio de Andrade

Friday 12 December 2014

Queria golos a rodos



Queria a vossa matinal preguiça
clamando por justiça
por ser ainda tão cedo.
Mesmo que resmungando,
queria vossos passos ecoando
pela casa ainda fria.
Queria os restos do pequeno-almoço
espalhados pela sala.
Queria a Vossa fala
com restos de “refilisse”
por ser quase madrugada.
Queria o saco azul, na entrada
que por aqui está parada
porque ninguém me incomoda.
Queria conversas modernas
em linguagem “ipad”
que um velho diz que entende
abanando a cabeça.
Queria beijos de fugida
ou abraços de bom dia
queria um pavilhão gelado
e o orgulho pairado
em todo o meu corpo velho
que não joga, observa.
Queria golos a rodos
saltos, corridas, alegria
e o vosso sorriso estampado
que hoje aqui lembrado
me deixa fora da vida.
 

Nuno Guimarães

Tuesday 9 December 2014

As cabras


Por toda a parte onde a terra for pobre e alta, elas
aí estão, as cabras - negras, muito femininas nos
seus saltos miúdos, de pedra em pedra.
Gosto destas desavergonhadas desde pequeno.
Tive uma que me deu meu avô, e ele próprio
me ensinou a servir-me quando tivesse fome,
daqueles odres fartos, mornos,
onde as mãos se demoravam vagarosas antes da boca
se aproximar, para que o leite não se perdesse pelo rosto,
pelo pescoço, pelo peito até, o que às vezes acontecia,
quem sabe se de propósito, o pensamento
na vulvazinha cheirosa.
Chamava-se Malteza, foi meu cavalo, e não sei
se a minha primeira mulher.

Eugénio de Andrade

Saturday 6 December 2014

*


Todos os barcos partiram já
deste cais improvisado no abandono
das memórias queimadas, partiram sem velas,
e ninguém reconheceu o rasto incerto
do definitivo longe.

Só agora dou pelo peso do esquecimento.
A espuma embrulha-me com limos, espanto e sal.
E uma intolerável concha flutua na minha existência.

Apago as estrelas com a manga da absoluta solidão,
percebo que nenhuma luz me habita os olhos
- e fico cego diante do espelho.

Ninguém reconheceu que se morria.


Vasco Gato

Wednesday 3 December 2014

CANTE JONDO


A mão onde poisava
o que a noite trazia
é quase imperceptível;
memória só seria
do que nem nome tinha:
um arrepio na água?,
um ligeiro tremor
nas folhas dos álamos?,
um trémulo sorrir
em lábios que não via?

Memória só seria
de ter sonhado a mão
onde nada poisava
do que a noite trazia.

Eugénio de Andrade

Monday 1 December 2014

A Criação do Mundo



Olhou as mãos em concha e viu arredondar-se
um sonho dentro delas – um mundo
que ninguém podia adivinhar, pois dele
fariam também parte os magos e os profetas.

Abriu-as devagar e deixou cair as trevas como sementes,
para que então servissem unicamente de sombras
e prolongassem a memórias das coisas por vir. Foi assim
que inventou a luz e separou um dia do seguinte.

Depois afastou o céu daquilo que viria a ser o mar,
como quem divide um lenço azul em dois e limpa
as lágrimas apenas a metade. No meio, deixou que
crescesse tudo quanto do chão quisesse escapar-se
para traçar a primeira geografia dos caminhos. E assim

descobriu a cor e encheu a sua paleta de animais
que rasgariam os céus, cruzariam os oceanos e
revolveriam as entranhas da terra na estação
das chuvas. Por fim, semeou pequenas clareiras

nas florestas, pedras nas vertentes das cordilheiras,
cristais de neve no contorno dos lagos, estrelas cadentes
na vizinhança do desespero e rios serpenteantes
entre as searas louras, mordidas por um sol que lhe caiu
quase sem querer dos dedos, mas lhes aproveitou o calor.

E, apesar da alegria que experimentou, sentiu que o seu
mundo era tão frágil que, se desviasse os olhos, tudo acabaria
por regressar ao pó, às trevas e ao verbo. Só por isso criou alguém
que também o visse e lhe dissesse todos os dias como era belo.
 
Maria do Rosário Pedreira

Sunday 30 November 2014

ALEGORIA FLORAL


Um dia em que a mulher nasça do caule da roseira
que cresce no quintal; ou um dia em que a nuvem
desça do céu para vestir de névoa os seus
seios de flor: seguirei o caminho da água nos
canteiros que me levam ao caule, e meter-me-ei
pela terra em busca da raiz.

Nesse dia em que os cabelos da mulher se
confundirem com os fios luminosos que o sol
faz passar pela folhagem; e em que um perfume
de pólen se derramar no ar liberto da névoa:
procurarei o fundo dos seus olhos, onde corre
uma transparência de ribeiro.

Um dia, irei tirar essa mulher de dentro da flor,
despi-la das suas pétalas, e emprestar-lhe o véu
da madrugada. Então, vendo-a nascer com o dia,
desenharei nuvens com a cor dos seus lábios, e
empurrá-las-ei para o mar com o vento brando
da sua respiração.

Depois cobrirei essa mulher que nasceu da roseira
com o lençol celeste; e vê-la-ei adormecer, como
um botão de rosa, esperando que a nuvem desça
do céu para a roubar ao sonho da flor.



Nuno Júdice

Thursday 27 November 2014

AMOR SEM TRÉGUAS


É necessário amar,
qualquer coisa, ou alguém;
o que interessa é gostar
não importa de quem.

Não importa de quem,
nem importa de quê;
o que interessa é amar
mesmo o que não se vê.

Pode ser uma mulher,
uma pedra, uma flor,
uma coisa qualquer,
seja lá o que for.

Pode até nem ser nada
que em ser se concretize,
coisa apenas pensada,
que a sonhar se precise.

Amar por claridade,
sem dever a cumprir;
uma oportunidade
para olhar e sorrir.

Amar como o homem forte
só ele sabe e pode-o;
amar até à morte,
amar até ao ódio.

Que o ódio, infelizmente,
quando o clima é de horror,
é forma inteligente
de se morrer de amor.

António Gedeão

Monday 24 November 2014

@


Gostava de morar na tua pele
desintegrar-me em ti e reintegrar-me
não este exílio escrito no papel
por não ser carne em tua carne.

Gostava de fazer o que tu queres
ser alma em tua alma em um só corpo
não o perto e o distante entre dois seres
não este haver sempre um e sempre o outro.

Um corpo noutro corpo e ao fim nenhum
tu és eu e eu sou tu e ambos ninguém
seremos sempre dois sendo só um.

Por isso esta ferida que faz bem
este prazer que dói como outro algum
e este estar-se tão dentro e sempre aquém.


Manuel Alegre

Friday 21 November 2014

A propósito da doença de um poderoso estadista


Se este homem insubstituível franze o sobrolho
dois reinos periclitam.
Se este homem insubstituível morre
o mundo inteiro se aflige como a mãe sem leite para o filho.
Se este homem insubstituível ressuscitasse ao oitavo dia
não acharia em todo o império uma vaga de porteiro.

Brecht

Tuesday 18 November 2014

*


Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos
andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva
das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas,
surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram
nos corredores e foram perder-se, também elas,
na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias

rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos
e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes
proibidos. O sol queimou as páginas do livro
interrompido na violência de um poema e revirou
os cantos do único retrato que resistira à moldura
do tempo. De noite, os rapazes deitaram-se às baías

atrás das estrelas; e os amantes, incomodados
com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor
nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes
um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste:

o verão desarruma os sentimentos.


Maria do Rosário Pedreira

Saturday 15 November 2014

Querem o céu


Querem o céu, a mística mansão
da alma.
E, se estivessem lá,
queriam a terra, a sórdida morada
da raiz.
Mas é o céu que lhes diz
Eternidade,
Verdade,
Santidade
e descanso.

Assim se pode mistificar
A preguiça,
O pecado,
A mentira
e a transitória vida natural.

O grande tecto azul, porém, não dá sinal
de acolher o aceno.
Afaga as nuvens, e da luz solar
faz o dia maior ou mais pequeno.

