Saturday 30 December 2017

PASSAGEM DO ANO


O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e o seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e que sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

Carlos Drummond de Andrade

Wednesday 27 December 2017

PÁTRIA MINHA

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
é minha pátria. Por isso, no exílio
assistindo dormir meu filho
choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
como, por que e quando minha pátria.
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sol e a água
que elaboram e liquefazem a minha mágoa
em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria,
de niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
de minha pátria, de minha pátria sem sapatos
e sem meias, pátria minha
tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
em contacto com a dor do tempo, eu elemento
de ligação entre a acção e o pensamento

Eu fio invisível no espaço de todo o adeus
Eu, o sem Deus!
Tenho-te no entanto em mim como um gemido
de flor; tenho-te como um amor morrido
a quem se jurou; tenho-te como uma fé
sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
e sem pé direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra,
quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi Alfa e Beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
à espera de ver surgir a Cruz do Sul
que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
o não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
lábaro não; a minha pátria é desolação
de caminhos, a minha pátria é terra sedenta
e praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
que bebe nuvem, come terra
e urina mar.
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
que um dia traduzi num exame escrito:
«Liberta que serás também»
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
que brinca em teus cabelos e te alisa,
pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
e ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
e pedirei que peça ao rouxinol do dia
que peça ao sabiá,
para levar-te presto este avigrama:
«Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes».

Sunday 24 December 2017

LITANIA PARA O NATAL DE 1967


Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos vir pedir contas do nosso tempo

David Mourão-Ferreira

Thursday 21 December 2017

Há quarenta anos - Vinicius


«1969 é para Vinicius de Moraes um ano "português". Lisboa recebe-o entusiasticamente. aplaudindo-o com o máximo calor»: assim se diz na nota à 4ª edição de «O Operário em Construção e Outros Poemas», publicada em 1975, com selecção e prefácio de Alexandre O'Neill.

É certo que Vinicius tinha passado por cá em finais de 1968, a caminho de Itália, tendo então participado num serão em casa de Amália, onde também estiveram a Natália, o Ary, o Mourão-Ferreira - e desse serão nasceu o disco «Amália/Vinicius».
Mas foi em 1969 que o Poeta nos visitou como queríamos.

Recordemos alguns momentos dessa visita.
No dia 13 de Dezembro de 1969, no Teatro Villaret, em Lisboa, Vinicius - com Baden e Marcinha - realizam o seu segundo (ou terceiro?) espectáculo.
Um espectáculo inesquecível.
A dada altura, Vinicius falou da situação que então se vivia no seu País: no dia anterior, os militares fascistas que, com o apoio dos EUA, ocupavam o poder no Brasil há cinco anos, tinham instaurado o Ato Institucional Nº5 - o sinistro AI5 - que institucionalizava a censura, a repressão, a prisão, a tortura, o assassinato.
E o Poeta falou da tragédia que caíra sobre o seu povo - comparando-a à situação que se vivia em Portugal.
Depois, leu o poema Pátria Minha, que Baden acompanhou dedilhando, no violão, o Hino do Brasil.
Mais tarde - aproximava-se o espectáculo do fim - chegou a notícia (que creio não viria a confirmar-se) de que o Chico teria sido preso.
E o Poeta falou do seu amigo... - enquanto a Marcinha chorava... e o público chorava...
Um espectáculo inesquecível.

Nos dias que se seguiram, o grupo faz mais uns tantos espectáculos - na boite Ad Lib, em Lisboa, e em várias cidades portuguesas: um êxito, em todo o lado.
Vinicius foi, então, muito criticado por alguns... críticos que achavam que poeta não deve fazer poemas para canções e muito menos ir a boite cantar e dizer poemas... enfim, os «argumentos» que, de facto, pretendiam (eles sabiam porquê...) menorizar a qualidade maior da poesia de Vinicius (como, mais ou menos por essa altura, fizeram - e continuam a fazer... - em relação ao nosso Zé Carlos).

A vinda de Vinicius a Portugal, fora antecedida, em Abril de 1969, pela publicação, pela Dom Quixote, do livro acima referido: «O Operário em Construção e Outros Poemas» - que foi, talvez, a primeira, ou uma das primeiras edições portuguesas de poemas de Vinicius.
O livro teve imediato sucesso: ainda nesse ano saiu uma 2ª edição, no ano seguinte, outra... e já lá vão creio que umas dez...
A 4ª edição - a de 1975 - teve enorme vantagem de vir acompanhada por uma «Carta-Prefácio Para Vinicius de Moraes», na qual o O'Neill fala precisamente desse «ano português» de Vinicius.
Trata-se de um texto que - mesmo indo este post já tão longo e com a consciência de que estou a abusar da vossa paciência - não resisto a deixar-vos aqui.

«Amigo:

Quando estiveste, da primeira vez, por aqui dando show, umas granfas (loiras e morenas notáveis, como diria Mestre Carlos, mas ganfas), comentando os preços da boate onde, em duas ou três sessões, te produziste com a tua turma, disseram ou fizeram dizer: «Quem não tem dinheiro, não tem Vinicius.» Vinicius, vícios... não ligues. Olha que elas dispunham de muito bago. Estavam era a ser desajeitadas na maneira de te homenagear. Algumas conheciam de ti o poeta encaixilhado no sério. Charmoso, mas, apesar de tudo, respeitável-respeitoso. Usavam o teu "Soneto do Amor Total" não como tabatière à musique, nem como máquina de pensar, mas como caixinha de arroubos, entre as muitas outras que sempre trazem na malinha, com coisinhas para pôr ou tirar dor de cabeça.
Dessas, uma quantas mostraram-se decepcionadas contigo por teres descido do livro à boate, do soneto ao samba. E fizeram constar a decepção, a ofensa que sentiam. Não ligues. Estavam mordidinhas de inveja perante a quantidade de liberdade que tu, em cada noite, produzias!
Marcus Vinicius, eu vi-te aquém e além palco, con-vivi-tigo. No Alentejo, que agora, mais do que nunca, ai de nós, é um adjectivo, vi-te, convivi-te no teu simplório convívio. Estavas em construção, como sempre não definitivo. Tua felicidade, teu riso mais riso, era entre pessoal amigo.
Há muita gente ainda por aí (tenho medo que aumente!) que de ti o que quer é o catorze, quer dizer o soneto, e rejeita teu outro meio de comunicar, que afinal é o mesmo: tocantar.
Perceba, por uma vez, essa gentalha, que o Vinicius poeta e o Vinicius sambista são da mesma igualha!
São
o operário
em construção.

Abração
Alexandre O'Neill
Lisboa, Nov. 75»



Monday 18 December 2017

NATAL À BEIRA-RIO


É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
a trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
que ficava, no cais, à noite iluminado...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
mais da terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

David Mourão-Ferreira

Friday 15 December 2017

CANÇÃO DO MILICIANO RECÉM-CASADO



Tuesday 12 December 2017

NATAL UP-TO-DATE


Em vez da consoada há um baile de máscaras
Na filial do Banco erigiu-se um Presépio
Todos estes pastores são jovens tecnocratas
que usarão dominó já na próxima década

Chega o rei do petróleo a fingir de Rei Mago
Chega o rei do barulho e conserva-se mudo
enquanto se não sabe ao certo o resultado
dos que vêm sondar a reacção do público

Nas palhas do curral ocultam microfones
O lajedo em redor é de pedras da lua
Rainhas de beleza hão-de vir de helicóptero
e é provável até que se apresentem nuas

Eis que surge no céu a estrela prometida
Mas é para apontar mais um supermercado
onde se vende pão já transformado em cinza
para que o ritual seja muito mais rápido

Assim a noite passa. E passa tão depressa
que a meia-noite em vós nem se demora um pouco
Só Jesus no entanto é que não comparece
Só Jesus afinal não quer nada convosco

David Mourão-Ferreira

Saturday 9 December 2017

DIVISA

Olhos, olhai em frente!

É convencer-se a gente
de que tudo o que fica para trás
serve, apenas, de ponto de partida
e nada mais!
São ruínas e as ruínas
lembram as coisas que foram
e já não são.
Mas em frente
há a vastidão inculta e inabitada,
a vastidão que espera e que deseja
alguém.

Em frente!... O que não é
mas que vai ser
por nossas mãos!
Olhos, olhai em frente!

Atrás de nós
há Sodomas inúteis
e Gomorras em brasa!

Álvaro Feijó

Wednesday 6 December 2017

NA TAL


Na tal habitação volto a falar-te
Na tal que já eu-próprio não conheço
Na tal que mais que tálamo era berço
Na tal em que de noite nunca é tarde

Na tal de que por fim ninguém se evade
Na tal a que sei bem que não regresso
Na tal que umbilical cabe num verso
Na tal sem universo que a iguale

Na tal habitação te vou falando
Na tal como quem joga às escondidas
Na tal a ver se tu me dizes qual

Na tal de que eu herdei só este canto
Na tal que para sempre está perdida
Na tal em que o natal era Natal.

David Mourão-Ferreira

Sunday 3 December 2017

A United Fruit Co.

Quando soou a trombeta, estava
tudo preparado na terra
e Jeová repartiu o mundo
entre a Coca-Cola Inc., a Anaconda,
a Ford Motors e outras entidades:
a Compañia Frutera Inc.
reservou para si o mais suculento,
a costa central da minha terra,
a doce cintura da América.
Baptizou de novo as suas terras
como «Repúblicas das Bananas»
e sobre os mortos adormecidos,
sobre os heróis inquietos
que conquistaram a grandeza,
a liberdade e as bandeiras,
estabeleceu a ópera bufa:
alienou os arbítrios,
ofereceu coroas de césar,
desembainhou a inveja, atraíu
a ditadura das moscas,
moscas Trujillo, moscas Tachos,
moscas Carias, moscas Martinez,
moscas Ubico, moscas húmidas
de sangue humilde e melaço,
moscas bêbedas que zumbem
por cima das campas populares,
moscas de circo, sábias moscas
entendidas em tirania.
Entre as moscas sanguinárias
a Frutera desembarca,
nivelando o café e as frutas
nos seus barcos que deslizarão
como bandejas o tesouro
das nossas terras submersas.

