Thursday 30 August 2018

Bilhete


Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...


Mário Quintana

Monday 27 August 2018

SALAMARGO


Salamargo é o pão de cada dia;
pão de suor, amargonia.
Amargura por viver nesta agonia,
salamargando a tirania.


Salamargo é o tirano, segundo a segundo
amargo sal que salga o mundo.
Assassino das manhãs, carrasco das tardes,
ladrão de todas as noites
e de seu mistério profundo;
carcereiro de seu irmão, a transmudar
a fantasia em noite de alcatrão.

Amaro é fado de nascer escravo,
amargonauta em mar de sal,
nesta salsa-ardente irreal em que cravo
unha e dentes, buscando viver
como um bravo entre decadentes.

Salamargo, tão amargo quanto
o mais amargo sal, é comer
o pão de cada dia sob o tacão
da tirania. Um pão amargo,
sem sal, pobre de amor e fantasia.
Salamargo existir sem poesia.

Eduardo Alves da Costa,
no livro “No Caminho com Maiakóvski”

Friday 24 August 2018

falha astronómica


aquela poeta que te diz 
que o mais importante da poesia 
é falar verdade, não para terceiros
senão para o próprio
e percorres um caminho 
de anos-luz e relâmpagos 
algumas órbitas 
em torno do teu coração 
um pulsar um quasar
uma volta no ar 
um horizonte de eventos que nem a luz deixa escapar
tantas léguas tantas lágrimas tantas verdades
que nunca escolherás a certa.
 
Miguel Tiago

Tuesday 21 August 2018

De onde vem a cidade


Quando passeio à noite pela cidade recolhida em íntimo silêncio,
olho admirado as ruas e as árvores
e interrogo enigmático sobre os olhos cerrados dos homens citadinos
o serem eles o sentido disto tudo.

E penso nas formosas flores públicas plantadas para todos,
penso na janela clara aberta sobre o mar,
nas avenidas livres fechando junto ao céu....
então maciamente vou,
espantado de estar na vida a ser um homem
e a cumprir o tempo de ser grande,
descerrar as pálpebras descidas dos humanos irmãos emparedadas
e mostrar-lhes porque existem avenidas,
de onde vêm as casas e as fábricas
e porquê quando rente à madrugada
um pássaro cantando entre o cimento e as flores
na tenra primavera da cidade
pode encher de frescura e de sentido e vida.

Eduardo Valente da Fonseca.

Saturday 18 August 2018

Pausa


Sentada, de costas para mim, olhas
esse ponto em que todos os sonhos
se concentram; e a serenidade envolve-te
com o seu lençol efémero, para que
não penses em mais nada.

Nuno Júdice

Wednesday 15 August 2018

Trânsito


Ao voltar a casa, com o rádio do carro
aberto, lembrei-me de ti, com o cabelo apanhado,
o alfinete de dama a prender-te o vestido,
que podia ser uma farda, e o teu rosto
dividido: de um lado, a luz da vida,
do outro, a obscuridade que o flash do
fotógrafo não conseguiu resolver. Posso
dizer-te que amo os teus olhos, e que
muitas vezes os atravessei para descobrir
o outro lado da alma, onde se esconde
o que os teus lábios não revelam. Um
dia, porém, perguntar-te-ei: quem és?
E talvez saias da sombra, abrindo-me
um sorriso que me empurrará para
a outra margem que não conheço. Servir-me-ás
de guia? Ou voltarás para o teu canto,
desapertando o alfinete de dama que
sempre te incomodou. O rádio do carro
continua aberto, com as notícias do dia;
mas o que quero saber é o que tens
para me contar, e o tempo apagou.

Nuno Júdice

Sunday 12 August 2018

Ninfa apanhada no bosque


Por que se despe? Ou por
que se veste? Entre um e outro
movimento, é o corpo que
se oferece. A quem? Para
quê? Não se sabe quem
a merece: fauno à deriva
em campos sem ninguém,
ou amante perdido
à sua mercê. É para ti
que ela olha? Ou para
mim, que a pinto? No seu
pedaço de campo, talvez
me acolha; e se disser
que não a quero, minto.