Miguel Torga

Wednesday 12 November 2014

E por vezes


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira

Sunday 9 November 2014

A ILHA DOS NAVIOS PERDIDOS


Aqui é a ilha dos navios perdidos,
dos navios abalroados, afundados
nos naufrágios...
Esta é a ilha perdida nos mapas,
perdida no mar dos sargaços;
este é o mar das Tormentas,
das tormentas desta vida,
onde há só tempestades e agoiros;
o céu
é esta noite negra sem limites
onde não vive um astro, uma nuvem ou uma asa;
a terra é esta,
os cascos oscilantes
dos mil navios perdidos:
Naus da Índia,
barcos piratas dos moiros,
fragatas e caravelas,
navios dos Corte-Reais
onde jazem insepultos
os heróis mais verdadeiros
e os sonhos mais colossais.
- Nos mastros desmantelados
flutuam,
rotos e desbotados,
estandartes imperiais,
e nos porões arrombados,
nos cofres de segredos inúteis,
dormem os tesoiros arrancados
a todos os orientes.

Não há grandeza que baste
quando a desgraça é tamanha!...

Joaquim Namorado

Thursday 6 November 2014

À avó


Ficou vazio o teu lugar à mesa. Alguém veio dizer-nos
que não regressarias, que ninguém regressa de tão longe.
E, desde então, as nossas feridas têm a espessura
do teu silêncio. Sob a tua cadeira, o tapete
continua engelhado, como à tua ida.
Provavelmente ficará assim para sempre.

No outro Natal, quando a casa se encheu por causa
das crianças e um de nós ocupou a cabeceira,
não cheguei a saber
se era para tornar a festa menos dolorosa,
se para voltar a sentir o quente do teu colo.


Maria do Rosário Pedreira

Monday 3 November 2014

Muitas coisas aumentarão com a guerra


Muitas coisas aumentarão com a guerra.
Aumentarão
as posses dos poderosos
e a pobreza dos que nada têm
os discursos dos governantes
e o silêncio dos governados.


Brecht

Saturday 1 November 2014

Ir e vir


O vento hoje sopra do Norte
Como sabem se chama Nortada
Mas não sabem que no mar alto
Vento e geada cortam à facada
Risca a cara e de que maneira
Risca tudo que encontra na frente
Vai o barco cheiinho de gente
Vai o barco chamado traineira

ir e vir ao mar...

Chegado ao mar alto, lá fora da costa
Deita ao mar chalandra e chalandreiro
Pega numa ponta da rede e a traineira
Dá volta inteira
Peixe vivo fica lá no meio, fica tudo cheio
De peixe miúdo, de peixe graúdo
E de esforço, de suor
De trabalho d'um raio,
R'ais parta a vida do pescador

Puxa a rede alador...

Fica a traineira bem carregadinha
De faneca, carapau e sardinha
Vira o leme já o sol vai alto
Já as mulheres estão em sobressalto
Chega à costa e vende-se o peixe
E não há nada que a fábrica deixe
E as conservas vão p'ró estrangeiro
É negócio, é negócio rijo
Mas a vida do pescador é sem descanso
E sem dinheiro

Sem descanso e sem dinheiro...

Isto assim é que não está certo
A gente assim não pode viver
A gente nem ganha p'ra comer
Nem tem descanso
O mar enrola a areia
E nos andam a enrolar
Calma aí seu gatuno ladrão, seu armador
Porque vai é parar tudo
Nós vamos é já p'ra greve
E não há ninguém que nos leve

A greve é nossa arma...


João Loio

Thursday 30 October 2014

#


Fica dentro de mim, como se fosse
eterno o movimento do teu corpo,
e na carne rasgada ainda pudesse
a noite escura iluminar-te o rosto.


No teu suor é que adivinho o rastro
das palavras de amor que não disseste,
e no teu dorso nu escrevo o verso
em pura solidão acontecido.


Transformo-me nas coisas que tocaste,
crescem-me seios com que te alimente
o coração demente e mal fingido;


depois serei a forma que deixaste
gravada a lume com sabor a cio
na carícia de um gesto fugidio.

António Franco Alexandre

Monday 27 October 2014

Cassandra particular


Amanhã de manhã lereis no jornal uma nova guerra
e formulareis o desejo de vitória de um dos lados...
amanhã desejareis uma nova mulher,
fechareis um negócio, comprareis bilhete para o cinema,
passareis em revista as vossas ambições,
suareis, tereis cóleras, jogareis brídge...

Amanhã a Morte olhar-vos-á um passo mais de perto;
amanhã o Amor olhar-vos-á um passo mais de longe.

Continuará a haver estrelas, rosas,
o luar, as dálias, as crianças,
os jardins, o crepúsculo, a poesia
- os livros dos poetas bem baratos...

Mas amanhã não tereis tempo
um minuto sequer
Amanhã vendereis ao Diabo mais um comboio de mercadorias.

Egito Gonçalves

Friday 24 October 2014

ESPERANÇA


Sei o teu nome, e chamo-te em silêncio.
Não quero despertar
o rancor assassino
dos guardas vigilantes
que te negam...
Vem, se puderes passar
através do seu ódio secular,
a única tarimba onde sossegam.

Ah, que festa haveria nos meus braços,
se batesses à porta, como outrora!
Toda a casa acredita nessa hora,
e ouve, em sobressalto,
cada leve rumor que se aproxima...
Vem, se puderes passar.
Vem, se puderes, mostrar
a eterna juventude que te anima.

Miguel Torga

Tuesday 21 October 2014

A EXISTÊNCIA ALHEIA...


A existência alheia,
a alheia dignidade,
os direitos alheios pouco são
para os orgulhosos governantes
de hoje, como de sempre.
Por isso,
toda a ordem que de um mando provém,
e, em consequência, toda a dominação
são um abuso e um esbulho.
Na sociedade de classes é a lei
a grande prostituta.

Armindo Rodrigues

Saturday 18 October 2014

Aqui ficam as coisas



Amar é a mais alta constelação.

Os sapatos sem dono
tripulando
na correnteza-espaço
em que deitamos.

As minhas mãos telhado
no teu rosto de pombas.

Os corpos circulando
na varanda dos braços.

É a mais alta constelação.

Carlos Nejar

Wednesday 15 October 2014

O verme


Fosse o verme nuvem,
por força teria
saudades do chão.

Armindo Rodrigues

Sunday 12 October 2014

Somo-nos



e afinal é isto e só isto
será? que seja, quero
dias todos assim, assim
boca, assim duas mãos
seguras por beijos e medo
da luz um corpo amanhecido
de muito mudas as palavras
e tão dentro dos teus olhos
vemos tudo o que não era
e somos o que não fomos
porque adormecemos inteiros
por dentro de dentro de nós
ao fundarmos um nosso verbo

Nuno Camarneiro

Thursday 9 October 2014

Os tempos modernos


Os tempos modernos não começam de uma vez por todas.
Meu avô já vivia numa época nova.
Meu neto talvez ainda viva na antiga.

A carne nova come-se com velhos garfos.

Época nova não a fizeram os automóveis
nem os tanques
nem os aviões sobre os telhados
nem os bombardeiros.

As novas antenas continuaram a difundir as velhas asneiras.
A sabedoria continuou a passar de boca em boca.

Brecht

Monday 6 October 2014

De ti só quero o cheiro dos lilases



De ti só quero o cheiro dos lilases
e a sedução das coisas que não dizes
De ti só quero os gestos que não fazes
e a tua voz de sombras e matizes

De ti só quero o riso que não ouço
quando não digo os versos que compus
De ti só quero a veia do pescoço
vampira que já sou da tua luz

De ti só quero as rosas amarelas
que há nos teus olhos cor das ventanias
De ti só quero um sopro nas janelas
da casa abandonada dos meus dias

De ti só quero o eco do teu nome
e um gosto que não sei de mar e mel
De ti só quero o pão da minha fome
mendiga que já sou da tua pele.

Rosa Lobato de Faria

Friday 3 October 2014

Casa na chuva


A chuva, outra vez a chuva sobre as oliveiras.
Não sei porque voltou esta tarde
se minha mãe já se foi embora
já não vem à varanda para a ver cair
já não levanta os olhos da costura: ouves?
Oiço, mãe, é outra vez a chuva,
a chuva sobre o teu rosto.

Eugénio de Andrade

Wednesday 1 October 2014

Não tenho para ti quotidiano



Não tenho para ti quotidiano
mais que a polpa seca ou vento grosso,
ter existido e existir ainda,
querer a mais a mola que tu sejas,
saber que te conheço e vai chegar
a mão rasa de lona para amar.

Não tenho braço livre mais que olhar
para ele, e o que faz que tu não queiras.
Tenho um tremido leito em vala aberta,
olhos maduros, cartas e certezas.