Entretanto, pelos abismos
açucarados dos portos,
caíam índios sepultados
no vapor da manhã:
um corpo roda, uma coisa
sem nome, um número caído,
uma raiz de fruta morta
derramada no monturo.

Pablo Neruda

Friday 1 December 2017

NATAL


U
m Deus à nossa medida...
A fé sempre apetecida
de ver nascer um menino
divino
e habitual.
A transcendência à lareira
a receber da fogueira
calor sobrenatural.

Miguel Torga

Thursday 30 November 2017

GUITARRA


Foram caçar guitarras
em noite de lua cheia.
E trouxeram esta,
pálida, fina, esbelta,
olhos de inesgotável mulata,
cintura de madeira aberta.
É jovem, mal voa.
Mas já canta
quando ouve noutras jaulas
entoar sons e cantigas.

Tem na jaula esta inscrição:
«Cuidado: sonha».

Nicolas Guillén
(In O Grande Zoo)

Monday 27 November 2017

SEGADOR

Aguça a tua foice!

Na terra
que o sangue
rega e aquece,
a semente germina
e a seara cresce.

A seara está madura, segador
Aguça a tua foice!

Joaquim Namorado

Friday 24 November 2017

RECUSA


Convosco, não, traidores!
Que poeta decente poderia
acompanhar-vos um segundo apenas?
À quente romaria do futuro
não vão homens obesos e cansados.
Vão rapazes alegres,
moças bonitas,
trovadores,
e também os eternos desgraçados,
revoltados
e sonhadores.

Miguel Torga

Tuesday 21 November 2017

A QUE MORREU ÀS PORTAS DE MADRID

A que morreu às portas de Madrid,
com uma praga na boca
e a espingarda na mão,
teve a morte que quis.
teve o fim que escolheu.
Nunca, passiva e aterrada, ela rezou.
E antes de flor, foi, como tantas, pomo.
Ninguém a virgindade lhe roubou
depois dum saque - antes a deu
a quem lha desejou,
na lama dum reduto,
sem náusea, mas sem cio,
sob a manta comum,
a pretexto do frio.
Não quis na retaguarda aligeirar,
entre champagne, aos generais senis,
as horas de lazer.
Não quis, activa e boa, tricotar
agasalhos pueris,
no sossego dum lar.
Não sonhou minorar,
num heroísmo branco,
de bicho de hospital,
a aflição dos aflitos.

Uma noite, às portas de Madrid,
com uma praga na boca
e a espingarda na mão,
à hora tal, atacou e morreu.

Teve a sorte que quis.
Teve o fim que escolheu.

Reinaldo Ferreira

Saturday 18 November 2017

O HOMEM DE CALICITO


Em Calicito há um jipe,
que é de Armando Díaz;
um automóvel azul,
que é de Armando Díaz;
a mulher mais bela da terra,
que é de Armando Díaz.
Poça pró Armando Díaz...!
Se algum dia morrer
ficam sem dono
o único jipe,
o único automóvel azul,
a mulher mais bela de Calicito.

Domingo Alfonso

Wednesday 15 November 2017

A MÃO E O ARADO


Não
nós não estamos submersos
nem destruídos
nem sequer dispersos
ou vencidos.

O que nós estamos,
onde nós estamos,
é no chão ávido de madrugada
sedentos de irromper.

Mas só a mão e o arado lavram
o incêndio da manhã.

Francisco Viana

Sunday 12 November 2017

CRIAÇÃO


Criar não é sonhar, mas, ao invés,
atento construir o que se sonha.
Fugir alguém ao sonho é que é vergonha,
pois sonhar é fugir à pequenez.

Armindo Rodrigues

Thursday 9 November 2017

COLUNA

Levanta a fronte, levanta!

Que toda a gente saiba de quem é.
Não faças dela a cinza duma chama
nem planta nua dum pé
abrindo covas na lama.

Levanta a fronte, levanta!

Não faças dela espelho a descoberto
onde o quebrado corpo se despoja,
num chão intérmino e deserto
em que a dor se roja.

Levanta a fronte, levanta!

Para quê essas sombras que te inundam,
sombras roxas e lôbregas de becos?
Para quê essas rugas que se afundam
como leitos de rios secos?

Levanta a fronte, levanta!

Foi a cela que te anoiteceu
com charcos de medo e gelo?
Quem trouxe um sonho como o teu,
jamais deve perdê-lo.

Levanta a fronte, levanta!

Quem ergue a fronte, levanta a voz,
levanta o sonho num facho a arder:

Luís Veiga Leitão

Monday 6 November 2017

CONFIANÇA


O que é bonito neste mundo, e anima,
é ver que na vindima
de cada sonho
fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
que se não prova
se transfigura
numa doçura
muito mais pura
e muito mais nova...

Miguel Torga

Friday 3 November 2017

AS VOZES

o senhor administrador dentro do carro
olha de sobrolho franzido
a manifestação em frente à sede da empresa

a polícia está lá
para evitar que a gentalha se aproxime
e o porteiro
perfilado abre-lhe a porta

o senhor administrador
esfrega as mãos
sorri à secretária
e pergunta
se as cartas para os seus pares
foram enviadas e se as reserva das suites
estão garantidas

«custa um milhão» - esclarece ela solícita -
não há problema - diz ele - são personalidades políticos
jornalistas empresários nossos amigos
mas aquela gente à porta ó minha querida
já disse alguma coisa ao ministro
ligue-lhe e passe-me o telefone»

pouco depois correrias gritos tiros

e alguns dias mais tarde o
ministro - mas meu caro não sei o que lhe hei-de dizer
eles não desistem

e na manhã levantada reerguem-se as vozes uma
canção um protesto a vida

José Vultos Sequeira

Wednesday 1 November 2017

MAIS TARDE SIM


Escreverei mais tarde
simples poemas claros
e falarei das aves
sem sofisma.

Escreverei mais tarde
de navios, lagunas,
das tuas roupas soltas
manchadas de luar...

Escreverei mais tarde
saudades da infância
e de pedras e rosas
sem dúbios sentidos.

Escreverei mais tarde
de um anel muito simples
e das tardes plenas
em que o amor se inscreve.

Mas agora deixai-me
chorar sobre estas lágrimas.

Egito Gonçalves

Monday 30 October 2017

TRÊS PABLOS


Há anos... piores do que outros.
Está nesse caso o de 1973.
Já aqui falámos dele a propósito do golpe fascista no Chile - e, também, do assassinato de Bento Gonçalves no Campo de Concentração do Tarrafal.

Hoje é a vez de o Cravo de Abril assinalar a passagem do 35º aniversário das mortes de três Pablos, todos figuras maiores da arte e da cultura mundiais, todos homens que puseram a sua arte e o seu génio ao serviço das mais nobres causas humanas, todos desaparecidos nesse «ano assassino de 1973»:

Pablo Picasso, em 8 de Abril.
Pablo Neruda, em 23 de Setembro (faz hoje precisamente 35 anos).
Pablo Casals, em 22 de Outubro. Por isso, aqui fica esta

«BREVE CONSIDERAÇÃO À MARGEM DO ANO ASSASSINO DE 1973»

que Vinicius escreveu e leu num espectáculo memorável realizado em Dezembro desse ano:


Que ano mais sem critério
esse de setenta e três...
Levou para o cemitério
três Pablos de uma só vez.

Três Pablões, não três pablinhos
no tempo como no espaço
Pablos de muitos caminhos
Neruda, Casal, Picasso.

Três Pablos que se empenharam
contra o fascismo espanhol
Três Pablos que muito amaram
Três Pablos cheios de sol

Um trio de imensos Pablos
em génio e demonstração
feita de engenho, trabalho,
pincel, arco e escrita à mão.

Três publicíssimos Pablos:
Picasso, Casal, Neruda
Três Pablos de muita agenda
Três Pablos de muita ajuda.

Três líderes cuja morte
o mundo inteiro sentiu...
Ó ano triste e sem sorte:
Vá prá puta que o pariu.

Vinicius de Moraes

Friday 27 October 2017

NÃO ESPERES O TEMPO

Camarada poeta: se puderes
pega na palavra e não te cales
mais. Digo que não esperes,
para cantar, o tempo da colheita.

Agora a fome é tanta
que a palavra pão também se come.
Quem diz pão diz fome e a fome de a não ter não é sobeja.

Digo que a palavra seara faz crescer
o grão da raiva de a não ter.
Digo que a palavra fonte faz jorrar
rios de sede até ao mar.

A palavra trabalho, a palavra suor,
a palavra amiga, a palavra amor.
A palavra precisa, de vendaval ou brisa:
a que denuncia, a que profetiza.

Digo que a palavra que disseres
se pode desfolhar como os malmequeres:
ou muito ou pouco ou tudo ou nada.
O que não pode é ficar calada.

Carlos Aboim Inglês

Tuesday 24 October 2017

NA PASSAGEM DE UM ANO


Erros nossos não são de toda a gente
tropeçamos às vezes na entrega
mas retomamos sempre a marcha em frente
massa humana que nada desagrega.

Para nós o passado e o presente
são futuro no qual o povo pega
com suas mãos de luz incandescente
que aquece que deslumbra mas não cega.

