Tuesday 30 October 2018

Amália


Na tua voz há tudo o que não há
Há tudo o que se diz e não se diz
Há os sítios da saudade em tua voz
O passado o futuro o nunca o já
Há as sílabas da alma e há um país
Porque tu mais que tu és todos nós

Na tua voz embarca-se e não mais
Não mais senão o mar e a despedida
Há um rastro de naufrágio em tua voz
Onde há navios a sair do cais
Nessa voz por mil vozes repartida
Porque tu mais que tu és todos nós

Há mar e mágoa e a sombra de uma nau
A gaivota de O'Neill e o rio Tejo
Saudade da saudade em tua voz
Um eco de Camões e o escravo Jau
Amor Ciúme Cinza e Vão Desejo
Porque tu mais que tu és todos nós.

Manuel Alegre

Saturday 27 October 2018

Adriano


Não era só a voz o som a oitava
Que ele queria sempre mais acima
Nem sequer a palavra que nos dava
Restituída ao som de cada rima

Era a tristeza dentro da alegria
Era um fundo de festa na amargura
E a quase insuportável nostalgia
Que trazia por dentro da ternura

O corpo grande e a alma de menino
Trazia no olhar aquele assombro
De quem queria caber e não cabia

Os pés fora do berço e do destino
Pediu uma cerveja e poesia
E foi-se embora de viola ao ombro.

Manuel Alegre

Wednesday 24 October 2018

Preciso de espaço


Preciso de espaço
Para ser feliz
Preciso de espaço
Para ser raíz
Ter a rede pronta
Para o mar de sempre
Ter aves e sonho
Quando a terra escuta
E falar de amor
Aos tambores da luta

Ter palavras certas
No sol do caminho
E beber a rir
O doirado vinho
Misturar a vida
Misturar o vento
E nas madrugadas
Quando o povo abraço
Para estar contigo
Preciso de espaço

Preciso de espaço
Para ser feliz
Preciso de espaço
Para ser raíz
Caminhar sem ódio
Falar sem mentira
Ter meus olhos longe
Na luz d'uma estrela
E ser como um rio
Que se agita ao vê-la.

Vasco de Lima Couto

Sunday 21 October 2018

Dei-te um nome em minha cama


Dei-te um nome em minha cama
Aberta no meu Outono
Depois amei-te em silêncio
Que é uma forma de abandono

Dei-te um nome em minha cama
Rasgada em lençóis de sono
Tentei ser tudo o que era
No gesto da mão parada

Campo e corpo aberto ao vento
Que encaminha a madrugada
Tentei ser a Primavera
Mas chorei meu triste nada

Vi-te ao canto da memória
Por te viver e sonhar
Amor de amor sem glória
Como um rio ao começar
Que te veio contando a história
Onde eu não posso morar.

Vasco de Lima Couto

Thursday 18 October 2018

Tenho a Pátria num rosto de criança


Tenho a Pátria num rosto de criança
Que me pergunta porque estou alegre...
Ouve criança: são as ruas todas
Com a pureza que o passado deve

E fico a olhar-me e a olhar o reino aberto
Nas palavras caladas do lamento
Que fez a minha infância adormecida
A chorar, em silêncio, o pensamento

Horas perdidas nos regaços frios
Anos achados para te dizer:
O Sol começa agora a ter sentido,
E nós criança, vamos renascer.

Vasco de Lima Couto

Monday 15 October 2018

Vinha dizer adeus


Vinha dizer adeus mas reparei
Que na faia do pátio era Setembro
Vinha dizer adeus mas encontrei
Um livro na cadeira do alpendre

Vinha dizer adeus mas as maçãs
Estavam no forno a assar e esse cheiro
Fez-me parar na porta das manhãs
A relembrar o nosso amor inteiro

Vinha dizer adeus mas o teu cão
Veio lamber-me os dedos hesitantes
Vinha dizer adeus mas vi no chão
A manta ao pé do lume, como dantes

Vinha dizer adeus mas senti fome
Ao ver a mesa posta para dois
Dálias e o guardanapo com o meu nome
Sem ter havido o antes nem depois

Vinha dizer adeus mas que surpresa
À passionata… o último andamento
Como se tu tivesses a certeza
Que eu ia chegar nesse momento

Vinha dizer adeus mas nesse olhar
Vi tanta solidão, tantos abraços
Tantas amendoeiras ao luar
Que me escondi chorando nos teus braços

Vinha dizer que já não estou contigo
Que este amor singular já não é nosso
Vinha dizer adeus mas já não digo
Vinha dizer adeus mas já não posso!

Rosa Lobato de Faria

Friday 12 October 2018

Valsa


Ficámos finalmente meu amor
Na praia dos lençóis amarrotada
O mal que venha é sempre um mar menor
Sorriso de vazante na almofada

Se chamo som das ondas ao rumor
Dos passos dos vizinhos pela escada
É porque à noite acordo de terror
De me encontrar sem ti de madrugada

Qual a cor desta noite e de que dedos
São feitas estas mãos que não me dás
Ó meu amor a noite tem segredos
Que dizem coisas que não sou capaz.

António Lobo Antunes

Tuesday 9 October 2018

MINHA SENHORA DE MIM


Comigo me desavim
minha senhora
de mim
*
sem ser nem ser cansaço
nem o corpo que disfarço
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
*
nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços
*
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
*
recusando o que é desfeito
no interior do meu peito

Maria Teresa Horta

Saturday 6 October 2018

Sou barco


Sou barco abandonado
Na praia ao pé do mar
E os pensamentos são
Meninos a brincar.


Ei-lo que salta bravo
E a onda verde-escura
Desfaz-se em trigo
De raiva e amargura.

Ouço o fragor da vaga
Sempre a bater no fundo,
Escrevo, leio, penso,
Passeio neste mundo
De seis passos
E o mar a bater ao fundo.

Agora é todo azul,
Com barras de cinzento,
E logo é verde, verde,
Seu brando chamamento.

Ó mar, venha a onde forte
Por cima do areal
E os barcos abandonados
Voltarão a Portugal.

António Borges Coelho

Wednesday 3 October 2018

Dia 237


Abraço a água, rezo o terço, lavo o cesto, levo o resto, rasgo a raiva, travo a fala, atrevo a farpa, cravo o prego, prego o bem, bendigo o morto, mato a fome, enterro o medo, marco a cruz, mantenho o lume, acendo o escuro, abato o nome, risco a folha, abafo a falha, queimo a palha, passo a senha, salvo a réstea, ajeito a forca, forço o tempo, dobro o lenço, penso o vento, apresso o lento, ocupo o espaço, esqueço o gesso, armo o braço, lanço o dardo, caço o lince, espanto a caça, aqueço o tacho, habito a praça, aprendo à pressa, engano a moça, esquento a massa, visto a farda, afio a faca, esgoto a taça, bebo o lodo, lambo o lábio, invejo o sábio, odeio a mosca, rasgo o verso, puxo o laço, apanho o pássaro.

Joaquim Pessoa

Monday 1 October 2018

A uma Árvore


Recortada no azul
Vestindo as cores do outono
E abraçada pelo vento
— Uma árvore.

Desprendendo-se dos ramos,
Como pássaros cansados
Que já não sabem voar,
As folhas tombam no chão.

De verde se vestirá
Ao chegar a primavera.

Fazer, desfazer e refazer...
É esse o mágico ofício do Tempo.

Isaura Moreira