Neste comboio longo, surdo e quente,
vou lá ao fundo, marco o Ocupado.
Penso em ti, meu amor, em qualquer lado.
Batem-me à porta e digo que está gente.

Pedro Tamen

Tuesday 30 September 2014

#



Amar é perder-se no tempo,
ser espelho entre espelhos.
Ao que é temporal chamar eterno...
Amar é despenhar-se
cair infindavelmente,
o nosso par
é o nosso abismo...
amar é duplo
e sempre dois
dois é querer continuar o mesmo
e já ser outro, e outra
amar é ter olhos nas pontas dos dedos
tocar no nó em que se enlaçam
quietude e movimento
Quero-te...
A tarde foi a pique
lâmpadas e reflectores
devassam a noite
com palavras de água, chama, ar e terra
inventamos o jardim dos olhares
diante de nós
está o mundo.

Octavio Paz

Saturday 27 September 2014

LOUVOR DO PARTIDO


O indivíduo tem dois olhos
o Partido tem mil olhos.
O Partido vê sete Estados
o indivíduo vê uma cidade.
O indivíduo tem a sua hora
mas o Partido tem muitas horas.
O indivíduo pode ser destruído
mas o Partido não pode ser destruído.
Pois ele é a guarda-avançada das massas
e conduz a luta delas
com os métodos dos Clássicos, que são tirados
do conhecimento da realidade.

Brecht

Wednesday 24 September 2014

FRENTE A FRENTE


Nada podeis contra o amor.
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
- e é tão pouco.

Eugénio de Andrade

Sunday 21 September 2014

Aquele que se sentou à porta do tempo


Aquele que se sentou à porta do tempo
e deixou dormir o pensamento sobre a relva
em demasia confiante ou desenganado

aquele que se sentou estupidamente no tempo
e o deixou escorrer irremediavelmente entre os dedos
como velha adormecida no outono

honestamente aproveitou o oásis
alheio ao decorrer das caravanas
no livro dos povos ficará
com o prolongamento dos tiranos.

Rui Namorado

Thursday 18 September 2014

Que é voar?



É só subir no ar,
levantar da terra o corpo, os pés?
Isso é que é voar?
Não.
Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre, leve, independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não-vivência.
E isso é voar?
Não.
Voar é humano
é transitório, momentâneo…
Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:
isso é partir
e não voltar.

Ana Hatherly

Monday 15 September 2014

COROAI-ME DE ESPINHOS...


Lírios, já não, que me parecem luzes
de luto.
Rosas, pior,
que são a burguesia
das flores
no apogeu.
Tojos arnais, apenas.
Cilícios vegetais
sobre a fronte de quem
tem nojo das carícias do presente.
Tojos arnais, até que possa alguém
ser poeta e ser gente.

Miguel Torga

Friday 12 September 2014

#



O i, número imaginário
com muita imaginação,
imaginara o cenário
para um filme de ficção.

A história começava
dentro de uma equação
de segundo grau, e o vilão
era uma raiz quadrada.

da fórmula resolvente
que assaltava à mão armada
um pobre x que passava,
roubando-lhe o expoente.

O herói, um matemático,
perseguia-a tenazmente
de equação em equação
até uma de quinto grau.

Aí, a raiz quadrada,
finalmente encurralada,
sem fórmula de esconder-se,
acabava por render-se.

A ideia era excelente,
o final um teorema.
Ficariam certamente
na História do Equacinema.

Mas o público queria
filmes de geometria,
ângulos obtusos, tangências,
estúpidas circunferências…

Por isso o i nunca mais
Se deu a fazer ficção.
Cedeu: «Não gasto imaginação
com números irracionais!»

Manuel António Pina

Tuesday 9 September 2014

FULMINADOS DE ESPANTO


Fulminados de espanto
ensinam:
sempre assim foi
há-de ser sempre assim

Da saudade aberta como gume
na cinza que era fogo
e que perderam

da própria cobardia receada
nada dizem

Ensinam
o denso labirinto do seu tédio

Rui Namorado

Saturday 6 September 2014

#



para falarmos do meio de obter o poema,
a retórica não serve. trata-se de uma coisa simples, que não
precisa de requintes nem de fórmulas. apanha-se
uma flor, por exemplo, mas que não seja dessas flores que crescem
no meio do campo, nem das que se vendem nas lojas
ou nos mercados. é uma flor de sílabas, em que as
pétalas são as vogais, e o caule uma consoante. põe-se
no jarro da estrofe, e deixa-se estar. para que não morra,
basta um pedaço de primavera na água, que se vai
buscar à imaginação, quando está um dia de chuva,
ou se faz entrar pela janela, quando o ar fresco
da manhã enche o quarto de azul. então,
a flor confunde-se com o poema, mas ainda não é
o poema. para que ele nasça, a flor precisa
de encontrar cores mais naturais do que essas
que a natureza lhe deu. podem ser as cores do teu
rosto – a sua brancura, quando o sol vem ter contigo,
ou o fundo dos teus olhos em que todas as cores
da vida se confundem, com o brilho da vida. depois,
deito essas cores sobre a corola, e vejo-as descerem
para as folhas, como a seiva que corre pelos
veios invisíveis da alma. posso, então, colher a flor,
e o que tenho na mão é este poema que
me deste.

Nuno Júdice

Wednesday 3 September 2014

O IÇAR DA BANDEIRA


(poema dedicado aos Heróis do povo angolano)

Quando voltei
as casuarinas tinham desaparecido da cidade

E também tu
Amigo Liceu
voz consoladora dos ritmos quentes da farra
nas noites dos sábados infalíveis

Também tu
harmonia sagrada e ancestral
ressuscitada nos aromas sagrados do Ngola Ritmos

Também tu tinhas desaparecido
e contigo
os Intelectuais
a Liga
o Farolim
as reuniões das Ingombotas
a consciência dos que traíram sem amor

Cheguei no momento preciso do cataclismo matinal
em que o embrião rompe a terra humedecida pela chuva
erguendo planta resplandecente de cor e juventude

Cheguei para ver a ressurreição da semente
a sinfonia dinâmica do crescimento da alegria nos homens

E o sangue e o sofrimento
eram uma corrente tormentosa que dividia a cidade

Quando eu voltei
o dia estava escolhido
e chegava a hora

Até o rio das crianças tinha desaparecido
e também vós
meus bons amigos meus irmãos
Benge, Joaquim, Gaspar, Ilídio, Manuel
e quem mais?
- centenas, milhares de vós amigos
alguns desaparecidos para sempre
para sempre vitoriosos na sua morte pela vida

Quando eu voltei
qualquer coisa gigantesca se movia na terra
os homens nos celeiros guardavam mais
os alunos nas escolas estudavam mais
o sol brilhava mais
e havia juventude calma nos velhos
mais do que esperança era certeza
mais do que bondade era amor

Os braços dos homens
a coragem dos soldados
os suspiros dos poetas
Tudo todos tentavam erguer bem alto
acima da lembrança dos heróis
Ngola Kiluanji
Rainha Ginga
Todos tentavam erguer bem alto
a bandeira da independência.

Agostinho Neto

Monday 1 September 2014

Ansiedade



quero compor um poema
onde fremente
cante a vida
das florestas das águas e dos ventos.
que o meu canto seja
no meio do temporal
uma chicotada de vento
que estremeça as estrelas
desfaça mitos
e rasgue nevoeiros — escancarando sóis!

Manuel da Fonseca

Saturday 30 August 2014

O Medo


Ninguém me roubará algumas coisas,
nem acerca de elas saberei transigir;
um pequeno morto morre eternamente
em qualquer sítio de tudo isto.

e a sua morte que eu vivo eternamente
quem quer que eu seja e ele seja.
as minhas palavras voltam eternamente a essa morte
como, imóvel, ao coração de um fruto.

serei capaz
de não ter medo de nada,
nem de algumas palavras juntas? 


Manuel António Pina

Wednesday 27 August 2014

COMBOIO AFRICANO


Um comboio
subindo de difícil vale africano
chia que chia
lento e caricato

Grita e grita

quem esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou

Muitas vidas
ensoparam a terra
onde assentam os rails
e se esmagam sob o peso da máquina
e no barulho da terceira classe

Grita e grita

quem esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou

Lento caricato e cruel
o comboio africano...