Para nós não há tempo. O tempo é vento
soprando ano após ano sobre a história
que para nós é vida e não memória.

Por isso é que no tempo em movimento
cada ano que passa é menos tempo
para chegar ao tempo da vitória.

José Carlos Ary dos Santos

Saturday 21 October 2017

E ENTÃO?

Todos já vimos
nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão
retratos de meninas e meninos
a defender a liberdade de armas na mão.

Todos já vimos
nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão
retratos de cadáveres de meninos e meninas
que morreram a defender a liberdade de armas na mão.

Todos já vimos!

E então?

Fernando Sylvan

Wednesday 18 October 2017

PARA O MEU TIO


Para o meu tio, que era anarquista,
e que não me deixaram conhecer
porque morreu doente no exílio.

Para o meu pai, que não era de nenhum partido,
nem percebia muito disso,
mas que lutou como voluntário na guerra,
apesar de ver que a perdíamos.

Para o pai do meu cunhado, que figura
na grande lista dos desaparecidos
pelos caminhos que levavam a França.

Para todos os que morreram
com uma bala na frente
nas trincheiras.

Para todos os que morreram na areia
dos campos de concentração franceses.

Para todos os que morreram de fome
nos campos de extermínio alemães.

Para todos os que nunca figuraram
nas listas dos martirizados.

Para todos os que lutaram
para que nós não conhecêssemos
o mundo onde tivemos de nascer.

Para todos vós,
mortos e vivos,
homens e mulheres,
cobardes e valentes.

Para todos vós,
eu, filho da derrota,
envio
toda a minha gratidão,
admiração e respeito.


Enric Larreuela

Sunday 15 October 2017

MENINO POVO

O meu Menino Povo de olhos resplandecentes
mora
na choça negra de terra e colmo
a meio da floresta,
entre a fome
e a noite.
E a sua mãe pobre
nada mais tem para lhe dar
que dois grandes seios.
Agora
o piar das aves agoirentas enche a noite
e o Menino treme
de pavor.
Lá fora uivam as alcateias
e a floresta range diabolicamente.
Parece que a noite
será sempre noite...
Ai se assim fosse!
Mas eu que venho de longe
e sou a clara esperança
trago comigo o canto das calhandras
na alvorada,
e juro ao meu Menino Povo de olhos resplandecentes
que a manhã não tarda,
ela aí vem a caminho por todos os caminhos do mundo,
é breve Dia.

Papiniano Carlos

Thursday 12 October 2017

BALADA PARA UM CONSTRUTOR CIVIL


É este o monumento erguido em tua honra:
um bloco de cimento de cento e vinte apartamentos
Ele é o teu orgulho por ele andaste
de um lado para o outro constantemente discutiste
o preço do ferro e da mão-de-obra deste gratificações
a funcionários municipais assinaste papéis papéis papéis
acordaste em cada manhã impaciente por ver mais um andar
sobre a tua cabeça que fez de noite contas e mais contas
jantaste repetidamente com o engenheiro e os arquitectos
a quem generosamente pagaste os whiskies e o marisco
mostraste algumas vezes à esposa e às amantes o edifício em construção
e passeaste-as no Mercedes dando largas à tua alma de betão
tiveste problemas com o pessoal ameaçaste
os homens que fizeram greve e untaste as mãos
aos que não aderiram e continuaram o trabalho
seguiste passo a passo a construção com a baba na boca
é meu! é meu! disseste para ti mesmo olhando para o alto
tiveste longas conversas com o gerente do Banco que te sorriu e financiou
e a quem prometeste não esquecer no acto da escritura
passaste entre os operários que erguiam as paredes e perguntaste
olá, como vai isso? mas referias-te sempre ao trabalho deles
mandaste pôr uma coroa de flores na campa do servente que
desabou como um pássaro tonto de um andaime do décimo-terceiro andar e
só não acompanhaste o funeral porque a tua filha fez anos nesse dia
fizeste servir na última tarde um almoço para todos
esquecendo alguns ressentimentos e onde havia vinho à discrição
agradeceste pessoalmente a cada um e botaste discurso
mostrando-lhes claramente que és um homem preocupado
que sabe muito bem tudo o que faz

Porém agora que está pronto o monumento
é sobre ti que me interrogo:
Sabes tu quem foram Engels Stravinsky Cesário?
e Van Gogh? E Byron? E Rodin?
Saberás tu que assassinaram Pasolini?
Saberás que Neruda construiu edifícios com pedras preciosas e rubis sangrentos
e que Éluard carregou a sua arma e disparou versos contra os inimigos da França?
Saberás que Aragon amou Elsa nas trincheiras
entre ratos e cadáveres de milhares de crianças fardadas
e que tinham grandes olhos azuis?
Saberás que Camões foi expulso do Império porque ergueu o talento
mais acima que o de todos os outros? E que também Dante foi
espulso de Florença e errou como um pedreiro
à procura de trabalho para morrer feito um cão
longe das portas de ouro da cidade que hoje o reclamam?
Saberás que Fernando Pessoa também olhava para as casas
como quem olha para as árvores?
Será que tu te interessas por estas ninharias?
Oh! como eu gostaria que ao menos pudesses ter presente
o que um dos nossos poetas deixou escrito sobre
as casas as casas as casas!


Joaquim Pessoa

Monday 9 October 2017

DIÁLOGO QUASE POESIA

Tu sabes, mãe - disse o pássaro - os aviões também voam.
- Voam mas não têm coração. Engolem homens aos milhares.
- Para quê?
- Para que o voo seja pago.
- Voo pago? Como pode ser pago e ser voo?
- É por isso que os aviões não cantam. Só nós cantamos
porque ninguém pode comprar o nosso voo.

Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Friday 6 October 2017

TUDO O QUE EU QUERIA


Queria poder sentar-me com todos à mesa
e conversar tranquilamente, falar do tempo,
dos amigos, da cidade, tomar um copo
e um pires de caracóis (esta rodada é minha)
e assim, sem gritar, irmo-nos entendendo,
descobrirmos, todos juntos, por que sofremos
as moléstias do tempo em partes iguais,
e não achamos abrigo quando chove, que é quase sempre.

Queria, depois de jantar (claro que um bom jantar)
acender um bom charuto, abrir um livro
de versos de paisagem ou do mar do retorno
(cor de vinho dizem-me, e eu acho que tanto faz)
e lavar o meu olhar com o vaivém
da luz, da noite e do mar.

Queria, sem olhar para o norte
encontrar uma esperança sobre esta terra que é a minha
e a de todos; ver um amanhã melhor
conseguível no meu trabalho e no dos outros;
encontrar o amor; um pouco de paz se ainda há
e uma moral que não nos leve à morte, mas à vida.

Já terão adivinhado do que se trata,
o que lhes queria dizer
é que me lixa ter de escrever versos.


Jaume Pomar

Tuesday 3 October 2017

O JARDINEIRO MÍOPE

O jardineiro míope levanta-se às cinco horas e vai dar alpista
às flores.
E a seguir rega os pássaros
e enquanto vai regando vai dizendo:
«que bem que cantam as minhas papoulas!».

Um dia, a Liga das Senhoras mais Bondosas do Mundo,
teve um gesto malvado
e ofereceu óculos ao jardineiro míope
que ajustou implacavelmente as imagens
perdeu toda a poesia
e viu tudo de maneira tão clara
que teve a ideia escura de pedir um emprego de funcionário público
enquanto a presidente da Liga
da Liga mais bondosa do mundo
subia para o Céu
e se sentava à mão direita de Deus Padre
que lhe enfiou uma bofetada divina
que todos nós ouvimos em forma de trovão.

Sidónio Muralha
("Que Saudades do Mar" - 1971)

Sunday 1 October 2017

A MÁSCARA DO MAL


Dependurada na parede tenho
uma escultura de madeira japonesa:
a máscara dum demónio pintada a laca dourada.
Olhando para ela, vejo
as veias inchadas da testa, indicando
quanto esforço custa ser mau.

Brecht

Saturday 30 September 2017

Casquinha e Caravela

27 DE SETEMBRO DE 1979

O primeiro governo constitucional, chefiado por Mário Soares, deu início, em 1976, a uma brutal ofensiva contra as conquistas da Revolução, tendo como objectivo destruir tudo o que de mais avançado e progressista tinha sido alcançado - ofensiva que foi prosseguida por todos os governos que lhe sucederam ao longo de 32 anos.

A Reforma Agrária foi o primeiro alvo dos inimigos de Abril.
Contra ela foi lançada uma operação cheia de ódio de classe que se desenvolveu através de ilegalidades, de roubos de terras e de gado, de sabotagens e de violenta repressão policial.
A resistência dos trabalhadores foi heróica.

No dia 27 de Setembro de 1979, uma força da GNR - comandada pelos capitães Martins e Faria e pelo sargento Maximino, todos conhecidos pelo seu ódio à Reforma Agrária - acompanhada por um grupo de agrários e por funcionários do Ministério da Agricultura, procedeu a um roubo de um rebanho de vacas na UCP Bento Gonçalves, no concelho de Montemor-o-Novo.
Os trabalhadores resistiram.
A GNR - agindo, como no tempo do fascismo, a mando dos agrários... - disparou, ferindo vários trabalhadores e assassinando dois:
ANTÓNIO CASQUINHA, de 17 anos e JOSÉ CARAVELA, de 54 anos - ambos militantes comunistas.

O Governo - na altura chefiado por Maria de Lurdes Pintasilgo - mandou instaurar um inquérito.
A principal conclusão desse inquérito também fazia lembrar as conclusões tiradas pelos ministérios do interior no tempo do fascismo quando as forças repressivas matavam:
a GNR disparou, sim, mas para o ar...

