Friday 30 March 2012

O COMBOIO DE SERVIÇO


1
Por ordem expressa do Fuhrer,
o comboio de luxo expressamente feito para o Congresso do Partido em Nuremberga
recebeu o nome de COMBOIO DE SERVIÇO.
O que quer dizer que
os que o tomam prestam com isso um serviço
ao povo alemão.


2
O comboio de serviço
é uma obra-prima da técnica ferroviária. Os passageiros
têm apartamentos privativos. Pelas largas janelas
vêem os camponeses alemães mourejar pelos campos.
Se por acaso transpirassem nesse momento
poderiam tomar banho
em cabines cobertas de ladrilhos.
Um subtil sistema de luzes permite-lhes
ler à noite, de pé, sentados ou deitados, os jornais
com as grandes reportagens sobre os benefícios do regime.
Os vários apartamentos
comunicam entre si por linhas telefónicas
tal como as mesas dos grandes dancings cujos clientes
podem perguntar às mulheres das mesas vizinhas
o preço que cobram.
Sem sair da cama os passageiros também podem
ligar o rádio, que transmite as grandes reportagens
sobre os erros dos outros regimes. Jantam,
se assim o desejarem, no respectivo apartamento,
e fazem as respectivas necessidades
em privadas privativas revestidas de mármore.
Cagam
Na Alemanha.


Brecht

Tuesday 27 March 2012

Acerca de uma viagem


Abrimos portas,
fechamos portas,
franqueamos portas
e no termo da viagem única
nem cidade
nem porto.

O comboio descarrila,
o barco naufraga,
o avião cai.

Há uma inscrição gravada no gelo.
Se eu pudesse escolher
recomeçar ou não esta viagem
recomeçá-la-ia.


Nazim Hikmet

Saturday 24 March 2012

FLOR DA LIBERDADE

Sombra dos mortos, maldição dos vivos.
Também nós... Também nós... E o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
a sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra,
ou debaixo da terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
a Deus, à tirania, à eternidade.

Sepultos insepultos,
vivos amortalhados,
passados e presentes cidadãos:
temos nas nossas mãos
o terrível poder de recusar!
E é essa flor que nunca desespera
no jardim da perpétua primavera.

Miguel Torga

Wednesday 21 March 2012

Balada daquele que cantou na tortura



E se houvesse que voltar
atrás eu voltaria
Uma voz sobe dos ferros
e fala de um outro dia

Dizem que na sua cela
dois homens tinham entrado
sussurravam Capitula
vê-se que estás cansado

Podes viver a vida
acata os nossos conselhos
diz a palavra que livra
e viverás de joelhos

E se houvesse que voltar
atrás eu voltaria
A voz que sobe dos ferros
fala já para o novo dia

Só uma palavra e a porta
abre-se logo e tu sais
Assim o carrasco exorta
Sésamo Não sofras mais

Uma palavra só só mentira
o teu destino retém
na doçura das manhãs
pensa pensa pensa bem

E se houvesse que voltar
atrás eu queria ir
A voz que sobe dos ferros
fala aos homens do porvir


Aragon

Sunday 18 March 2012

1936



Lembra-o tu e lembra-o aos outros,
quando enojados da baixeza humana,
quando furiosos pela dureza humana:
Este homem único, este acto único. esta fé única.
Lembra-o tu e lembra-o aos outros.

Em 1961, numa cidade estranha,
mais de um quarto de século
depois. Vulgar a circunstância,
obrigado tu a uma leitura pública,
por causa dela conversaste com esse homem:
um antigo soldado
da Brigada Lincoln.

Há vinte e cinco anos, este homem,
sem conhecer a tua terra, para ele distante
e estranha, resolveu ir para lá
e nela, se chegasse o momento, decidiu apostar a sua vida,
julgando que a causa que lá estava em jogo
então, digna era
de lutar pela fé que enchia a sua vida.

Que essa causa pareça perdida,
nada importa;
que tantos outros, pretendendo crer nela,
apenas trataram de si mesmos,
importa menos.
O que importa e nos basta é a fé de alguém.

Por isso outra vez hoje a causa te parece
como naqueles dias:
Nobre e tão digna de lutar por ela.
E a sua fé, aquela fé, ele a manteve
através dos anos, da derrota,
quando tudo parece atraiçoá-la.
Mas essa fé, a ti mesmo dizes, é o que somente importa.