Agostinho Neto

Sunday 24 August 2014

Sonambulismo


tombam os dias inúteis:
amanhece, é tarde, anoitece.
mas a nós que nos importa
ser manhã, meio-dia ou noite?!...
sonâmbula a vida decorre
- nas ruas, a paz larvar dos grandes cemitérios;
dentro de nós, cada um
apodrece.
enchem-se de títulos vibrantes os jornais
- mas tudo é tão longe...
passam homens por homens e não se conhecem:
boa tarde! bom dia!
cada um fechado nas suas fronteiras,
os gestos vazios,
a vida sem sentido
- sonambulismo apenas.

acorda!
ainda que seja só para o sobressalto,
que as ilusões do sonho se desfaçam
e as esperanças morram todas nessa hora!

acorda!
ainda que o caminho a percorrer te espante
e o peso da obra a realizar te esmague!

ainda que acordar seja
morrer depois aos poucos, em cada momento,
dolorosamente


Joaquim Namorado

Thursday 21 August 2014

MORRA O BISPO E MORRA O PAPA


Morra o bispo e morra o papa,
maila sua clerezia.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morram frades, morram freiras,
maila sua virgaria.
Ai rosas de sangue e leite,
que só terra bebia!
Morra o rei e morra o conde,
maila toda fidalguia.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morram meirinho e carrasco,
maila má judicaria.
Ai rosas de sangue e leite,
que só a terra bebia!
Morra quem compra e quem vende,
maila toda a usuraria.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morram pais e morram filhos,
maila toda filharia.
Ai rosas de sangue e leite,
que só a terra bebia!
Morram marido e mulher,
maila casamentaria.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morra amigo, morra amante,
mailo amor que se perdia.
Ai rosas de sangue e leite,
que só a terra bebia!

Morra tudo, minha gente.
Vivam povo e rebeldia.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!

Jorge de Sena

Monday 18 August 2014

Romance ingénuo de duas linhas paralelas


Duas linhas paralelas
muito paralelamente
iam passando entre estrelas
fazendo o que estava escrito:
caminhando eternamente
de infinito a infinito.
seguiam-se passo a passo
exactas e sempre a par
pois só num ponto do espaço
que ninguém sabe onde é
se podiam encontrar
falar e tomar café.
mas farta de andar sozinha
uma delas certo dia
voltou-se para a outra lina
sorriu-lhe e disse-lhe assim:
“deixa lá a geometria
e anda aqui para o pé de mim...”
diz-lhe a outra: “nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar
temos de ir devagarinho
andando sempre a direito
cada qual no seu caminho!”
não se dando por achada
fica na sua a primeira
e sorrindo amalandrada
pela calada, sem um grito
deita a mãozinha matreira
puxa para si o infinito.
e com ele ali à frente
as duas a murmurar
olharam-se docemente
e sem fazerem perguntas
puseram-se a namorar
seguiram as duas juntas.
assim nestas poucas linhas
fica uma história banal
com linhas e entrelinhas
e uma moral convergente:
o infinito afinal
fica aqui ao pé da gente!


José Fanha

Friday 15 August 2014

O MACACO


Nunca se sabe
até que ponto
um macaco pode chegar
na ânsia de nos imitar.

Dizem alguns autores
ser o macaco
difícil de apanhar
- mas não.

Em qualquer
mundana
reunião
num ombro
numa frase
num olhar
no jeito "humanista"
de falar
aí temos o macaco
a trabalhar
procurando
aproveitar a confusão.

Pessoalmente
sou de opinião
que o macaco
é fácil de caçar
até à mão.

Alexandre O'Neill

Tuesday 12 August 2014

Provisoriamente não cantaremos o amor



provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Carlos Drummond de Andrade
in Congresso internacional do medo

Saturday 9 August 2014

Pois


O respeitoso membro de azevedo e silva
nunca penetrou nas intenções de elisa
que eram as melhores. Assim tudo ficou
em balbúrdias de língua cabriolas de mão.

Assim tudo ficou até que não.

Azevedo e silva ao volante do mini
vê elisa a ultrapassá-lo alguns anos depois
e pensa pensa com os seus travões
Ah cabra eram tão puras as minhas intenções.

E a elisa passa rindo dentadura aos clarões.

Alexandre O'Neill

Wednesday 6 August 2014

O mapa


sempre senti a matemática como uma presença
física, em relação a ela vejo-me
como alguém que não consegue
esquecer o pulso porque vestiu uma camisa demasiado
apertada nas mangas.
perdoem-me a imagem: como
num bar de putas onde se vai beber uma cerveja
e provocar com a nossa indiferença o desejo
interesseiro das mulheres, a matemática é isto: um
mundo onde entro para me sentir excluído;
para perceber, no fundo, que a linguagem, em relação
aos números e aos seus cálculos, é um sistema,
ao mesmo tempo, milionário e pedinte. Escrever
não é mais inteligente que resolver uma equação;
porque optei por escrever? Não sei. Ou talvez saiba:
entre a possibilidade de acertar muito, existente
na matemática, e a possibilidade de errar muito,
que existe na escrita (errar de errância, de caminhar
mais ou menos sem meta) optei instintivamente
pela segunda. Escrevo porque perdi o mapa.

Gonçalo M. Tavares

Sunday 3 August 2014

Memória


Tudo que sou, no imaginado
silêncio hostil que me rodeia,
é o epitáfio de um pecado
que foi gravado sobre a areia.


O mar levou toda a lembrança.
Agora sei que me detesto:
da minha vida de criança
guardo o prelúdio dum incesto.

O resto foi o que eu não quis:
perseguição, procura, enlace,
desse retrato feito a giz
pra que não mais eu me encontrasse.

Tu foste a noiva que não veio,
irmã somente prometida!
— O resto foi a quebra desse enleio.
O resto foi amor, na minha vida.

David Mourão-Ferreira

Friday 1 August 2014

O sol


na infância o sol era um companheiro mais alto,
que aparecera primeiro no campo de futebol, e aí, parado,
guardava as costas da baliza e a erva que se tornava quente.
como se o sol fosse de facto um instrumento de cozinha,
aperfeiçoado, antigo, mas instrumento, matéria
que os meninos agarravam com os dedos e cuja
intensidade podiam por vontade própria regular.
por exemplo: quando a luz era excessiva
os dedos protegiam os olhos. Outras vezes
o corpo parecia a conclusão
natural, instintiva, do calor que vinha de cima:
recebíamos o sol como o ponto final recebe
uma frase. fazia mais sol quando eu tinha seis anos
(quem o fazia?) ou com o tempo e o tédio
me fui distraindo?

Gonçalo M. Tavares

Wednesday 30 July 2014

Tratado geral das grandezas do ínfimo


a poesia está guardada nas palavras - é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
não tenho conexões com a realidade.
poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossa).
por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
fiquei emocionado.
sou fraco para elogios.


Manoel de Barros

Sunday 27 July 2014

Companheira dos homens


A poesia dos senhores que propagam o nevoeiro e confundem as gentes,
poesia tão pessoal como uma escova de dentes,
a poesia que eles queriam guardar nas suas casas
numa gaiola, como um pássaro a quem mutilassem as asas,
a poesia quebrou as algemas e saiu da prisão
e arrastou-se nas trincheiras, e dormiu nos campos de concentração,
e amou aqueles que negam mas que nunca se negaram,
e conheceu prostitutas que nunca se entregaram,
e comeu na malga dos soldados aquela sopa de massa
que é igual para todos como o pré e a desgraça.

E os homens aprenderam nas noites de inclemência
a cantar os seus versos, a recitá-los de cor,
e a murmurá-los nessas horas em que tudo é confidência
e em que cada palavra ganha uma ressonância maior.

Sidónio Muralha

Thursday 24 July 2014

Noite de sonhos voada


noite de sonhos voada
cingida por músculos de aço,
profunda distância rouca
da palavra estrangulada
pela boca amordaçada
noutra boca,
ondas do ondear revolto
das ondas do corpo dela
tão dominado e tão solto
tão vencedor, tão vencido
e tão rebelde ao breve espaço
consentido
nesta angústia renovada
de encerrar
fechar
esmagar
o reluzir de uma estrela
num abraço
e a ternura deslumbrada
a doce, funda alegria
noite de sonhos voada
que pelos seus olhos sorria
ao romper de madrugada:
— ó meu amor, já é dia!...