O Cravo de Abril assinala, hoje, o assassinato dos dois camaradas com um poema escrito no dia do seu funeral - que se realizou para o cemitério de Escoural e ao qual acorreram dezenas de milhares de pessoas.


(Em memória de José Caravela e António Maria Casquinha, mortos em Montemor-o-Novo pela Guarda)

1
Aqui
nesta planície de sol suado
dois homens desafiaram a morte, cara a cara,
em defesa do seu gado
de cornos e tetas.

Aqui
onde agora vejo crescer uma seara
de espigas pretas.

2
Quando os dois camponeses desceram às covas,
ante os punhos cerrados de todos nós,
chorei!

Sim, chorei
sentindo nos olhos a voz
do que há de mais profundo
nas raízes dos homens e das flores
a correrem-me em lágrimas na face.

Chorei pelos mortos e pelos matadores
- almas de frio fundo.

Digam-me lá:
para que serviria ser poeta
se não chorasse
publicamente
diante do mundo?

José Gomes Ferreira

Wednesday 27 September 2017

O VOO DE SUA ALTEZA

O rei vai partir.
Seu avião a jacto de platina
ronca em estereofónico
e de suas turbinas
jorra uma disenteria de rubis.

Mas um bode pára na pista
e sua barbicha que não é a jacto
desafia o avião do rei.

É um bode subversivo
- gritam milhares de pessoas
simetricamente quadradas.
E o bode é enquadrado
na lei que protege os soberanos
e é fuzilado por ter tido a ousadia
de roubar ao rei um minuto de voo.

Mais um bode fuzilado
por crime de lesa-majestade
- pensam os reis.

Mais um rei que voa
por crime de lesa-bode
- respondem os bodes.

(Questão de pontos de vista)

A verdade é que ser bode
não oferece garantia nenhuma.

Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Sunday 24 September 2017

SURDINA DE NATAL PARA OS MEUS NETOS


Ó David Ó Inês
vamos ver o menino
inda mais pequenino que vocês

Vamos vê-lo tapado
sob o céu do futuro
com a sombra de um muro
a seu lado

Vamos vê-lo nós três
novamente a nascer
vamos ver se vai ser
desta vez

David Mourão Ferreira

Thursday 21 September 2017

OS AMIGOS COERENTES

Minha geração
tem os gestos rudes
do semeador
e as mãos calejadas
de quem dá aos sonhos
contornos precisos
dos dois pés na terra,
da quilha que singra,
do arado que rasga,
do rasgo que cria.

Fomos perseguidos
porque a nossa falta
era a lucidez
e a coragem de
apontar os crimes
sem lhes dar perdão,
porque perdoar
é ser conivente
e essa conivência
é igual ao crime.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Monday 18 September 2017

ESTRADA NOVA


Nós estamos jogando picaretas de aço,
ó montanha negra nós te venceremos!
Vimos em fúria dos confins do mundo,
vimos em fúria dos confins do mundo,
nós estamos jogando picaretas de aço!

É uma estrada nossa, é uma estrada nova
ó companheiros do sangue vermelho!
Nós estamos jogando picaretas de aço,
nós estamos jogando picaretas de aço,
é uma estrada nossa, é uma estrada nova!

Vimos em fúria dos confins do mundo,
picaretas vibrai, abatei a montanha!
Nós estamos rasgando uma estrada nova,
vimos em fúria dos confins do mundo.

Papiniano Carlos

Friday 15 September 2017

SONETO AO SENHOR CORREIO

Senhor Correio, Senhor Dom Correio,
por favor, por favor, Vossa Excelência
não abra as minhas cartas porque é feio
e tudo o que for feio falta à decência.

Eu leio as suas cartas? Não, não leio.
Se suas cartas lesse era demência.
Senhor Correio, veja se há um meio
de ter um pouco menos de inclemência.

Porque enfim o que escrevo a mim o devo,
Senhor Correio, é meu tudo o que escrevo,
é a tinta expressando as minhas falas.

É qualquer coisa mais que intimidade.
Senhor Correio, sabe que é verdade,
violar minhas cartas é matá-las.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Tuesday 12 September 2017

ANÚNCIO


Eu que cheguei em silêncio
falarei do Homem,
falarei dos homens sobre a terra,
do Rio dos homens sobre a terra.
E eu sei que não há dois homens iguais,
por isso eu os conheço todos um por um
e os chamo pelos seus nomes,
e no entanto eu sei que são o mesmo Homem,
espelho de mil faces.
Há alguma coisa mais admirável?
Eu que falo da multidão insolúvel como de um Rio,
falo do Homem cheio
de personalidade.
Eu falo do Homem jamais cativo
mesmo quando o fecharam com grades e paredes
e mordaças,
do Homem que nasceu livre e será livre
apesar de tudo!
e estou vendo a marcha invencível dos homens
e glorificando-a.


Papiniano Carlos

Saturday 9 September 2017

ACUSO


Vocês todos,
malditos
que nos roubaram a vida,
são, liricamente,
pesseguinhos

- filhos da fruta.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Wednesday 6 September 2017

PRIMEIRO DIA


Depois será como se nascêssemos de novo,
trouxéssemos para o dia
a nossa mais funda e mais bela face.

Dia de chuva solar em nossos cabelos ilimitados.
Ergueremos os ombros cansados.
E nos reveremos nas águas
do próprio rio que somos, inextinguível.

Pousarão as aves marinhas e as terrestres
nos nossos ombros escorrendo sol e limos,
e as rãs adormecerão nos paúis
onde nos diluímos sofregamente raízes.
E os peixes e os navios navegarão em nosso sangue,
na maior das navegações
de todos os tempos.

Erecto estará o nosso braço, e formidável.
Sob as nossas mãos
crescerão as formas anunciadas.
E as palavras nos brotarão dos lábios,
e serão searas
e aves do tamanho do mundo.


Papiniano Carlos

Sunday 3 September 2017

A CORJA

A vida é bonita,
mas alguém sujou
seus rios que riem,
roubou os seus pães
alvos e morenos,
queimou os seus livros
que eram livros livres,
cortou suas flores
que tinham sol dentro,
fechou os seus homens
com sede de fora,
degradou as grades
imundas o mundo.

A vida é bonita
fizeram-na feia,
quem for o culpado
que levante o dedo.

- E a corja impassível
de braços cruzados,
falando da lua,
fingindo que não.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Friday 1 September 2017

HERANÇA


Que rosa vermelha entre loureiros
há ressuscitado?
A pé, companheiros,
que os mortos estão de pé a nosso lado.

Roxos de fome, angústia, sede e morte
na solidão:
nada nos importe
senão a aurora que levamos no coração.

Que nos arranquem língua, veias, olhos, nervos,
a pele que reste.
Não é de servos
o relâmpago espantoso que nos veste!

Papiniano Carlos

Wednesday 30 August 2017

Natal


Nasceu.
Foi numa cama de folhelho,
entre lençóis de estopa suja,
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos Reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroas de espinhos
mas coroas de baionetas,
postas até ao fundo
do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

Álvaro Feijó

Sunday 27 August 2017

DESAFIO

Desafio,
travo de amora silvestre,
agulhas da chuva no rosto,
soco do vento contrário,
distância além do horizonte,
vem
desafio
salutar vem,
revigorante vem
dizer-me que não sou capaz
para que te prove que sou.

Vem, desafio,
esfarrapa a flanela do dia-a-dia
com as tuas patas de corcel selvagem
que faiscam estrelas do chão,
galopa nas trevas e vem,
atravessa os povoados e vem,
carregado da palavras duras,
de palavras autênticas,
de palavras-palavras,
bate na minha vidraça
e na dos meus companheiros
para que acordemos todas as manhãs
plenamente
quando os galos acordam.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Thursday 24 August 2017

NOITE DE NATAL


(A um pequenito, vendedor de jornais)

Bairro elegante, - e que miséria!
Roto e faminto, à luz sidéria,
o pequenito adormeceu...

Morto de frio e de cansaço,
as mãos no seio, erguido o braço
sobre os jornais, que não vendeu...

A noite é fria. a geada cresta;
em cada lar, sinais de festa!
E o pobrezinho não tem lar...

Todas as portas já cerradas!
Ó almas puras, bem formadas,
vede as estrelas a chorar!

Morto de frio e de cansaço,
as mãos no seio, erguido o braço
sobre os jornais, que não vendeu,

em plena rua, que miséria!
Roto e faminto, à luz sidéria,
o pequenito adormeceu...

Em torno dele -ó dor sagrada!
Ao ver um círculo sem geada
na sua morna exalação,

pensei se o frio descaroável
do pequenino miserável
teria mágoa e compaixão...

Sonha talvez, pobre inocente!
Ao frio, à neve, ao luar mordente,
com o presépio de Belém...

Do céu azul, às horas mortas,
Nossa Senhora abriu-lhe as portas
e aos orfãozinhos sem ninguém...

E todo o céu se lhe apresenta
numa grande Árvore que ostenta
coisas dum vivido esplendor,

onde Jesus, o Deus Menino,
ao som dum cântico divino,
colhe as estrelas do Senhor...

E o pequenito extasiado,
naquele sonho iluminado
de tantas coisas imortais,

- no céu azul, pobre criança!
Pensa talvez, cheio de esp'rança,
vender melhor os seus jornais...