Obrigado, Companheiro, obrigado
pelo exemplo. Obrigado por me dizeres
que o homem é nobre.
Nada importa que tão poucos o sejam:
Um homem, um só, basta
como testemunho irrefutável
de toda a nobreza humana.


Luis Cernuda

Thursday 15 March 2012

MINHA MAIS QUERIDA


Minha mais querida
Mais do que nunca
é necessário
amar.
Mas amar bem.
Amar muito.
Amar sempre mais.
Amar sim como só eu te amo.
Amar mais do que é preciso.
Amar muitas vezes desesperadamente.
Amar sempre tanto
tanto...
tanto...
tanto quase como quem delira.

Ou então meu amor
amar acima de tudo
e além de todos
mas amar sempre mais do que a raiva
mil vezes raivosa de quem na prisão
nos odeia!


José Craveirinha

Monday 12 March 2012

PRANTO PELO DIA DE HOJE


Nunca choraremos bastante quando vemoso gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
que quem ousa lutar é destruído
por troças por insídias por venenos
e por outras maneiras que sabemos
tão sábias tão subtis e tão peritas
que nem podem sequer ser bem descritas.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Friday 9 March 2012

Gabriel Péri




Morreu um homem cuja única defesa
era saudar a vida
Morreu um homem cuja única conduta
era o seu ódio às armas
Morreu um homem que continua a luta
contra a morte e os fantasmas
pois tudo quanto ele queria
queríamos nós então
e queremos hoje ainda:
A felicidade - luz
nos olhos e no coração da gente
E na terra justiça sempre

Palavras há que dão vida
e são palavras inocentes
a palavra calor a palavra confiança
amor justiça e a palavra liberdade
a palavra criança e a palavra simpatia
e certos nomes de flores e certos nomes de frutos
a palavra coragem e a palavra descobrir
e a palavra irmão e a palavra camarada
e certos nomes de países e de aldeias
e certos nomes de mulheres e de amigos

Juntemos-lhes Péri
Péri morreu pelo que nos dá vida
tratemo-lo por tu tem o peito crivado
porém graças a ele melhor nos conhecemos
tratem-nos por tu está viva a sua esperança


Paul Éluard

Tuesday 6 March 2012

LIEBKNECHT MORTO



O cadáver jaz pela cidade inteira.
Em todos os prédios, em todas as ruas.
Todos os quartos
se esvaem no escorrer do seu sangue.

Começam das fábricas as sereias
infinito imenso
estrondeante assobio,
na cidade inteira uivante.

E com um clarão
nos brilhantes
imóveis dentes
começa o cadáver
a sorrir.


Rudolf Leonhard

Saturday 3 March 2012

Coro dos órfãos



Nós órfãos
queixamo-nos ao mundo:
Cortaram-nos o nosso ramo
e atiraram-no ao fogo -
lenha de queimar fizeram dos nossos protectores -
Nós órfãos jazemos nos campos da solidão.
Nós órfãos
queixamo-nos ao mundo:
na noite os nossos pais jogam connosco às escondidas -
por trás das dobras negras da noite
as suas faces nos olham,
falam as suas bocas:
Lenha seca fomos nós na mão dum lenhador -
mas os nossos olhos fizeram-se olhos de anjos
a olham para vós,
através das dobras negras da noite
eles olham -
Nós órfãos
queixamo-nos ao mundo:
Das pedras fizemos os nossos brinquedos,
pedras têm caras, caras de pai e mãe,
não murcham como flores, não mordem como bichos -
e não ardem como lenha seca quando as metem no forno -
Nós órfãos queixamo-nos ao mundo:
Mundo porque nos tiraste as nossas mães ternas
e os pais que dizem: Meu filho, és parecido comigo!
Nós órfãos não somos parecidos com ninguém mais no mundo!
Ó Mundo
queixamo-nos de ti!


Nelly Sachs

Thursday 1 March 2012

AVISO



A noite que precedeu a sua morte
foi a mais breve de toda a sua vida
Pensar que estava vivo ainda
era um fogo no sangue até aos punhos
A sua força era tal que ele gemia
Foi quando atingia o fundo deste horror
que o seu rosto num sorriso se lhe abriu
Não tinha apenas um único camarada
mas sim milhões e milhões de camaradas
para o vingarem sim bem o sabia
E então para ele ergue-se a alvorada


Paul Éluard