Wednesday 30 December 2015

O MORTO NA PRAÇA DE BEYAZIT


Um morto está deitado,
um jovem de dezoito anos,
ao sol dos dias,
à noite com as estrelas,
na Praça de Beyazit em Istambul.

Um morto está deitado:
segura numa mão o seu livro de estudo,
na outra o sonho interrompido antes de ter começado
em Abril no ano de mil novecentos e sessenta,
na Praça de Beyazit em Istambul.

Um morto está deitado.
Foi abatido,
e a ferida da bala
abre-se-lhe na fronte como um cravo vermelho,
na Praça de Beyazit em Istambul.

Um morto está deitado,
o sangue a cair na terra, gota a gota,
até ao dia em que o meu povo em armas
com cantos de liberdade
vier tomar de assalto a praça grande.

Nazim Hikmet

Sunday 27 December 2015

VARIAÇÕES EM TOM MENOR

Para jardim te queria.
Te queria para gume
ou o frio das espadas.
Te queria para lume.
Para orvalho te queria
sobre as horas transtornadas.

Para a boca te queria.
Te queria para entrar
e partir pela cintura.
Para barco te queria.
te queria para ser
canção breve, chama pura.

Eugénio de Andrade

Thursday 24 December 2015

ARENGA ÀS ROSAS E AOS HOMENS


Rosas, crescei, robustecei-vos, multiplicai-vos
até invadir as caixas fortes em caudais
até impedir as metralhadoras,
até semear a luz e a Primavera,
sobre a pólvora e o ferro,
até ocupar o ódio e as entranhas
das bombas, dos obuses, das balas e morteiros.

Crescei, rosas, crescei. Aumentai sem tréguas!
Enchei os olhos dos carniceiros,
florescei os cérebros belicosos,
à gente podre corroei-a de esperança,
iluminai o cérebro dessas bestas
que se alimentam de ouro, sangue e lágrimas;
que são capazes de matar a vida
porque ela em nossas mãos brilha e palpita.

Árvores, águas, pássaros, pomares,
cereais, videiras, operários, mães, plantas,
óleos, músicas, máquinas, ideias,
vamos proclamar a resistência
do amor contra a guerra.

O ar está a ser semeado de suspeitas
para nos amargurarem a alegria,
para que nos matemos, tu e eu, irmão,
agora que as dores amadurecem e o sentido
vai revelar-se ao mundo.

Trabalhai
de costas para o medo. Abri os olhos,
rosas, homens, ao bem e à beleza.
Crescei! Cantai! A vida é nossa:
a terra é nossa e nosso é o futuro.

Trabalhos, pensamentos, esperanças,
vossas e nossas, rosas, homens.
Nós acendemos as estrelas
e trazemos o dia. Através de nós
a paz realizar-se-á.

Estamos em perigo, rosas, homens,
perfume, sol, matéria, inteligência,
morte, ciência, fé, pedra, perdão, Deus.
Afoguemos os bárbaros em luzes!
Avançai, rosas, homens! Ocupai o mundo!

Ramon de Garciasol

Monday 21 December 2015

NOCTURNO A DUAS VOZES

- Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?

- Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
poisou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação.

- Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre de outra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.

- Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que meus dedos têm
para colher na noite.

- Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos,
e um rumor de água
vem no vento.

- Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.

- Cala-te, as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
à mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.


Eugénio de Andrade

Friday 18 December 2015

É PRECISO ESTAR CEGO


É preciso estar cego
ou ter nos olhos aparas de vidro,
cal viva,
areia a ferver,
para não ver a luz que brota em nossos actos,
que ilumina por dentro a nossa língua,
a nossa palavra diária.

É preciso querer morrer sem um sinal de glória e de alegria,
sem participação nos hinos futuros,
sem ficar na lembrança dos homens que hão-de julgar o passado
sombrio da Terra.

É preciso querer já em vida ser passado,
obstáculo sangrento,
coisa morta,
seco olvido.

Rafael Alberti

Tuesday 15 December 2015

DISCURSO TARDIO À MEMÓRIA DE JOSÉ DIAS COELHO

Éramos jovens, falávamos do âmbar
ou dos minúsculos veios de sol espesso
onde começa o verão; e sabíamos
como a música sobe às torres do trigo.

Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,
desatando um a um os nós do silêncio.
Pegavas num fruto: eis o espaço ardente
do ventre, espaço denso, redondo, maduro,

dizias: espaço diurno onde o rumor
do sangue é um rumor de ave -
repara como voa, e poisa nos ombros
da Catarina que não cessam de matar.

Sem vocação para a morte, dizíamos. Também
ela, também ela não a tinha. Na planície
branca era uma fonte: em si trazia
um coração inclinado para a semente do fogo.

Morre-se de ter uns olhos de cristal,
morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios.

Catarina, ou José - o que é um nome?
Que nome nos impede de morrer,
quando se beija a terra devagar
ou uma criança trazida pela brisa?

Eugénio de Andrade

Saturday 12 December 2015

CHAMEI POR MIM


Chamei por mim quando cantava o mar
Chamei por mim quando corriam fontes
Chamei por mim quando os heróis morriam
E cada ser me deu sinal de mim.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Wednesday 9 December 2015

REQUIEM PARA PIER PAOLO PASOLINI

Eu pouco sei de ti mas este crime
torna a morte ainda mais insuportável.
Era Novembro, devia fazer frio, mas tu
já nem o ar sentias, o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa; uma navalha, o rumor
de abril podem matá-lo - amanhece,
os primeiros autocarros já passaram,
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira
página, o sangue apodrece ou brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida,
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, excepto claro
os meritíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Saló, não se importariam de assinar.
Seja qual for a razão, e muitas há
que o Capital, a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto.
A farsa a nojenta farsa essa continua.

Eugénio de Andrade

Sunday 6 December 2015

Canção dos que vivem das suas mãos


Não peço o de ninguém.
Apenas o meu pão,
meu ar.

Apenas a flor,
o fruto do que fazem minhas mãos.


Jesus Lopez Pacheco

Thursday 3 December 2015

Arte de navegar

Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e minha mão marinheiro.

Eugénio de Andrade

Tuesday 1 December 2015

O DENTE


Bebé tem um dente.
A família está contente:
«aba a boquinha
moste o dente...»
toda contente.
Bebé sorri
Bebé sabe já
que é preciso ter dente.

Mário Castrim