António Feijó

Monday 21 August 2017

COSTA MARTINS


Pedro d'Anunciação, no Sol, reportando-se à acção de Costa Martins como ministro do Trabalho dos governos de Vasco Gonçalves, diz que o agora falecido militar de Abril «ficou identificado com o que o gonçalvismo teve de melhor (no seu tempo adoptou o 13º mês de salário) e de pior (a forma pouco democrática com que se fizeram saneamentos e se prucuraram impor as posições comunistas)».
Para começar não está mal: uma no cravo, outra na ferradura - sendo que a da ferradura é, por parte do escriba, a retoma das velhas atoardas inventadas pela reacção e que, hoje, passados 35 anos continuam a ser usadas como se se tratasse de verdades absolutas, incontestáveis e incontestadas.

Logo a seguir, o escriba descobre que «o que o marcou mais negativamente (a Costa Martins) foi a sua campanha de "um dia de salário para a nação", segundo a qual os trabalhadores foram instados, com a pressão dos saneamento sobre eles, a trabalharem no domingo, dia 6 de Outubro, e a entregarem o vencimento desse dia ao Estado».
Ou seja: o escriba volta a pegar na palavra da reacção e dispara-a impiedosamente contra a verdade.

Embalado, acrescenta: «Sintomaticamente, o PCP lamentou agora a morte de Costa Martins, tendo Jerónimo de Sousa salientado que ele ficará ligado "às conquistas sociais do pós-revolução".
Ou seja: sintomaticamente, com este pedaço de prosa manhosa, o escriba mostrou o que valia e ao que vinha...

É claro que quem escreve assim, não poderia esquecer-se de repetir a maior e a mais ignóbil de todas as calúnias lançadas pelas forças da contra-revolução contra Costa Martins - e que serve de mote ao escriba para titular a sua prosa: «Costa Martins - O ministro gonçalvista que tropeçou na justiça».
E, como quem não quer a coisa, mas querendo, tropeçando na calúnia, o escriba escreve: «O deputado socialista António Arnaut garantiu mais tarde no Parlamento haver provas de que o ex-ministro desviara verbas do dia de salário e pediu uma investigação ao assunto».

Ora bem: se o escriba quisesse - mas o escriba não quis... - poderia ter esclarecido desde logo que nem «o deputado socialista» nem ninguém tinha provas desse «desvio de verbas» - pela simples e incontornável razão de que não houve desvio nem de um centavo - como Costa Martins demonstrou inequivocamente.

Se o escriba quisesse - mas o escriba não quis... - poderia ter esclarecido desde logo que foi o próprio Costa Martins - e não «o deputado socialista», o qual lançou a calúnia e com isso se deu por satisfeito - quem obrigou a que tudo fosse esclarecido, numa atitude inédita e raras vezes vista antes ou depois.
E se o escriba quisesse - mas o escriba não quis... - poderia, ainda, incitar os leitores a proceder ao didáctico exercício de comparar a atitude de Costa Martins - tomando ele próprio a iniciativa de obrigar a que tudo fosse esclarecido e mostrando provas concretas da falsidade das acusações de que era alvo - com as atitudes dos que, hoje, se dizem vítimas de calúnias, de cabalas e etc.

A terminar - e cheio de motivos para se sentir satisfeito com a forma como cumpriu a tarefa - o escriba suja-se assim: «Mas a verdade é que a vida deste militar cheio de expedientes deixou realmente algumas sombras».

É MENTIRA: a verdade é que a vida deste militar é um exemplo de dignidade, de verticalidade, de coerência - tudo qualidades cuja existência, ao que parece, o escriba desconhece.

Friday 18 August 2017

CONQUISTA


Irmão!
O que tu és sou eu.
Olha bem para mim:
tenho mãos, tenho pés,
tenho olhos fundos,
tenho beiços rubros
e um sexo aberto!
O meu destino é o teu:
terra! terra! somos terra!
terra vermelha e negra,
terra farta de campos,
poeira de astros, lama,
rocha, estrume, flor,
terra vermelha e negra,
terra! mãos e pés,
olhos fundos, boca rubra,
sexo aberto ao Sol!
Orgulha-te comigo, irmão!
Saúda comigo a vida!
E pelo Sol e pelos bichos,
pelo cascalho dos caminhos,
pelas fonte e montanhas,
por todas as misérias e por todas as chagas,
por todo o esterco e por todo o génio,
por tudo o que de mesquinho e grande
nos fez Homens,
Irmão!
olha-me bem a fundo nos olhos
e, de mãos dadas, rompe comigo
à conquista do mundo!


Papiniano Carlos

Tuesday 15 August 2017

DOCE COMPANHEIRA

Música, música,
doce companheira,
teus olhos tão claros
parecem de espuma.

Teus cabelos caem
nos ombros da vida,
tuas mãos afagam
os rostos marcados.

Música, música,
ensina ao futuro
a dialogar
com homens e estrelas.

Sacode a inércia,
acorda os que dormem,
a hora chegou
de estar acordado.

Música, música,
talvez amanhã
os gestos dos homens
encontrem teus gestos.

O mundo é pequeno,
o amor é grande,
este desencontro
não pode durar.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Saturday 12 August 2017

CANÇÃO DE UM PÉ DESCALÇO


Bati-me lá na Rotunda
Herói eles me chamaram
Pouco tempo decorrido
Nesta prisão me encerraram.

1
Meu coração abrasava
de amor pela Democracia,
odiando a Monarquia
que tanto mal nos causava.
A hora da luta esperava
quando o peito se m'inunda
duma alegria profunda.
Ao ouvir dar o sinal
bati-me lá na Rotunda-

2
Do Povo o sangue correu
assim como o dos soldados.
Os chefes, esses, coitados
nenhum deles apareceu.
Quando o inimigo cedeu
é que ao povo me mostraram.
Foi então que proclamaram
essa coisa da «República»
e ante a opinião pública
herói eles me chamaram.

3
Fui herói porque esqueci
meu dever de escravizado.
Descalço, roto, esfaimado,
os bancos eu defendi.
Bem cedo me arrependi
desse acto ter cometido.
Com os doutores eu estava
mas sem ilusões ficava
pouco tempo decorrido.

4
Com a «revolução» quem lucrou
foram Camachos e Costas,
todos têm posto e «postas»
o povo nada ganhou.
Do antigo nada mudou
só p'ra pior aumentaram
reclamando seriedade.
E em nome da Liberdade
nesta prisão me encerraram.

Anónimo

Wednesday 9 August 2017

FASCISMO NUNCA MAIS

«Quem vem para o Tarrafal vem para morrer»: era assim que dois dos directores do Campo de Concentração do Tarrafal - Manuel Reis e João da Silva - sintetizavam os objectivos da criação do Campo, corroborados pelo médico Esmeraldo Pais Prata: «Eu não estou aqui para curar doentes, mas para passar certidões de óbito».

«A chuva, o vento, o calor, a falta de água, a água inquinada, a má alimentação, os mosquitos, o paludismo, a falta de assistência médica e de medicamentos, por um lado; os trabalhos forçados, a violência dos castigos, a brutalidade dos carcereiros, por outro lado - constituíam os meios necessários para que a tarefa dos carrascos fosse levada a cabo».

O Tarrafal foi, de facto, «o espelho do fascismo».
Criado por Salazar no decorrer do processo de fascização do Estado levado a cabo na primeira metade de década de 30, para ali foram enviados 340 resistentes antifascistas, somando um total de 2 mil anos, 11 meses e cinco dias de prisão.
Desses, 32 foram assassinados.

Foi com o objectivo de prestar homenagem a esses resistentes que cerca de duzentas pessoas, respondendo ao apelo da União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), participaram esta manhã numa romagem ao Mausoléu dos Tarrafalistas, no cemitério do Alto de São João, em Lisboa - onde se encontram os restos mortais dos 32 assassinados.

O Mausoléu é um monumento belo, simples, em forma de muro semi-circular, espiralado, no centro do qual se ergue um cubo com dezasseis gavetas em cada uma das duas faces laterais e, na face frontal, a legenda:
«AOS QUE NA LONGA NOITE FASCISTA FORAM PORTADORES DA CHAMA DA LIBERDADE E PELA LIBERDADE MORRERAM NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DO TARRAFAL»


O Cravo de Abril recorda os nomes dos 32 resistentes antifascistas assassinados no Tarrafal:

FRANCISCO JOSÉ PEREIRA
PEDRO DE MATOS FILIPE
FRANCISCO DOMINGOS QUINTAS
RAFAEL TOBIAS
AUGUSTO DA COSTA
CÂNDIDO ALVES BARJA
ABÍLIO AUGUSTO BELCHIOR
FRANCISCO ESTEVES
ARNALDO SIMÕES JANUÁRIO
ALFREDO CALDEIRA
FERNANDO ALCOBIA
JAIME DE SOUSA
ALBINO COELHO
MÁRIO DOS SANTOS CASTELHANO
JACINTO DE MELO FARIA VILAÇA
CASIMIRO FERREIRA
ALBINO ANTÓNIO DE CARVALHO
ANTÓNIO GUEDES DE OLIVEIRA E SILVA
ERNESTO JOSÉ RIBEIRO
JOÃO LOPES DINIS
HENRIQUE VALE DOMINGUES
BENTO ANTÓNIO GONÇALVES
DAMÁSIO MARTINS PEREIRA
ANTÓNIO DE JESUS BRANCO
PAULO JOSÉ DIAS
JOAQUIM MONTES
MANUEL ALVES DOS REIS
FRANCISCO NASCIMENTO GOMES
EDMUNDO GONÇALVES
MANUEL DA COSTA
JOAQUIM MARREIROS
ANTÓNIO GUERRA 
 

Sunday 6 August 2017

MALDIÇÃO


Maldito seja o que busca
matar o sonho dos homens.
Maldita seja a vergonha.
Maldito seja o pesar.
Maldito seja o silêncio
que nos cala antes da morte.
Maldito seja o que é falso,
ou induz em confusão.
Malditos sejam os bons
que o são só por piedosos.
Maldito seja o cruel
por ódio ou por piedade.
Maldito seja o que aceita
argumentos que não pesa.
Maldito seja o que força
alguém a acreditá-lo.
Maldito seja o orgulho
do que o alheio despreza.
Maldito seja o que finge
humildades que não tem.
Maldito seja o que faz
dos desejos maldição.
Maldito seja o desejo
de só nada desejar.
Maldito seja o que inveja
o pão de que não precisa.
Maldito seja o que encontra
no fome conformação.
Maldito seja o que é feio
por gosto de fealdade.
Maldita seja a beleza
que à vida seja traição.
Maldita seja a riqueza
que de fartura não serve.
Maldita seja a fartura
quando a todos não chegar.
Maldito seja o saber
arvorado em tirania.
Maldito seja o que ignora
e não dá por ignorar.
Maldito seja o que impõe
o que para si não quer.
Maldito seja o que jura
contra a sua convicção.
Maldito seja o que alcança
sem o esforço de colher.
Maldito seja o temor
de luz de mais nos cegar.

