Monday 30 May 2022

sem título

quando ouço as conversas
já quase ninguém lembra o teu nome
e eu penso
isso não faz sentido
porque como pode alguém esquecer
o nome da única flor que sobrevive ao inverno
nem a extinção da humanidade
nem uma nuvem que envolva o globo
ou a acidificação dos oceanos todos
pode tornar sequer compreensível
que se suma o teu nome de todas as palavras.
 
Miguel Tiago
 

Friday 27 May 2022

cenotáfio

o veneno mais letal é a ilusão
não deixa vestígio na toxicologia
um polónio do ego
uma viagem pelos sítios mais inúteis
pelos abismos menos entusiasmantes
das que te fazem procurar na rosa dos ventos um ponto cardeal que não existe
viajar por aí às escuras mesmo depois de encandeares a vista numa lâmpada incandescente
com as mãos à frente a tactear o vazio 
de que afinal nunca saíste
e ler as todas as páginas do livro que te entediou nas primeiras linhas
para depois perceberes que a melhor parte era o prefácio.
aqui jaz a realidade
assassinada.
 
Miguel Tiago

Tuesday 24 May 2022

praia

aqui onde moro
a praia é tanto princípio como fim
descalço na espuma pequena
o equador do tempo
revolve sempre os mesmos seixos.  

Miguel Tiago

Saturday 21 May 2022

cidade

a minha cidade tem as veias
a céu aberto
por onde escorre a sujidade
própria do amor

e o rio lambe os milénios
que guardamos nas casas dos nossos avós
enquanto esconde a bruma os falsos sorrisos
e se exaltam pela salsugem as rugas batidas pelo mar

esta taifa é livre nos corações livres
é um grito de Rebelo
um silvo de flecha no silêncio
uma trincheira de rebeldes
e só quem a ama a pode odiar.
 
Miguel Tiago

Wednesday 18 May 2022

titãs

nós somos os náufragos
deste navio 
o mundo é o aicebergue.
 
Miguel Tiago

Sunday 15 May 2022

sem título

 
aqui chegados
eis que faltam os motivos 
para o amor grande
eis que nos falta o solo
para crescer
e o sol para erguer as folhas
verdejantes de clorofila
as nossas hastes já não são nada
além de pesados chifres 
onde só a custo alguém ergue bandeiras
confesso
que poucas paisagens me descobrem do chumbo líquido que me cobre
mas sorrio ao saber
que a humanidade nunca foi mais 
do que a carcaça do seu futuro.
 
Miguel Tiago

Thursday 12 May 2022

argonautas

o atlântico segundo consta
foi cruzado pelos heróis condenados
em naus de sangue
mas foram os poetas portugueses 
que descobriram o caminho marítimo para a lua.
 
Miguel Tiago

Monday 9 May 2022

IV

na falta de cigarros
fiz um intra-venoso
destas nuvens de tempestade atlântica.
 
Miguel Tiago

Friday 6 May 2022

sem título

podes colar as folhas com a melhor resina
que não tornas a decídua em perene.
 
Miguel Tiago
 

Tuesday 3 May 2022

solstício

tivemos um solstício curto
ao contrário dos que vivem as horas
independentemente da época
umas sobre as outras sem distinção
uma noite curta
um dia não tão longo quanto a translacção do planeta parecia permitir
traídos por uma precessão própria quem sabe

isto de a terra ter dois pólos acaba por influenciar os nativos de todos os signos
poemas madrugadas
poemas meia noite
e tanto o sorriso se esvai em lágrimas
como os pulsos latejam sangue
pressuroso para escorrer sob as unhas dos que

sem saber da estrela polar

se desorientam por mais que gritem ao vento


tivemos um solstício curto
disso nada sabem os sãos
para quem os dias e as noites
e as horas e os minutos têm todos, uns atrás dos outros, para sempre, o mesmo comprimento
de uma cobra que se alimenta da cauda sem princípio nem fim
que começa e acaba no espectro do audível
na vibração perceptível
de todas as partículas
menos as de si próprios
que passaram a barreira do som
e já só os gatos as ouvem

tivemos as mãos atadas
por uma guita fina
chamada vontade
ou falta dela
tivemos as mãos libertas
por uma faca romba
do mesmo nome
ou falta dele.

eu nunca serei o cheiro da chuva no chão
porque não cheguei a nuvem

eu nunca serei foz
porque me afoguei na nascente.
 
Miguel Tiago

Sunday 1 May 2022

aço

a caldeira desta locomotiva
tem por combustível as almas
o seu vapor é sanguíneo
conquistado do suor
os caminhos são de ferro
e é com carvão que se tempera o aço. 
 
Miguel Tiago