no olho uma lágrima de saudade
um brilho de eternidade
que não se desmentem
Miguel Tiago
em certo sentido somos obras de arte, porque ao transcender-se pela
arte, o nosso antepassado, gerou um ser mais próximo do que somos hoje.
nos riscos, ou canções, nos tambores ou danças, estavam as sementes de
todos os sonhos, da celebração da alegria à sagração da tristeza. como o
Ouroboros que devora a própria cauda, a arte é o Homem e o Homem é a
arte. a experiência criativa, criou outros homens, outras mulheres,
novos, com sonhos mais fundos e com mais pincéis para pintar de todas as
cores o futuro.
nesse sentido, sorrio, porque algures na minha árvore genealógica está a poesia.
Miguel Tiago
do comboio ficam para trás
todas as paisagens
os homens e as mulheres distantes
os prédios cinzentos
os campos verdes ou amarelos
e a linha do destino vai-se desenhando
lentamente no horizonte
enquanto se desfaz nos carris o desenho
da origem
Miguel Tiago
fosse sob as ramagens agitadas
fosse vento
fosse mesmo de noite
em pleno sol e a sombra inexistente
fosse meio despida
a saia levantada
a roupa desviada com a ponta dos dedos
ou nu integral
com vinho
sem água
porta aberta
sem ninguém ver
olhos fechados vendados ou abertos
fosse no leito no peito
no parapeito
e a chuva lá fora
tu molhada
e eu lá dentro
fosse com a língua no sexo
ou a respiração atrás do pescoço
fosse no chão duro
ou na macieza de um areal de seda
sem tremer
quase sem respirar
fosse com o esqueleto ao relento
a vibrar de tanto frio
em pé de pé
de costas
um beijo
uma noite
duas horas
um minuto
uma onda do mar
um toque de veludo
é sempre amor
mas não é todo o amor
Miguel Tiago
é neste último cigarro de vinho
que evapora dos meus ombros o peso das horas
que o fôlego brando do descanso me toma
e o ar limpo me respira
que a noite vem suave pousar-me na têmpora o seu beijo
me entrega no pio das corujas brancas
e finalmente
no silêncio
Miguel Tiago
de onde vêm as sombras quando a venda que tens nos olhos te veda a luz e o escuro é uma ilusão de conforto onde até as crianças adormecem? e contudo, nas palavras estão as perturbações do campo electromagnético a que és alheio, no murmúrio do mar e na lonjura do horizonte estão os vultos que te convocam a levantar o rosto. quando semicerras os olhos, vendados, vês os traços do futuro desenhados a carvão pelos teus antepassados. vês nas árvores que pressentes, escrito o amor cravado com navalhas enquanto as folhas agitadas clamam por pássaros que testemunhem que são elas quem se levanta do chão aos céus, com braços ao alto e raízes fundas. são as contradições que nos matam, e o oxigénio que nos alenta. vês esboços de poemas ditos do fundo de um algar onde não podes cair. e os ecos dos gritos mudos dos morcegos despem a rocha da caverna em que tu próprio te escondeste por não teres as mãos atadas e o sossego te impedir de assaltar o ar livre. a humanidade nega-te a tua própria humanidade no conforto. mas tu sabes. no fundo tu sabes. que há luz e há vida. que é uma venda que a luz te nega como nos negamos a um prazer para obter outro, ou como negamos a coragem por medo do que significa coragem. medo. do que significa coragem.
Miguel Tiago
a poesia é um ribeiro límpido
temem-te os que temem a humanidade;
do meu mundo não se vê o teu.
do meu mundo levanta-se um muro de ignorância
uma trincheira de egoísmo
um vulcão de escuridão que se levanta pelo céu em furiosas nuvens
de enxofre.
do meu mundo não se vê o mundo dos outros,
separaram-nos em compartimentos estanques,
cubículos, cidades, números, corpos.
os mundos
dos outros,
são afinal iguais aos meus.
para eles, o outro sou eu.
Miguel Tiago