Manuel da Fonseca

Monday 21 July 2014

SOMOS TODOS POETAS


Por que não queres os versos que te nascem
como rebentos pelo tronco acima?
Por que não queres a inesperada rima
dos sentimentos?
Olha que a vida tem desses momentos
que se articulam numa cadência
tão imprevista,
que é uma conquista
da consciência
não ser um túnel de negação...
Brotam as folhas que são precisas
e outras folhas que o não são.

Miguel Torga

Friday 18 July 2014

Ponho o acento mais grave na palavra Esperança


o acento mais grave ponho-o na palavra Esperança
escutai toda a extensão de caminho que ela traz consigo:
mas dos pés quotidianos não limpem a lama dos dias quanta
[houver e há tanta
nem tapem a boca ao tumulto os punhos nos ouvidos feitos
[surdos
ao coração - esse podem deixá-lo pesado se o estiver e como
mas espantem o sono dos olhos já pisados de sonho por demais
e cuspam fora o sarro do tédio o não importa o é sabido e basta
em cada palavra um grito em cada grito a vida - esse é
[o estrume

desta flor íntima e pública que vos digo e não é fácil
não é fácil que a flor brota da aspereza e do nojo
e da fome e da sede dos seios secos e dos ventres grávidos
e dos olhos enxutos e das pedras em pranto
ah! quanto suor trabalhoso e quanto mais se exige
Escutai toda a extensão de caminho que ela traz consigo:
Desdobra-se o passo caiem horizontes e tão só desponta
Nesta noite de amargura e séculos
Com o rosto sereno dos mortos que sabiam
E das crianças nascendo que saberão um dia
O quanto ele custa - sangue azul de angústia
O quanto ele vale - nosso pão plural

não não é fácil a flor das raízes aos ramos a seiva sem
[enganos
a vida que vem de traz e continua
nos pés que se movem inexoravelmente
para a Manhã que vem vindo porque vamos
- em cada palavra um passo em cada passo a vida:
ponho o acento mais grave na palavra Esperança!


Carlos Aboim Inglês

Tuesday 15 July 2014

Cobardia


E não diz a palavra!
Já não consegue a pura claridade
da raiva que se exprime
num grito que trespassa o firmamento!
Parafraseia a dor, como um pinheiro
que tem medo do vento
e se torce na duna, horizontal, rasteiro,
a enrodilhar a voz do sofrimento.

Filho do instinto,
perdeu a força heróica de arrancar
o aço do punhal que o atravessa.
Morre por não ter pressa
de se salvar!

Miguel Torga

Saturday 12 July 2014

Nada entre nós tem o nome da pressa


conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem. Porém,
se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas -
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. Entre nós o tempo desenha-se assim, devagar.
daríamos sempre pelo mais pequeno engano.

Maria do Rosário Pedreira

Wednesday 9 July 2014

AMARGO ESTILO NOVO


Tudo é fácil quando se está brincando com a flor entre os dedos,
quando se olham nos olhos as crianças,
quando se visita no leito o amor convalescente.
É bom ser flor, criança, ou ser doente.
Tudo são terras donde brotam esperanças,
pétalas, tranças,
a porta do hospital aberta à nossa frente.

Desde que nasci que todos me enganam,
em casa, na rua, na escola, no emprego, na igreja, no quartel,
com fogos de artifício e fatias de pão besuntadas com mel.
E o mais grave é que não me enganam com erros nem com falsidades
mas com profundas, autênticas verdades.

E é tudo tão simples quando se rola a flor entre os dedos!
Os estadistas não sabem,
mas nós, os das flores, para quem os caminhos do sonho não guardam segredos,
sabemos isso e todas as coisas mais que nos livros não cabem.

António Gedeão

Sunday 6 July 2014

A Mulher Mais Bonita do Mundo


estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.

estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"

Thursday 3 July 2014

Baile de máscaras


Quando o senhor comendador entrou no salão
com a condecoração de mérito industrial,
toda a gente lhe queria dar o prémio
da melhor fantasia daquele Carnaval.

Raúl Castro

Tuesday 1 July 2014

quando a ternura for a única regra da manhã


um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for
tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada
de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela. sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi
nem uma palavra, nem o princípio de uma palavra, para não estragar
a perfeição da felicidade.

José Luís Peixoto

Monday 30 June 2014

Bastaste tu


Bastou aquele gesto
Da tua mão tocar tão docemente a minha
Pra nascerem raízes
Que me prendem à terra e me alimentam
Nas horas mais vazias

Bastou aquele olhar
- O teu olhar tão brando, prolongando-se um pouco sobre o meu –
Para iluminar as noites em que a lua se esconde
E a escuridão envolve um mundo sem sentido.

Bastou esse teu jeito de sorrir,
Um sorriso em que vejo despontar a confiança
Na vida não vivida, nas emoções ainda não sentidas,
Nos passos que ressoam noutros passos

Bastaste tu.

Maria Eugénia Cunhal

Friday 27 June 2014

PROCURA


Não conheces o caminho,
mas apenas a angústia
do estômago vazio
e as promessas
que jamais se cumprem.
Sabes de cor
o que te dirão amanhã.
Não sei se ainda escutas.
Talvez tenhas uma vaga esperança
e queiras acreditar nos homens.

Não conheces o caminho
mas apenas a angústia
de todas as mentiras:
as dos outros, as tuas.
Tens o estômago vazio
e nem sequer te resta
a coragem de seres livre.

Não conheces o caminho,
mas apenas a angústia
de não confiar nas mãos que se te estendem.
Tens o estômago vazio
e aprendeste
que terás de esvaziar também o cérebro de sonhos.

Não conhecemos o caminho
porque são demasiadas
as estradas falsas
que os homens abriram.
E agora mete-nos medo a miragem...

Mas as fontes estão certas,
chega-me aos ouvidos
o murmúrio da água.
(E do sangue que vai marcando as sepulturas
dos que ousaram ser audazes de mais.)

Félix Cucurull

Tuesday 24 June 2014

Meu destino


Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida…
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida…


Cora Coralina

Saturday 21 June 2014

Outra vez


Tanto na minha língua como na dos vizinhos
há sempre mentirosos, exploradores mesquinhos.
Estendem-te armadilhas, dizem-te patranhas,
os que falam como tu e os de falas estranhas.

Serás porém injusto, quando alguém te explora
tornando a tua fome assustadora,
se pensares que todos os da mesma língua
comem o que é teu para morreres à míngua.

Se te enganam hoje em bom catalão,
pensa que há mais gente, pronta a dar-te a mão,
amanhã e aqui, ou noutros países,
com palavras doces ou de ásperos matizes.

E para acabar esta lengalenga,
não consintas nunca que ninguém te prenda
o chocalho oco dos mansos carneiros
que pastam o tojo no pó dos outeiros:
para os rebanhos há uma só linguagem:
pontapé que ferve, pancada selvagem.

Félix Cucurull

Wednesday 18 June 2014

Nos Teus Gestos


Nos teus gestos há animais em liberdade
e o brilho doce que só têm as cerejas.
É neles que adormeço, e dos teus dedos
retiro a luz azul dos arquipélagos.

Os teus gestos são letras, sílabas, poemas.
Os teus gestos são páginas inteiras. São
a tua boca a namorar na minha boca,
o cio dos séculos a saudar o tempo.

São os teus gestos que me acordam. Gestos
que vestem o silêncio fundo das ravinas
e assinalam a água dos desertos.

Os teus gestos são música. São lume.
São a respiração do teu olhar. A seara
de espigas que ondula no meu corpo.

Joaquim Pessoa

Sunday 15 June 2014

Princípio


ERA uma vez...

... é uma história sem feiticeiras,
sem sapatinhos que se perdem e se encontram;
sem reis, sem princesas,
sem Ilhas Afortunadas.
Talvez toda, talvez em parte
se pareça com outras histórias que alguém sabe,
histórias repetidas em voz baixa
porque estamos na hora do medo,
na hora do silêncio...

Também eu tenho de calar-me;
há gente de mais a ouvir.

Félix Cucurull

Thursday 12 June 2014

Miniatura


Pois eu gosto de crianças!
Já fui criança, também…
Não me lembro de o ter sido;
Mas só ver reproduzido
O que fui, sabe-me bem.

É como se de repente
A minha imagem mudasse
No cristal duma nascente,
E tudo o que sou voltasse
À pureza da semente.