Armindo Rodrigues

Thursday 3 August 2017

OS AMIGOS

Os amigos partilham
a sua desgraça
em pedaços iguais.
Cada qual recebe
o mesmo quinhão
de tristeza e bruma
e tudo repartem
os dias perdidos
as noites crispadas
as mortes comuns.

De repente falam
e apertam as mãos
levantam lareiras
desenham viagens
confiam no amor.

E no chão vazio
nascem malmequeres
frágeis como a esperança
(e tão persistentes)
frágeis como a vida
(e tão arraigados).

Obscuras flores
que irrompem do escuro
mas que trazem nelas
o espectro do sol.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Tuesday 1 August 2017

A CADA UM...


A cada um chega um pouco
do que para todos chega.
Quem o quer diz-se que é louco.
Mas por que é que se lho nega?
É porque a verdade assusta
que a mentira persuade.
A unidade mais justa
nasce da variedade.
Querer só não é querer.
Não há querer sem acção.
O próprio pão, para o ser,
primeiro rebenta o chão.


Armindo Rodrigues

Sunday 30 July 2017

DIFICULDADE DE GOVERNAR


1
Todos os dias os ministros dizem ao povo
como é difícil governar. Sem os ministros
o trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
se o chanceler não fosse tão inteligente.
Sem o ministro da Propaganda mais nenhuma mulher
podia ficar grávida.
Sem o ministro da Guerra nunca mais haveria guerra.
E atrever-se-ia a nascer o sol
sem autorização do Fuhrer?
Não é nada provável e, se o fosse,
nasceria por certo fora do lugar.

2
É também difícil, ao que nos é dito,
dirigir uma fábrica. Sem o patrão
as paredes cairiam e as máquinas enchiam-se de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
ele nunca chegaria ao campo
sem as palavras avisadas do industrial aos camponeses:
quem, senão ele, lhes poderia falar na existência de arados?
E que seria da propriedade rural sem o lavrador?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.

3
Se governar fosse fácil
não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos
como o do Fuhrer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
e se o camponês soubesse distinguir
um campo de uma fôrma para tortas
não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
É só porque toda a gente é tão estúpida
que há necessidade de alguns tão inteligentes.

4
Ou será que
governar só é assim tão difícil
porque a exploração e a mentira
são coisas que custam a aprender?


Brecht

Thursday 27 July 2017

A GRANDE NOTÍCIA

A grande notícia
chegou até mim
como um rastro azul
vestido de estrelas,
um clarim de luz
no silêncio inerte,
repentinamente,
num céu cheio de nuvens,
um jacto que surge
e roça a montanha.

O meu pensamento
abriu-se num abraço
para além dos mares,
e a grande notícia
bailava nas ruas
enquanto nos esgotos
os torturadores
pareciam ratos
e o nojo de vê-los
doía na gente.

Um clarim de luz
num céu de nuvens,
foi como irrompeu
a grande notícia
vestida de estrelas.
Só um fogo oculto
consegue acordar
um grilo no inverno
mas quando ele acorda
o frio adormece.

Foi na madrugada
de um dia sem planos
que se revelou
a grande notícia,
e as águas do pântano
não podem mais sê-lo
ao ver, de repente,
no silêncio inerte,
um jacto que surge
e roça a montanha.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Monday 24 July 2017

HINO AO 1º DE ABRIL


Os milicos milicazes
nunca foram maus rapazes.
Quando matam, quando esfolam,
quando capam, quando amolam,
quando todos se rebolam
prós ianques que os engrolam,
ou quando cantam de galo
ou relincham de cavalo,
ou vão puxando o badalo,
mais o saco do gargalo,
ou quando vendem a terra
e as riquezas que ela encerra,
ou quando rolham quem berra
ou mesmo quem embezerra,
ou quando as serras napalmam,
e com fogo tudo acalmam,
ou quando bancos empalmam
e corruptos se desalmam
é tudo sempre por bem.
De Pelotas a Belém
não duvide nunca alguém
seja fortudo ou pelém,
que os milicos milicazes
nunca foram maus rapazes.

Jorge de Sena

Friday 21 July 2017

PONTE SOBRE O TEJO

Ó ponte que tens
o nome atrasado
do atraso que temos,
devemos salvar-te
e dar-te outro nome
que traga lá dentro
o sol e o trigo,
um filho no ventre
e o sangue na terra
que floriu nos cravos.

Devemos chamar-te
Catarina Eufémia,
ó ponte que tens
o nome atrasado
do atraso que temos,
e os barcos do Tejo
com as velas pandas
darão forma ao sopro
da semeadora
Catarina Eufémia.

Para que o passado
não mais se repita,
e os gestos dos monstros
sejam apagados
(mas nunca esquecidos)
devemos chamar-te
Catarina Eufémia,
ó ponte que tens
o nome atrasado
do atraso que temos.

Rumo lá no alto
olhando Lisboa,
no frémito novo
de sabê-la nossa
e poder dizê-lo,
ponte que nos liga
no fluir presente
que já é futuro,
nós vamos chamar-te
Catarina Eufémia.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Tuesday 18 July 2017

COMEI VOSSOS PERUS


Comei vossos perus
burgueses anafados
e dai esmolinha aos pobres
que tendes esfomeados.
Um dia há-de chegar
em que sereis assados
não para subir ao céu.


Jorge de Sena

Saturday 15 July 2017

POEMA DE ABRIL

A farda dos homens
voltou a ser pele
(porque a vocação
de tudo o que é vivo
é voltar às fontes).
Foi este o prodígio
do povo ultrajado,
do povo banido
que trouxe das trevas
pedaços de sol.

Foi este o prodígio
de um dia de abril,
que fez das mordaças
bandeiras ao alto,
arrancou as grades,
libertou os pulsos,
e mostrou aos presos
que graças a eles
a farda dos homens
voltou a ser pele.

Ficou a herança
de erros e buracos
nas árduas ladeiras
a serem subidas
com os pés descalços,
mas no sofrimento
a farda dos homens
voltou a ser pele
e das baionetas
irromperam flores.

Minha pátria linda
de cabelos soltos
correndo no vento,
sinto um arrepio
de areia e de mar
ao ver-te feliz.
Com as mãos vazias
vamos trabalhar,
a farda dos homens
voltou a ser pele.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Wednesday 12 July 2017

VIRÁ!


Virá!
Oiço o seu ruído.

Garanto-vos a luz
para breve. Prometeu
fogo e amor à terra.
Por isso canto e amo.

Virá! Oiço o seu ruído!
Então, ai dos soturnos;
dos que agora mancham
este querido mundo.

Jesus Lopez Pacheco

Sunday 9 July 2017

OS HOMENS DA MINHA RUA DE CASAS DE MADEIRA

Os homens da minha rua de casas de madeira,
telhadas de folha velha,
usam sempre o chapéu atirado para os olhos.
Deslizam em silêncio, embuçados e tristes,
como quem vem de longe, como quem vai para longe.
A minha rua é longa,
com mil e uma pequeninas poças de água.
E tão estreita
que nunca o sol das ruas largas sem casas de madeira
a pôde visitar.
E os homens contam as poças.
E de olhos nas poças, nas pedras, nas poças,
deslizam em silêncio, embuçados e tristes,
como quem vem de longe, como quem vai para longe...

Porque usarão - porquê? - sempre o chapéu sobre os olhos,
os homens da minha rua de casas de madeira?

Mário Dionísio
(«O Homem Sozinho na Beira do Cais»)

Thursday 6 July 2017

O Sonho é a nossa arma


Há quem julgue que nos venceu
só porque estamos para aqui, famintos e nus,
de novo sem terra nem céu,
a apanhar do chão,
às escondidas do luar.
os frutos podres caídos dos ramos.

Mas não.

Temos ainda uma arma de luz
para lutar:
SONHAMOS.

... enquanto os outros, os traidores,
sem lutas nem cicatrizes
entregam a terra ao rasto dos gamos
e douram os olhos dos velhos senhores
com voos de perdizes...

Sim, sonhamos.
E o sonho quem o derrota?
- mesmo quando vamos
perdidos na rota
de um barco sem remos
na tempestade de um vulcão.

Sim, camaradas, sonhamos.

SONHEMOS!

O Sonho é também acção.

José Gomes Ferreira

Monday 3 July 2017

POEMAS DO CÃO DANADO (4)

Deixa lá, companheira!
Que havemos de fazer?
Fecharam-nos a porta e quase nos cuspiram.
Pisaram-te e, a mim, vergastaram-me as mãos.
Deixa lá! Deixa lá! Eu beijarei teus pés
e tu farás sarar as minhas mãos.
Para lá da última casa ainda há terra
e céu e água e luz...
Ainda há vida para lá.

