Tuesday 30 March 2021

sem título

no olho uma lágrima de saudade
um brilho de eternidade
que não se desmentem

Miguel Tiago

Saturday 27 March 2021

pensamento ii

 em certo sentido somos obras de arte, porque ao transcender-se pela arte, o nosso antepassado, gerou um ser mais próximo do que somos hoje. nos riscos, ou canções, nos tambores ou danças, estavam as sementes de todos os sonhos, da celebração da alegria à sagração da tristeza. como o Ouroboros que devora a própria cauda, a arte é o Homem e o Homem é a arte. a experiência criativa, criou outros homens, outras mulheres, novos, com sonhos mais fundos e com mais pincéis para pintar de todas as cores o futuro.

nesse sentido, sorrio, porque algures na minha árvore genealógica está a poesia. 

Miguel Tiago

Wednesday 24 March 2021

sem título

do comboio ficam para trás
todas as paisagens
os homens e as mulheres distantes
os prédios cinzentos
os campos verdes ou amarelos
e a linha do destino vai-se desenhando
lentamente no horizonte
enquanto se desfaz nos carris o desenho
da origem

Miguel Tiago

Sunday 21 March 2021

sem título

 fosse sob as ramagens agitadas
fosse vento
fosse mesmo de noite
em pleno sol e a sombra inexistente
fosse meio despida
a saia levantada
a roupa desviada com a ponta dos dedos
ou nu integral
com vinho
sem água
porta aberta
sem ninguém ver
olhos fechados vendados ou abertos
fosse no leito no peito
no parapeito
e a chuva lá fora
tu molhada
e eu lá dentro
fosse com a língua no sexo
ou a respiração atrás do pescoço
fosse no chão duro
ou na macieza de um areal de seda
sem tremer
quase sem respirar
fosse com o esqueleto ao relento
a vibrar de tanto frio
em pé de pé
de costas
um beijo
uma noite
duas horas
um minuto
uma onda do mar
um toque de veludo
é sempre amor
mas não é todo o amor

Miguel Tiago

Thursday 18 March 2021

sem título

tenho o duro obstáculo das letras
que não posso ordenar em palavras
porque a janela por vezes se fecha
e a brisa não entra 
os pulmões não ardem
e as papilas gustativas não sentem mais
que a textura de um papel em branco
das melodias talvez a mais pura
por ser a do silêncio ausência
tempo de tudo
que traz mensagens do limiar do vazio
que só alguns podem ouvir e decifrar
principalmente escrever nos átomos 
que nos fazem vibrar
e acender 
vazio de todas a mais bela forma
 
Miguel Tiago

Monday 15 March 2021

poema da noite e do egoísmo

é neste último cigarro de vinho
que evapora dos meus ombros o peso das horas
que o fôlego brando do descanso me toma
e o ar limpo me respira
que a noite vem suave pousar-me na têmpora o seu beijo
me entrega no pio das corujas brancas
e finalmente
no silêncio 

Miguel Tiago

Friday 12 March 2021

sem título

da massa que compõe a terra
das mãos que a moldam, 
não há valor que se escreva em números
como dos olhos brilhantes dos vivos
não testemunham os abutres que comem os mortos
 
Miguel Tiago

 

Tuesday 9 March 2021

coragem

 de onde vêm as sombras quando a venda que tens nos olhos te veda a luz e o escuro é uma ilusão de conforto onde até as crianças adormecem? e contudo, nas palavras estão as perturbações do campo electromagnético a que és alheio, no murmúrio do mar e na lonjura do horizonte estão os vultos que te convocam a levantar o rosto. quando semicerras os olhos, vendados, vês os traços do futuro desenhados a carvão pelos teus antepassados. vês nas árvores que pressentes, escrito o amor cravado com navalhas enquanto as folhas agitadas clamam por pássaros que testemunhem que são elas quem se levanta do chão aos céus, com braços ao alto e raízes fundas. são as contradições que nos matam, e o oxigénio que nos alenta. vês esboços de poemas ditos do fundo de um algar onde não podes cair. e os ecos dos gritos mudos dos morcegos despem a rocha da caverna em que tu próprio te escondeste por não teres as mãos atadas e o sossego te impedir de assaltar o ar livre. a humanidade nega-te a tua própria humanidade no conforto. mas tu sabes. no fundo tu sabes. que há luz e há vida. que é uma venda que a luz te nega como nos negamos a um prazer para obter outro, ou como negamos a coragem por medo do que significa coragem. medo. do que significa coragem. 

Miguel Tiago

Saturday 6 March 2021

sem título

a poesia é um ribeiro límpido

laminar, ladeado pelo musgo verde dos bosques húmidos 
e escuros de tranquilidade
ou um fogo cortante
lava incandescente no centro de um vulcão mortal
a poesia é uma mulher nua no meu quarto 
enquanto as cortinas translucidas ondulam com a brisa da primavera
ou a solidão agreste e a garrafa de vinho abandonada
e o cigarro quase apagado fumegando pequenas nuvens 
de tristeza
a poesia não é feita de versos.
 
Miguel Tiago

100 anos de PCP

 


Wednesday 3 March 2021

a AC

 

temem-te os que temem a humanidade;

amam-te os humanos.
em vida, e no exemplo imortal que se projecta 
como uma luz ao fundo da história.
 
Miguel Tiago

 

Monday 1 March 2021

do meu mundo

 do meu mundo não se vê o teu.
do meu mundo levanta-se um muro de ignorância
uma trincheira de egoísmo
um vulcão de escuridão que se levanta pelo céu em furiosas nuvens
de enxofre.

do meu mundo não se vê o mundo dos outros,
separaram-nos em compartimentos estanques,
cubículos, cidades, números, corpos.

os mundos

dos outros,

são afinal iguais aos meus.
para eles, o outro sou eu. 

Miguel Tiago