Tuesday 27 February 2018

Mandei recado à cidade


Vendi as palavras todas
Vendi-as para te encontrar
E comprei o meu silêncio
Como quem vai navegar

Dos jardins falei às flores
Do teu nome começado
Do espelho dos teus olhos
E do teu corpo fechado

Mandei recado á cidade
Mandei recado ao país
E cantei para não estar só
A libertar a raiz

Depois, amor, fui á praia
Molhar-me do coração
E regressei no instante
De me dar à tua mão.

Vasco de Lima Couto

Saturday 24 February 2018

Voltar a ser (fado do regresso)


Eu vou
voltar a ser
tudo o que eu já fui um dia
tudo o que eu já queria ser
antes de te querer

Eu vou
voltar a ver
o lado bom das pessoas
as suas coisas boas
antes de entristecer

Mais vale
somar paixão, somar desilusão
até tudo nos doer
porque eu vou
Voltar a ser
tudo o que eu já fui um dia
tudo o que eu já queria ser
antes de te querer

Eu sei
que vou voltar
ao coração por um fio
porque é do meu feitio
e já não sei mudar

Mais vale
somar paixão, somar desilusão
até tudo nos doer
porque eu vou
Voltar a ser
tudo o que eu já fui um dia
tudo o que eu já queria ser
antes de te perder.

João Monge

Wednesday 21 February 2018

Eu não existo sem você


Eu sei e você sabe,
Já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo
Levará você de mim
Eu sei e você sabe
Que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos
Me encaminham pra você

Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só têm razão se se cantar
Assim como a nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você.

Vinicius de Moraes

Sunday 18 February 2018

Vozes do Mar


Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d'oiro intenso
Donde vem essa voz cheia de mágoa
Com que falas à terra, ó mar imenso?

Tu falas de festins, e cavalgadas?
De cavaleiros errantes ao luar
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?

Teus cantos d'epopeias? Tens anseios
D'amarguras? Tu tens também receios
Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz, ó mar amigo?...
...Talvez a voz de um Portugal antigo
Chamando por Camões numa saudade!

Florbela Espanca

Thursday 15 February 2018

Dança de Mágoas


Como inútil taça cheia
Que ninguém ergue da mesa
Transborda de dor alheia
Meu coração sem tristeza

Sonhos de mágoa figura
Só para ter que sentir
E assim não tem a amargura
Que se temeu a fingir

Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.

Fernando Pessoa

Monday 12 February 2018

Sem Sentido


Naquela noite sem lua
talvez por andar perdido
entrei pela tua rua
em sentido proíbido

Tentei fazer marcha-atrás
mas disseste divertida
que o sentido tanto faz
se a rua não tem saída

Começando a sentir frio
e sendo já noite morta
ao ver um lugar vazio
estacionei à tua porta

Que sentido tão perverso
teve essa noite sem lua
andar em sentido inverso
p'ra acabar na tua rua

Se faz sentido não sei
mas não estou arrependido
dos sentidos que encontrei
nessa noite sem sentido.

Manuela de Freitas

Friday 9 February 2018

JÁ NÃO É POSSÍVEL


Já tudo é tudo. A perfeição dos
deuses digere o próprio estômago.
O rio da morte corre para a nascente.
O que é feito das palavras senão as palavras?
O que é feito de nós senão
as palavras que nos fazem?
Todas as coisas são perfeitas de
nós até ao infinito, somos pois divinos.
Já não é possível dizer mais nada
mas também não é possível ficar calado.
Eis o verdadeiro rosto do poema.
Assim seja feito: a mais e a menos.

Manuel António Pina

Tuesday 6 February 2018

SI NO EXISTIERAS


Qué sería de mí si no existieras,
mi ciudad de La Habana.

Si no existieras, mi ciudad de sueño
en claridad y espuma edificada,
que sería de mí sin tus portales,
tus columnas, tus besos, tus ventanas.

Cuando erré por el mundo ibas conmigo,
eras una canción en mi garganta,
un poco de tu azul en mi camisa,
un amuleto contra la nostalgia.

Y ahora te camino toda entera,
te vivo toda hasta la madrugada,
soy el viento en tus parques y rincones,
soy ese sol que te acaricia el alma.

Ciudad de mis amores en el polvo,
bella ciudad de podredumbre y alas,
en ti naci realmente un mes de enero
cuando golpeó en tu pecho la esperanza.

Si viví un gran amor fue entre tus calles,
si vivo un gran amor tiene tu cara,
ciudad de los amores de mi vida,
mi mujer para siempre sin distancia.

Si no existieras yo te inventaría,
mi ciudad de La Habana

Fayad Jamis

Saturday 3 February 2018

Quanto, quanto me queres


Quanto, quanto me queres?- perguntaste
Olhando para mim mas distraída;
E quando nos meus olhos te encontraste,
Eu vi nos teus a luz da minha vida.

Nas tuas mãos, as minhas, apertaste.
Olhando para mim como vencida,
"...quanto, quanto..." - de novo murmuraste
E a tua boca deu-se-me rendida!

Os nossos beijos longos e ansiosos,
Trocavam-se frementes! - Ah! ninguém
Sabe beijar melhor que os amorosos!

Quanto te quero?! - Eu posso lá dizer!...
- Um grande amor só se avalia bem
Depois de se perder.

António Botto

Thursday 1 February 2018

Tango Ribeirinho


É à beira da ribeira
Que Lisboa abre os olhos
Quando acorda de manhã
À cabeça da peixeira
Há fruta do mar aos molhos
Que põe mais sal na manhã

É à beira da ribeira
Que os marujos vão curtir
Os restos da bebedeira
Que apanharam a sorrir

É à beira da ribeira
Que acorda a cidade inteira
Que apregoa a vendedeira
Que a gente gosta de ouvir

Este tango ribeirinho
Sabe a Tejo e sabe a vinho
Este tango da cidade
Tem navalhas de saudade
Tem punhais de solidão
A doer devagarinho
Dentro do meu coração

Este tango ribeirinho
Tem fragatas de carinho
Tem andorinhas nas telhas
E cravos de pôr na orelha
Sardinheiras encarnadas
Junto às toalhas de linho
Penduradas nas sacadas
Este tango ribeirinho

É à beira da ribeira
Que há canalhas e há malandros
E mulheres de meia porta
Mas à beira da ribeira
Há cabazes de morangos
Que ainda nos sabem a horta

É à beira da ribeira
Que vai esperar o estivador
Uma manhã toda inteira
Que lhe comprem o suor

É à beira da ribeira
Que um ramo de erva cidreira
Traz a ternura que cheira
A Lisboa, meu amor.

José Carlos Ary dos Santos