Deixemos para eles o som vazio das gargalhadas
e a luxúria do oiro.
Ainda há vida para lá.
O nosso horizonte é mais vasto em cada instante.
A nossa voz mais rica em cada instante.
O nosso querer mais certo em cada instante.
Ainda há vida para lá.
Sigamos nossa rota, companheira.
Enxugarei teu rosto com cuidado.
Tu farás o meu canto.
E para além das barreiras do tempo
milhões de homens nos esperam com os braços abertos,
que desde a primeira hora serão braços de irmãos.

Mário Dionísio
(«O Homem Sozinho na Beira do Cais»

Saturday 1 July 2017

E subiu ao Trono o primeiro Governo da Contra-Revolução


E agora
que os gigantes do avesso
nos querem transformar em subgente?

Que nos resta? O recomeço
do frio das algemas
e os grilhões desumanos,
para voltar inutilmente
a escrever poemas
recusando-me outra vez a ter mais de 20 anos?

Que fazer agora,
se até o Sonho nos querem roubar?

Exigir talvez
ao sol que, todas as noites dorme na lua e chora
com melancolia,
ouse de súbito acordar
- para que brilhe sempre o Espanto de Haver um Eterno Dia.

José Gomes Ferreira

Friday 30 June 2017

LEGADO


O que eu espero, não vem.
Mas ficas tu, leitor, encarregado
de receber o sonho.
Abre-lhe os braços, como se chegasse
o teu pai, do Brasil,
a tua mãe, do céu,
o teu melhor amigo, da cadeia,
abre-lhe os braços como se quisesses
abarcar toda a luz que te rodeia.

Não lhe perguntes porque tardou tanto
e não chegou a tempo de me ver.
Uns têm a sina de sonhar a vida,
outros de a colher.

Miguel Torga

Tuesday 27 June 2017

PREGÃO

Dum gesto alcançámos a terra.

Os montes, os mares, as estrelas, as nuvens, as almas, os deuses e as
sombras.
- o cortejo multissecular das sombras.

Antes
os braços eram curtos e terminavam por duas mãos pequenas.
Hoje
não há padrão que os meça,
prolongados nos montes e na viva complicação das máquinas,
nas chaminés voltadas para o céu.
Antes
as bocas eram breves para o beijo da casa.
Hoje
dilataram-se infinitamente no sorriso sublime e sem limites da
universalidade.

Todos os músculos estalaram.
Todos os olhos gritaram.
Todas as bocas gritaram.
Todos os pulmões se abriram ao olfacto sadio da terra húmida.
Terra.
Terra da partida e do regresso.
Terra!

Serão baixos todos os andaimes de biliões de andares,
fracas todas as asas,
para a nossa paixão da estratosfera:
para o caminho da terra que nos fará eternos.
Fraca nomenclatura de todos os tratados
para o nosso mundo de amor.

Os chicotes quebraram-se, vencidos,
vergados sobre a terra como nós até hoje.

Uma vida nova começa neste instante.
E agora, que dum gesto alcançámos a terra, nós seremos enfim o nosso próprio poema.

Mário Dionísio

Saturday 24 June 2017

O DILÚVIO


Suicidou-se o João!
Não se rale, senhora,
às vezes acontece.
Assaltaram o meu banco!
Não se rale, senhora,
às vezes acontece.
Uma bomba na rua!
Não se rale, senhora,
As vezes acontece.
O meu filho é um estróina!
Não se rale, senhora,
às vezes acontece.
O mundo está doido!
Não se rale, senhora,
às vezes acontece.

Acontece isso e mais,
e mais e ainda mais.
E ainda aconteceu pouco.
Não se pode ser sempre igual
desde o berço até morrer.
E cansamo-nos, senhora,
de comer sempre do mesmo.
E de comprar o jornal
e de dormir na mesma cama.
E sentimo-nos humilhados
quando, ao fazer a barba,
nos contam histórias de fadas.
E então acaba tudo
com isso que me conta agora:
suicídios, assaltos, bombas,
loucuras e...
e mais, senhora, e mais.
Mas você disso nada sabe.
Não é nova e tem muita massa.

Ovidi Montllor

Wednesday 21 June 2017

POEMAS DO CÃO DANADO (2)

Olha: tu que me és única,
mais valia nunca teres poisado o teu olhar
nas minhas mãos,
nos meus cabelos
e nos meus olhos agora e para sempre cheios de ti.
Ter-te-ia sido preferível afinal.
Assim só eu corria pelas ruas
apedrejado às esquinas
como sucede sempre a um bom cão danado.
Não sofrias,
não choravas,
não te martirizavas tanto em cada hora.
Assim, enrodilhada sem querer no meu fracasso,
perdeste talvez aquilo que não volta a repetir-se.
Mais te valia nunca me encontrares,
a mim, o sempre trôpego em todas as passadas,
coberto de miséria, de grotesco,
ridículo!

Mário Dionísio
(«O Homem Sozinho na Beira do Cais»)

Sunday 18 June 2017

CENTRO COMERCIAL


Agora a morte é diferente,
facilitaram-nos o desespero, a angústia
tem já ar condicionado. Em vez
dos bancos de jardim, por certo demasiado
rudes, temos enfim lugares amplos
onde apodrecer a miséria simples do corpo.

Que incalculável felicidade a de percorrer
galerias de nada tresandando a limpeza
e segurança. Aí se abandonam jovens
rebanhos sentados sorrindo ao
vazio palpável, ou ferozmente no meio
dele. Revezam-se - mas quase diríamos
que são os mesmos ainda, exaustos
de contentamento. Dêmos pois as boas vindas a
esses heróis do betão consagrado. Só eles nos fazem
acreditar no advento do romantismo cibernético.

É doce a merda que nos sepulta
e o cancro que um dia destes nos matará
há-de ser muito limpo, quase ecológico.

Manuel de Freitas

Thursday 15 June 2017

POEMAS DO CÃO DANADO (1)

Quando nasci
- de pouco valeu estarem os campos cheios de flores -
uma garra disforme
deixou-me a sua marca negra até ao sangue.

Sorriu o pai e a mãe
do destino do menino venturoso.
Eu próprio ri de segurança e de vitória.
Mas a cada minuto, a cada passo,
a segurança e a vitória foram sendo mentira.
(Basta eu chegar para que tudo se perturbe.
Aliás nem ninguém nem nada se perturba:
só eu sou sempre afinal o perturbado.)

Mas não desisto.
Insisto.
Procuro chegar, entrar.
Procuro, como um faminto de sacola na mão,
essa alegria de toda aquela gente,
que diz sem sobressaltos: aqui estou.
Mas isso sim. Basta eu chegar:
lá vem o grito fatal de: cão danado!
É escusado teimar.
Todas as portas me estarão fechadas,
deixando escorrer um fio de luz
ou um fio de palavras...

E não desisto.
Insisto.

Mas se a mão negra me marcou para sempre,
a que vem este desejo inferior
de lá chegar?

Mário Dionísio
(«O Homem Sozinho na Beira do Cais»)

Monday 12 June 2017

DISPO


Cerco e troco
escrevo e ponho
*
Levanto a saia e o subido
mostra a bainha do corpo
descubro o nu no vestido
*
Perpasso as mãos
nas penumbras
desacato o que é restrito
Disponho do proibido
permito, dispo
desdigo
*
Caminho pelo prazer
por onde afirmo e prossigo

Maria Teresa Horta

Friday 9 June 2017

DESCOBRIMENTO

Tanto tempo me disseram que eu estava nos meus caprichos,
no meu desejo (que viria) de conseguir lugar
- e tanto se enganaram
e me enganaram.

Cegos e cego.
Doidos e doido.

Nunca me disseram nada as suas teorias sobre mim.
Quem me falou afinal
foram as casas abandonadas no campo de luzes apagadas,
foram os vultos da noite com um fardo milenário às costas,
foi o suor dos rostos e das mãos sangrando.

Quem me falou de mim
foi o esforço que já vinha de trás e que quer prolongar-se para a frente.

Cegos e cego.
Doidos e doido.

Eu estava muito longe do desejo (que não veio) de conseguir lugar.

Estava no gume da enxada forte,
na argamassa,
nas mãos calosas da obreira levando ao colo o futuro escravo.

Mário Dionísio

Tuesday 6 June 2017

POSIÇÃO DE GUERRA


Crescem em mim milhões de punhos
cerrados,
bandeiras desfraldadas,
horizontes.
Soam em mim milhões de brados
resolutos,
protestos brutos,
queixumes.
Abrem-se em mim milhões de chagas,
como crateras de fogo.
Rompem de mim vendavais.
Sou eu que me interrogo,
a tudo atento,
sobranceiro ao gozo ou ao sofrimento,
com pensamentos verticais.

Armindo Rodrigues

Saturday 3 June 2017

SEGUNDO NASCIMENTO

Depois que se romperam os sapatos,
e deixei a gravata pior que uma rodilha no caixote do lixo,
é que vi bem o céu.

Um homem levantou a vista dos torrões e olhou para cima.
Mil cadeias inúteis se quebraram.
Mil caras, mil sorrisos, mil atitudes passaram.
Mil crenças se apagaram.
E dentro de mim mesmo surgi eu.

Enquanto se perdeu a última falripa da sola do sapato
e se esgarçou o fio de seda da gravata,
saltei a outro mundo.
Já não entendo as velhas relações nem amo as minhas velhas amizades.
Tudo o que é dantes me aparece inodoro, insípido, incolor, sem significação.
Já não tenho a noção de caminhar no meio de maltrapilhos.
Não há mais eu e eles porque passou a haver unicamente nós.
Os doutores, as madames e as meninas em série nunca mais me viram
porque passam por mim sem me reconhecerem
e eu não consigo distingui-los bem na galeria imensa do friso dos fantoches.