Miguel Torga

Monday 9 June 2014

CANDIDATO CAÔ CAÔ


Ele subiu o morro sem gravata
dizendo que gostava da raça, foi lá
na tendinha e bebeu cachaça, e até
bagulho fumou

Foi no meu barracão, e lá
usou lata de goiabada como prato,
eu logo percebi
é mais um candidato

às próximas eleições
às próximas eleições
às próximas eleições

Fez questão de beber água da chuva
foi lá na macumba e pediu ajuda
bateu a cabeça no gongá, «deu azar»...

A entidade que estava incorporada
disse: «Esse político é safado,
cuidado na hora de votar

Meu irmão se liga
no que lhe vou dizer
hoje ele pede seu voto
amanhã manda a polícia lhe bater

Meu irmão se liga
no que lhe vou dizer
hoje ele pede seu voto
amanhã manda a polícia lhe prender

Hoje ele pede seu voto
amanhã manda a polícia lhe bater.
Eu falei p'ra você, viu?»

Nesse país que se divide
em quem tem e quem não tem
sempre o sacrifício cai no braço do operário.

Eu olho para um lado
eu olho para o outro
eu vejo desemprego
vejo quem manda no jogo.

E você vem, vem
pede mais de mim
diz que tudo mudou
e agora vai ter fim

Mas eu sei quem você é
e ainda confio em mim
sei que o jogo é sujo
mas eu não desisto assim.

Você me deve
você me deve.
Hoje ele pede, pede, pede de você
amanhã ele vai, vai, vai te foder
hoje ele pede, pede, pede de você
amanhã ó!

Walter Meninão

Friday 6 June 2014

É Isto o Amor


Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste".

Nuno Júdice

Tuesday 3 June 2014

REJEITO


Não me engraxem os sapatos
nem me cortem o cabelo.
A barba já me cresceu
com pujança.
Os meus farrapos revelam
que sou um homem livre.
Quando percorro os atalhos
vencido pelo desalento,
ouço os homens que ladram
pela boca dos seus cães.
Hoje vomitei
as côdeas que me deram.
A esmola dava-me volta
ao estômago e deixava-me
um gosto amargo na boca.
Por caminhos de tojos
empreendi o meu exílio.
Caminho pelo mundo fora...
e o regresso agarra-se-me
aos pés doridos
e aos braços que se descerram
numa ânsia de abraçar.
Porém rejeito o preço
que me querem impor
estes homens que ladram
pela boca dos seus cães.

Félix Cucurull

Sunday 1 June 2014

Agora


Agora,
o remédio é partir discretamente,
sem palavras,
sem lágrimas,
sem gestos.
De que servem lamentos e protestos,
contra o destino?


Miguel Torga

Friday 30 May 2014

Cansaço


Por trás do espelho quem está

De olhos fixados no meus?
Alguém que passou por cá
E seguiu ao Deus dará
Deixando os olhos nos meus.

Quem dorme na minha cama
E tenta sonhar meus sonhos?
Alguém morreu nesta cama
E lá de longe me chama
Misturado nos meus sonhos.

Tudo o que faço ou não faço
Outros fizeram assim
Daí este meu cansaço
De sentir que quanto faço
Não é feito só por mim.

Luís de Macedo

Tuesday 27 May 2014

Tudo é foi


Fecho os olhos por instantes.
Abro os olhos novamente.
Neste abrir e fechar de olhos
já todo o mundo é diferente.

Já outro ar me rodeia;
outros lábios o respiram;
outros aléns se tingiram
de outro Sol que os incendeia.

Outras árvores se floriram;
outro vento as despenteia;
outras ondas invadiram
outros recantos de areia.

Momento, tempo esgotado,
fluidez sem transparência.
Presença, espectro da ausência,
cadáver desenterrado.

Combustão perene e fria.
Corpo que a arder arrefece.
Incandescência sombria.
Tudo é foi. Nada acontece.

António Gedeão

Saturday 24 May 2014

TEIA


São os anos contados
pelos dedos
*
um a um devagar pelas ruínas
entre a paixão, poemas e segredos
que no mar não vêm ao de cima
*
Mas são as cordas, as harpas
e os dedos
*
Mas são as lágrimas, as dúvidas
e são os medos
*
Que desfazendo, fazendo e refazendo
o tempo vai tecendo
mo nosso corpo ainda.

Maria Teresa Horta

Wednesday 21 May 2014

Acusam-me de mágoa e desalento


Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que não me cale:
Até que muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se confia a sua dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

Carlos de Oliveira

Sunday 18 May 2014

NUEVO CANTO DE AMOR A STALINGRADO


Yo ESCRIBÍ sobre el tiempo y sobre el agua,
describí el luto y su metal morado,
yo escribí sobre el cielo y la manzana,
ahora escribo sobre Stalingrado.
Ya la novia guardó con su pañuelo
el rayo de mi amor enamorado,
ahora mi corazón está en el suelo,
en el humo y la luz de Stalingrado.
Yo toqué con mis manos la camisa
del crepúsculo azul y derrotado:
ahora toco el alba de la vida
naciendo con el sol de Stalingrado.
Yo sé que el viejo joven transitorio
de pluma, como un cisne encuadernado,
desencuaderna su dolor notorio
por mi grito de amor a Stalingrado.
Yo pongo el alma mía donde quiero.
Y no me nutro de papel cansado
adobado de tinta y de tintero.
Nací para cantar a Stalingrado.
Mi voz estuvo con tus grandes muertos
contra tus propios muros machacados,
mi voz sonó como campana y viento
mirándote morir, Stalingrado.
Ahora americanos combatientes
blancos y oscuros como los granados,
matan en el desierto a la serpiente.
Ya no estás sola, Stalingrado.
Francia vuelve a las viejas barricadas
con pabellón de furia enarbolado
sobre las lágrimas recién secadas.
Ya no estás sola, Stalingrado.
Y los grandes leones de Inglaterra
volando sobre el mar huracanado
clavan las garras en la parda tierra.
Ya no estás sola, Stalingrado.
Hoy bajo tus montañas de escarmiento
no sólo están los tuyos enterrados:
temblando está la carne de los muertos
que tocaron tu frente, Stalingrado.
Tu acero azul de orgullo construido,
tu pelo de planetas coronados,
tu baluarte de panes divididos,
tu frontera sombría, Stalingrado.
Tu Patria de martillos y laureles,
la sangre sobre tu esplendor nevado,
la mirada de Stalin a la nieve
tejida con tu sangre, Stalingrado.
Las condecoraciones que tus muertos
han puesto sobre el pecho traspasado
de la tierra, y el estremecimiento
de la muerte y la vida, Stalingrado
La sal profunda que de nuevo traes
al corazón del hombre acongojado
con la rama de rojos capitanes
salidos de tu sangre, Stalingrado.
La esperanza que rompe en los jardines
como la flor del árbol esperado,
la página grabada de fusiles,
las letras de la luz, Stalingrado.
La torre que concibes en la altura,
los altares de piedra ensangrentados,
los defensores de tu edad madura,
los hijos de tu piel, Stalingrado.
Las águilas ardientes de tus piedras,
los metales por tu alma amamantados,
los adioses de lágrimas inmensas
y las olas de amor, Stalingrado.
Los huesos de asesinos malheridos,
los invasores párpados cerrados,
y los conquistadores fugitivos
detrás de tu centella, Stalingrado.
Los que humillaron la curva del Arco
y las aguas del Sena han taladrado
con el consentimiento del esclavo,
se detuvieron en Stalingrado.
Los que Praga la Bella sobre lágrimas,
sobre lo enmudecido y traicionado,
pasaron pisoteando sus heridas,
murieron en Stalingrado.
Los que en la gruta griega han escupido,
la estalactita de cristal truncado
y su clásico azul enrarecido,
ahora dónde están, Stalingrado?
Los que España quemaron y rompieron
dejando el corazón encadenado
de esa madre de encinos y guerreros,
se pudren a tus pies, Stalingrado.
Los que en Holanda, tulipanes y agua
salpicaron de lodo ensangrentado
y esparcieron el látigo y la espada,
ahora duermen en Stalingrado.
Los que en la noche blanca de Noruega
con un aullido de chacal soltado
quemaron esa helada primavera,
enmudecieron en Stalingrado.
Honor a ti por lo que el aire trae,
lo que se ha de cantar y lo cantado,
honor para tus madres y tus hijos
y tus nietos, Stalingrado.
Honor al combatiente de la bruma,
honor al Comisario y al soldado,
honor al cielo detrás de tu luna,
honor al sol de Stalingrado.
Guárdame un trozo de violenta espuma,
guárdame un rifle, guárdame un arado,
y que lo pongan en mi sepultura
con una espiga roja de tu estado,
para que sepan, si hay alguna duda,
que he muerto amándote y que me has amado,
y si no he combatido en tu cintura
dejo en tu honor esta granada oscura,
este canto de amor a Stalingrado.