Nuno Júdice

Thursday 9 August 2018

Distância


Entro no teu quarto, como se
entrasse no mar. Um temporal de perguntas
enrola os teus cabelos. Lanças-te
contra as ondas de um sonho antigo,
e abres a porta da varanda
para te sentares à cadeira
do oriente, apanhando o vento
da tarde. «Não te levantes, digo,
e deixa que os teus olhos se libertem
de sombra, depois de uma noite
de amor, para me abrigarem
da luz estéril da madrugada.» Mudas
de posição, como se me tivesses
ouvido; e o teu corpo enche-se
de palavras, como se fosses
a taça da estrofe.

Nuno Júdice

Monday 6 August 2018

Nau dos Corvos


Nau parada de pedra que tanto navega
e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar
nau só a ocidente e todo o mar em frente
condensada insolência intemerato desafio
a mundos devassados mas desconhecidos
corvos de água e de vento aves feitas de tempo
que tão completamente são dois olhos côncavos
e fitos só nas coisas que importam verdadeiramente
nave que sulca não as águas mas os dias
navio de carreira entre o tempo e a eternidade
num espaço onde um simples segundo tem a minha idade
pedra que só aqui se liquefaz
água que só aqui solidifica
cais quente coração de corvos
vistos por quem nunca antes vira a solidão caber
em tão poucos centímetros quadrados
do mínimo de corpo necessário para a vida se afirmar
ó nau navio corvos pedra água cais
aqui estou eu sozinho todos os demais ficaram para trás
Aqui nada decorre e nada permanece
aqui os corvos são a solidão multiplicada
consistente conglomerada mas estilhaçada
unificada mas feita em bocados
De todos estes bicos curvos extremo ósseo dos corvos
onde depois os corvos passam a ser pedra e depois água
sai uma voz vasto discurso cada vez
Os corvos são a pedra menos pétrea de cabo
é nos corvos que o mar deixa de ser marítimo
Nesta nau se efectua esse comércio secular
da terra feita pedra com a água mais doméstica do mar
A névoa envolve e como que enovela os corvos
a rocha é um buliçoso e anárquico aeroporto
donde em cada momento sai um corvo
aéreo ante cujo vulto que levanta eu me curvo
O moreira baptista decerto gostaria que os corvos
se não os palradores os que ganham prémios literários
pelo menos os rudes negros os incultos mas os verdadeiros corvos
poisassem sempre no mais alto do rochedo
mas quando no inverno sopra o vento norte
e sentem frio poisam nalguma parte baixa para o lado sul
e estão-se marimbando para a propaganda
de um país vendido que eles não compraram
eles humildes corvos aves e não peixes nunca tubarões
Só aqui podem ver-se às vezes coisas invisíveis
o infinito aqui começa a acabarem nenhum outro sítio se ouve tanto o inaudível
nem assim se define o que não tem definição
Deste porto se parte para mais que transatlânticas viagens
e em tão poucos segundos é difícil ver tantas imagens
Ninguém é cidadão deste tão pétrea pátria
nem mesmo há quem mereça aqui poisar só por instantes a cabeça
até que a prostração mais funda no total desapareça
Permite ó nau petrificar aqui
a minha sensação mais passageira
ou o meu mais instável pensamento
Eu nunca até agora e já sou velho vi
quebrar assim o tempo como quebra em ti
Que aqui o sol escureça e a noite que amanheça
neste morrer da terra onde uma vida sem cessar começa
Que após ter visto a nau mais náutica de todas essas naus
que sulcaram os inumeráveis séculos oceânicos
feitos tanto de tempo como de água
finalmente me fosse lícito fechar
definitivamente os olhos que apesar de tanto olhar
não conseguem optar entre a pedra e o mar
E só agora findas as palavras eu pressinto
pela primeira vez haver algum poema
por detrás do poema pura coisa de palavras

Ruy Belo

Friday 3 August 2018

- sem título -


tantas palavras os olhos
trementes.



o sol a pôr-se, lançando sobre os campos a incerteza

de amanhã,

e as últimas sombras de um castelo.


Miguel Tiago

Wednesday 1 August 2018

agosto


sinto a espuma espalhar-se no ar,
mar.
e o corpo a clamar pela noite,
brisa.

Miguel Tiago