Tenho a alma repleta de alegria
e os braços cheios de força
e o coração a transbordar amor.

Bendita a miséria que rompeu os sapatos
e esgarçou a gravata que abandonei no lixo
e me fez ver o céu.

Livre.

Agora que deitei fora as lentes emprestadas,
e mandei ao diabo as crenças emprestadas,
e cuspi no altar das coisas consagradas,
agora, sim: sou eu.

Mário Dionísio

Thursday 1 June 2017

LIBERDADE


Disseram-nos a tiros: cruz, mais nada.
Na cruz estamos. Apenas. Censurados.
Uma nova prisão. Ponto na boca.

Se manténs a conduta conveniente,
poderás dizer palavras permitidas:
Inverno, luz, hispanidade, chapéu.
(Se a língua te entristece de vergonha
arranja um cartaz que diga «MUDO»,
estende a mão e juntas alguns cobres)

Se calças os sapatos pela norma
podes também andar no outro passeio
à procura do sol ou de um tecto que abrigue.

Pagando os teus impostos pontualmente
podes ir à oficina ou ao escritório,
para queimar as pestanas ou as unhas,
partir o peito ou alcançar a glória.

Também terás honestas diversões.
O passar de um enterro, um filme
dos que são devidamente autorizados,
futebol do melhor, um copo de cerveja,
instrutivos programas pela rádio
e missa à tarde todos os domingos.

Mas não penses «liberdade», não pronuncies,
não escrevas «liberdade», não consintas
que ao branco dos olhos ela surja,
ou que o odor se exale pelas roupas
ou apareça no risco do cabelo.

E sobretudo, amigo, ao deitar-te,
não escondas «liberdade» na almofada
para tentar sonhar com melhores dias.
Não aconteça seres sonâmbulo e uma noite,
com ela atravessada no teu corpo,
gritares o seu anúncio pelas ruas
descerrando as portas e as janelas,
matando os guardas-nocturnos e os gatos,
quebrando os lampiões, os chafarizes
e o sono dos justos - porque então
ponto final, irmão, e Deus te ajude.

Maria Figuera Aymerich

Tuesday 30 May 2017

DEIXEM-SE DE FINGIR...

Deixem-se de fingir de heróis de esquerda,
com bancos e bancas de advogados, redacções,
editoriais, automóvel, bolsas e cátedras,
quintas herdadas, páginas literárias.
Deixem-se de uivar em defesa de ismos
que nenhum vos pertence ou a que pertenceis
a não ser para dançar a dança desnalgada
dos que não têm vergonha do povo português.
O único ismo em consonância com os arrotos
de bem comidos, e os rosnidos de instalados
naquilo que criticam disfarçando-se,
é o relismo - de reles. Nada mais.

Jorge de Sena

Saturday 27 May 2017

POEMAS DO CÃO DANADO (3)

Eis-nos boiando, aflitos,
só as narinas e os braços fora de água,
prestes a sucumbir.
E a terra tam perto cheia de gente alegre...
Um gente endinheirada e bruta,
pisando todas as flores.
Já nem sabemos se as lágrimas
serão gotas do mar que nos envolve,
se é o mar a água das nossas próprias lágrimas.

E a terra tam perto,
cheia daquela gente endinheirada e bruta,
pisando todas as flores...
E nós para aqui boiando,
escorraçados afinal da própria casa,
como quem não paga a renda.
Ah que é como um país nosso invadido por estrangeiros!

E, narinas abertas numa ânsia de vida,
miseráveis, covardes,
sem a coragem de nos deixarmos sucumbir,
cair pró fundo, acabar!

Mário Dionísio
(«O Homem Sozinho Sentado na Beira do Rio»)

Wednesday 24 May 2017

SONETO DA METAMORFOSE


Mãos, simples mãos, moldaram os meus versos
e pés humanos pisam o que escrevo.
Aos outros que conquistem universos
e a mim que pague ao povo o que lhe devo.

Mesmo que os dias sejam adversos,
é um trevo a missão a que me atrevo,
dia e noite seus gestos são diversos
- detesta o escuro, de dia abre-se o trevo.

Abre-se como o pranto, como as fontes
que irrompem das montanhas e dos montes,
descem aos vales, vão até às casas...

Um soneto estremece a manhã cálida
e o povo, num silêncio de crisálida,
forja, no sofrimento, as suas asas.

Sidónio Muralha

Sunday 21 May 2017

DOIS POEMAS DO SONHO

I

Quando as pálpebras caíram nos diversos recantos da cidade,
cada vagabundo só se conhecia a si mesmo,
à sua miséria e ao seu desgosto da vida.

Mas o vento fustigou-os indiferentemente
e a chuva ensopou-os a todos da mesma maneira inóspita e miserável.

E o sonho subiu e juntou-se ao ar.
Cada velha sinfonia se desflorou numa nova sinfonia.
A chuva secou nos fatos e as lágrimas nos olhos.

E quando as pálpebras se ergueram nos diversos recantos da cidade,
todos os vagabundos se conheciam
e sorriam uns para os outros.


II

Desde sempre que o sol surge todas as manhãs anunciando um novo dia.
Desde sempre que as sombras se diluem.
Os homens saltam das camas amassadas
e voltam ao trabalho duro.

Desde sempre que a vida finge um recomeço.
(mas a verdade é que apenas continua
e os homens acordam já cansados.)

Desde sempre que o sol surge todas as manhãs anunciando um novo dia.

Mas nunca tanta alegria.
Nunca os bons-dias dos homens foram bons como os de hoje.
Nunca os cantos das aves foram assim expansivos
e penetraram tanto até ao fundo...

É que nunca a noite foi tão longa
e a miséria das almas tão intensa.

É que nunca em tudo se espelhou
esta suave ternura inexplicável
duma possibilidade que desponta.

Mário Dionísio

Thursday 18 May 2017

O HERÓI


O herói da guerra
possui 365 medalhas,
uma para cada dia do ano
(só nos anos bissextos
tem um dia de folga).

O herói da guerra
tem um desencontro
marcado com ele mesmo
(sua vocação era ser homem
e fizeram dele um herói).

O herói da guerra
precisa esquecer
(num gesto heróico
fuma heroína).

Sidónio Muralha

Monday 15 May 2017

POEMA DA MULHER NOVA


Vejo-te no mundo que não pára,
como um grande lenço rubro desfraldado.
Vejo-te em mim quando me sinto massa
com milhões de braços e de pernas e uma cabeça de anjo.
Vejo-te na vida em marcha,
nas mãos estendidas.
Vejo-te em toda a vibração,
nas plantações cobertas de girassóis e de papoulas,
no topo dos tractores pulverizando a terra.

Vejo-te nua das sedas
com a boca rasgada numa canção de futuro
como um punho ameaçador à pestilência dos homens.

Vejo-te bela
com os cabelos ao vento,
em frente,
sem um talvez: perfeita.

Vejo-te mãe de milhões de homens novos,
de rosto calmo e olhos firmes,
através das labaredas e do fumo,
sem país e sem lar, a caminho da vida
- na descoberta constante.

Mário Dionísio
(«Com Todos os Homens nas Estradas do Mundo»)

Friday 12 May 2017

NATAL


Velho Menino-Deus que me vens ver
quando o ano passou e as dores passaram:
sim, pedi-te o brinquedo, e queria-o ter
mas quando as minhas dores o desejaram...

Agora, outras quimeras me tentaram
em reinos onde tu não tens poder...
Outras mãos mentirosas me acenaram
a chamar, a mostrar e a prometer...

Vem, apesar de tudo, se queres vir.
Vem com a neve nos ombros, a sorrir
a quem nunca doiraste a solidão...

Mas o brinquedo... quebra-o no caminho.
O que eu chorei por ele! Era de arminho
e batia-lhe dentro um coração.

Miguel Torga

Tuesday 9 May 2017

SANGUE IMPETUOSO

Sangue impetuoso,
não te submetas nunca!
Ri-te das estreitezas capilares
ou de qualquer compressa para te reter.
Não cedas nunca!

Caminha, corre, salta!

Salta as barreiras por maiores que sejam.
Caminha por mais ásperos que sejam os caminhos.

Corre, salta!

És a vida.
A vida está na tua marcha invulnerável,
na tua rota sem tréguas, nem limites, nem curvas, nem paragens,
na tua cavalgada de horizontes rasgados,
em teu grito selvagem.

Corre, salta!

E se não te cumprires em mim,
não pares ainda, não cedas: corre!
Rasga à punhada as paredes de treva.
Salta e estilhaça os diques, as montanhas!
Salta nas veias dos meus filhos ou meus netos,
mas segue:
por maiores que sejam as barreiras,
por mais ásperos que sejam os caminhos.

Caminha, corre, salta,
- rebeldemente, impetuosamente!

Mário Dionísio
(«Com Todos os Homens nas Estradas do Mundo»)

Saturday 6 May 2017

ODE À AMIZADE

Por teu verbo em passes de mágica
eu te louvo
quando pões «o coração nas mãos»
ou entre
os dentes
«o coração na boca»

Por tua palavra gesto e fruto
que nos tempos dos tempos renovas
eu te louvo
não pelo gesto que és
mas pelo fruto que provas

Por tua faca e suas artes
por teu punho a romper do seio
eu te louvo
pão único que repartes
migalha cortada ao meio

Fome nenhuma fica impune

Teu gume é como golpe na água:
a lâmina que a retalha
é a mesma que a reúne.

Luís Veiga Leitão