Pablo Neruda

Thursday 15 May 2014

Se bastasse dar um grito


Se bastasse dar um grito para que soubessem!
Se bastasse chorar alto, escrever cartas,
se bastasse andar nu para que notassem!
Tu, Nai, não compreenderás. Eles entretêm-se
a beber cerveja, a falar de mulheres,
a crer em Deus. E não adivinham
que as mãos as tenho negras
de tanto construir castelos de sangue.
Parece que querem dizer que não é tão vero
como eu penso. Oh, Nai, não compreendas,
não compreendas nunca, nem perdoes,
escreve-lho na fronte com arame,
grita-o da varanda, até que morram
de tanto o saberem, Nai, e o mundo rebentar.
Ai, se bastasse morrer para que acreditassem,
havia de amar-te com o sangue dos outros.

Miguel Ângel Riera

Monday 12 May 2014

LIMITE


Não pretendo mais do que o limite
que para além do limite
já se entrega
*
Eu cumpro os meus
limites
não cumprindo as regras

Maria Teresa Horta

Friday 9 May 2014

SOBRE A PAZ


Às vezes a paz
não passa de medo,
medo de ti, de mim,
medo de nós, que não queremos a noite.
Às vezes a paz
não passa de medo.

Às vezes a paz
tem gosto de morte.
Dos mortos para sempre,
dos que são só silêncio.
Às vezes a paz
tem gosto de morte.

Às vezes a paz
é como um deserto
sem vozes nem árvores
como um vazio imenso onde os homens morrem.
Às vezes a paz
é como um deserto.

Às vezes a paz
fecha as bocas
e ata as mãos
só nos deixa as pernas para fugir.
Às vezes a paz.

Às vezes a paz
não é mais do que
uma palavra vazia
para não dizer nada.
Às vezes a paz.

Às vezes a paz
faz muito mais mal,
às vezes a paz
faz muito mais mal.
Às vezes a paz.

Raimon

Tuesday 6 May 2014

Balada das onze e meia


Onze e meia: meia hora
para acabar este dia.
Meia hora ainda é hoje.
Meia hora é amanhã.

Às onze e meia da noite
vai haver muita pancada
num bar da rua das Pretas.

Vai haver muita mudança
nos decretos aprovados.

Às onze e meia da noite
no quarto não se ouve nada
mas no berço uma criança
dorme o sono dos poetas
que andam subalimentados.

Às onze e meia da noite
direi vinte e três e trinta.

Acordo o galo vermelho
com dois murros no pescoço.

Canta, canta, meu pelintra
o dia de hoje é tão velho
que amanhã já estamos mortos.

Às onze e meia da noite
os ódios nunca estão fartos.

Às onze e meia da noite
a morte anda lá por fora
a pedir contas à vida
e os polícias têm medo
da própria sombra que pisam.

Onze e meia. Está na hora.

No relógio ainda é cedo.

Os ponteiros não deslizam.

Às onze horas e meia
esperamos por amanhã.
Chega a noite para a ceia
com dois pezinhos de lã.

Passam gatunos, canalhas
com seus múltiplos perfis.

Caem corpos e navalhas
no silêncio dos lancis.

Onze e meia. A meia hora
que falta, nunca mais passa.

Não passa. Nunca mais passa.

Eu sei lá quanta desgraça
se apodera em meia hora
das ruelas e dos becos
que apodrecem na cidade!

São onze e meia. É agora
que os olhos verdes dos cegos
pressentem a claridade.

Às onze e meia da noite
o vento não bate à porta
nem quer saber de mais nada.
Às onze e meia da noite
no bar da rua das Pretas
continua a haver pancada.

Às onze e meia da noite
os cães disputam a dente
uma cadela aluada.

Às onze e meia da noite
há travestis no Rossio
à pesca dos marinheiros
que deixaram o navio
e fazem ondas de cio
no sangue dos paneleiros.

Bateram as onze e meia.

Só faltam trinta minutos.

Acende-se a lua cheia
na rua dos Sapateiros.

São onze e meia da noite
e eu quero ficar contigo
entre lençóis de algodão.

Fincar no flanco uma espora.

Cavalgar por meia hora.

Dar rédeas ao coração.

Às onze e meia da noite
é tempo de solidão.

E nas entranhas do medo
fazem-se filhos diversos.
Como um padeiro faz versos
ou um poeta faz pão.

Às onze e meia da noite.

Às onze e meia da noite
recebem-se embaixadores
e à mesma hora os porteiros
afugentam os trapeiros
vestidos de malfeitores.

Às onze e meia da noite
a Primavera passou-se
para o lado do Outono.
E uma Maria qualquer
nas alamedas do sono
cansada de ser mulher
às onze e meia matou-se.

Em ponto. São onze e meia.

Esta noite os redimidos
hão-de fazer por esquecer.

Bem comidos e bebidos
não tardam a adormecer.

E um frasco de comprimidos
na mesa de cabeceira
vai ajudar os sentidos
a cozer a bebedeira.

Às onze e meia da noite.

Às onze e meia da noite
num gabinete privado
(como a irmã cotovia)
o tipo que está ao lado
cantou tudo o que sabia
para subir de ordenado.

Às onze e meia da noite
rastejam cobras na lama
onde afocinham as putas
Senhoras Donas da Cama.
Mas as putas que são putas.
Não as que têm a fama.

São onze e meia da noite.

Já só falta meia hora.

Apenas trinta minutos.

Às onze e meia da noite
ponho a tristeza de lado
e uma gravata de seda.

Quero ouvir cantar o fado.

Quero dar uma facada
no galo da consciência.

Quero menos paciência
e um pouco mais de loucura.

E enquanto são onze e meia
e ainda dura a pancada
no bar da rua das Pretas
os putos fazem punhetas
em jeito de habilidde
apenas com quatro dedos.
E descobrem os segredos
de nascerem portugueses
filhos de um povo adiado.

Feitos aqui e agora.

Quando falta meia hora
para acabar o passado.

 Joaquim Pessoa
in Português Suave

Saturday 3 May 2014

VEJO-OS PASSAR FUGAZMENTE


Vejo-os passar fugazmente, com difíceis
sorrisos, cheios de palavras inúteis,
que eles vaziaram quase sem reparar,
ao fim duns anos de verem a mesma
cara ao espelho, ao largo de uma revolta
que os sobressaltou há tempos e agora não sabem
o que hão-de fazer dela. Cada vez mais externo,
não há nada deles, apesar dos fatos únicos,
apesar do gesto que ensaiam cada noite
com um desassossego ansioso de primado.
Para quê saber quem são e donde vêm?
Acompanhados de fantasmas e sombras,
satisfatoriamente dotados, tristes objectos
que se forjaram, às cegas marcham
pelos poucos caminhos em que a estrela brilhe.

Francesc Vallverdú

Thursday 1 May 2014

MEU PRIMEIRO DE MAIO


Todos
que marchais pelas ruas
e deteis as máquinas e as fábricas,
todos
desejosos de chegar a nossa festa
com as costas marcadas pelo trabalho,
saí a 1º de Maio,
o primeiro dos dias.
Recebê-lo-emos, camaradas,
com a voz entrecortada de canções.
Primavera,
derretei a neve.
Eu sou operário,
este dia é meu.
Eu sou camponês,
este dia é meu.

Todos,
estendidos nas trincheiras
esperando a morte infinita,
todos
os que num carro blindado
atiram contra seus irmãos,
escutai:
Hoje é 1º de Maio.
Partamos ao encontro
do primeiro dos nossos dias,
enlaçando as mãos proletárias.
Calai vossos morteiros!
Silêncio, metralhadoras!
Eu sou soldado,
este dia é meu.

Todos,
das casas,
das praças,
das ruas,
encolhidos pelo gelo invernal,
todos
torturados de fome,
das estepes,
dos bosques,
dos campos,
saí neste 1º de Maio!
Glória à gente fecunda!
Desabrochai, primavera!
Verde campos, cantai!
Soai sirenes e apitos!
Eu sou de ferro,
este dia é meu.
Eu sou a terra,
este dia é meu!


Maiakovsky

Wednesday 30 April 2014

Tríptico do Trabalho



1 - A Terra


É da terra sangrenta. Terra braço
terra encharcada em raiva e em suor
que o homem pouco a pouco passo a passo
tira a matéria-prima do amor.

Umas vezes o trigo loiro e cheio
outras o carvão negro e faiscante
uma vezes o petróleo outras centeio
mas sempre tudo menos que o bastante.

Porque a terra não é de quem trabalha
porque o trigo não é de quem semeia
e um trabalhador apenas falha
quando faz filhos em mulher alheia.

Quando o estrume das lágrimas chegar
para adubar os vales da revolta
quando um mineiro puder respirar
com as narinas de um cavalo à solta

quando o minério se puder tornar
semente viva de bem-estar e pão
quando o silêncio se puder calar
e um homem livre nunca dizer não.

Quando chegar o dia em que o trabalho
for apenas dar mais ao nosso irmão
quando a fúria da força que há num malho
fizer soltar faíscas de razão.

Quando o tempo do aço for o tempo
da têmpera dos homens caldeados
por pó e chuva por excremento e vento
mas por sua vontade libertados.

Quando a seiva do homem lhe escorrer
por entre as pernas como sangue novo
e quando a cada filho que fizer
puder chamar em vez de Pedro Povo.

As entranhas da terra hão-de passar
o tempo da humana gestação
e parir como um rio a rebentar
o corpo imenso da Revolução.
José Carlos Ary dos Santos

2 - A Fábrica

Da alavanca ao tear   da roda ao torno
da linha de montagem ao cadinho
do aço incandescente a entrar no forno
à agulha a trabalhar devagarinho.


Da prensa que se fez para esmagar
à tupia no corpo da madeira
do formão que nasceu a golpear
à força bruta duma britadeira.


Do ferro e do cimento até ao molde
que é quase um esgar de plástico sereno
do maçarico humano que nos solde
à luz da luta e não do acetileno


nasce este canto imenso e universal
sincopado  enérgico  fabril
sereia que soou em Portugal
à hora de pegarmos por Abril.


Transformar a matéria é transformar
a própria sociedade que nós fomos
ser operário é apenas saber dar
mais um pouco de nós ao que nós somos.


Um braço é muito mas por si só não chega
por trás da nossa mão há uma razão
que faz de cada gesto sempre a entrega
de um pouco mais de força. De mais pão.


Estamos todos num único universo
e não há uns abaixo outros acima
pois se um poema é uma obra em verso
um parafuso é uma obra-prima.


Operários das palavras ou do aço
da terra  do minério  do cimento
em cada um de nós há um pedaço
da força que só tem o sofrimento.


Vamos cavá-la com a pá das mãos
provar que em cada um nós somos mil
é tempo de alegria meus irmãos
é tempo de pegarmos por Abril.


José Carlos Ary dos Santos

3 - O Futuro

Isto vai meus amigos... isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente.

Isto vai meus amigos... isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente.

Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.

O que é preciso é termos confiança
se fizermos de Maio a nossa lança
isto vai meus amigos... isto vai.


 José Carlos Ary dos Santos

Sunday 27 April 2014

PROPÓSITO


Far-me-ei cada dia mais amigo dos loucos,
mas sem gritos; ou seja daqueles
que escondem e queimam o amor
no fogo secreto do cachimbo da vida
e o dão com o fumo e o ar que respiram,
em qualquer lugar;
ou seja (ou, por exemplo, se querem agora):
quando voltam a casa do trabalho,
ou vão pela rua,
ou sobem ao eléctrico, ou entram na igreja
que é talvez onde menos se gasta
deste santo Incenso,
ou quando... etcétera, etcétera, etcétera.
Deixemo-nos de palavras: sei que me entendem.

Josep Grau

Thursday 24 April 2014

Três retratos à la minuta


O BURGUÊS

A gravata de fibra como corda
amarrada à camisa mal suada
um estômago senil que só engorda
arrotando riqueza acumulada.

Uma espécie de polvo com açorda
de comida cem vezes mastigada
de cadeira de braços baixa e gorda
de cómoda com perna torneada.

Um baú de tolice. Uma chatice
com sorriso passado a purpurina
e olhos de pargo olhando de revés.

Para dizer quem é basta o que disse
é uma besta humana que rumina
é um filho da puta   é um burguês.

O BOMBISTA

Flamejante auriflama incendiada
patriótica face entumecida
com dentes de coroa cariada
e alma nacional - apodrecida.

Galões de oficial. Na face armada
um sorriso de arcanjo genocida
mais os comendadores da comendada
comandita que nos comanda a vida.

Olhar alarve mas não inocente
na mão aberta a palma democrata
na mão escondida a saudação fascista.

É fácil perceber que nem é gente
é um simples piolho que se cata
é um filho da puta   é um bombista.

A BRUXA

As tetas são balofas almofadas
recheadas de esterco e de patranhas
da boca fogem bichas torturadas
pelo próprio veneno das entranhas.

As pernas são varizes sustentadas
pela putrefacção das bastas banhas
os olhos duas ratas esfomeadas
e as mãos peludas tal como as aranhas.

Nasce do estrume e vive para o estrume
a língua peçonhenta larga fel
e é uma corda que ela-própria-puxa.

Sai-lhe da boca pus e azedume
tem pústulas espalhadas pela pele
é filha de si própria.   É uma bruxa.

Monday 21 April 2014

POETAS IMORTAIS


Há poetas
que se dizem imortais
porque nada os afecta.
Penteados e engomados
têm suaves estalos
e fazem o seu papel
de poetas de bem.

Há poetas
que se dizem intemporais
e só os cativa
a rosa,
a andorinha
ou uma palavra viva.
E se falo disto
é porque há poetas
que se dizem imortais
porque tocam timbales e trombetas.

Conheci-os
quando era rapaz.
Uma tarde,
armados dos instrumentos,
vieram-me buscar
e fomos todos juntos
à casa grande da vila.
Recordo bem o falsete,
e as rosas na parede,
e a música do soneto,
e o vinho azedo e os pastelinhos,
e o sorriso da presidenta.

Não voltei lá mais.
Deve ser por isso
que, quando me encontram pela rua,
não me falam
certos poetas imortais.

Juan Vergés

Friday 18 April 2014

O rumor de tantas águas


Inclino-me levemente sobre a nudeza devassada pelos anos. Um rio suspende a corrente em meus lábios rodeados pelo rumor de tantas águas. Quero que a linguagem simbolize um templo de absolvição e reza nas palavras em fuga pelos olhos. Deponho sobre o altar o naufrágio que começa em muitas bocas.
Graça Pires

Tuesday 15 April 2014

FIANÇA


Como uma só cara tenho,
tenho uma palavra só.
Quem tem duas faz-me dó,
ou, pior, dele desdenho.
Sabedor de donde venho,
certo de para onde vou,
embora cego de pó,
em me encontrar me entretenho.
Sou senhor de algum engenho
e tenaz também o sou.
E àqueles a quem me dou
em dar-me inteiro me empenho.

Armindo Rodrigues

Saturday 12 April 2014

Cadeiras vazias


Em cardume
nos olhos dos peixes
lá estavam os pescadores

Na véspera dos relâmpagos
e outros afectos
dulcíssimos corações
clareavam as noites
e nós só podíamos fazer
o que fizémos

sentámos à mesa
os ausentes
levitámos em voz alta
o sussurro das marés
recolhemos metáforas
e algumas estrelas
no chão das águas

soltámos um grito

celebrámos as cadeiras vazias

Eufrázio Filipe

Wednesday 9 April 2014

E o vento trouxe este coro de presos do Aljube


«Houve, Noite:
só nós, os que não acreditamos no céu,
tivemos coragem de gritar a esta carcaça a fingir de vida: NÃO!

Nós, sem morte nem mundo,
para aqui a apodrecer nas tumbas do sol secreto
e a sonhar com um céu para os outros na Terra
que só o ódio vê.

E é esta a nossa guerra.
E é esta a nossa fé.»

José Gomes Ferreira

Sunday 6 April 2014

No princípio dos pássaros


Nunca foi importante
salvar o mundo
construir poemas
com palavras inintelegíveis

saber se és vento
barco relâmpago
mulher incerta
metáfora
escarpa
ou flor de estação

importante é quando passas
corpo de seara
sem magoar os cravos

e dulcíssima te desfolhas

Sempre me apaixonei
por esta desordem de cores
quando passas

não pelos teus passos
mas pela sua leveza
como no princípio dos pássaros

Eufrázio Filipe