Wednesday 30 August 2017

Natal


Nasceu.
Foi numa cama de folhelho,
entre lençóis de estopa suja,
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos Reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroas de espinhos
mas coroas de baionetas,
postas até ao fundo
do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

Álvaro Feijó

Sunday 27 August 2017

DESAFIO

Desafio,
travo de amora silvestre,
agulhas da chuva no rosto,
soco do vento contrário,
distância além do horizonte,
vem
desafio
salutar vem,
revigorante vem
dizer-me que não sou capaz
para que te prove que sou.

Vem, desafio,
esfarrapa a flanela do dia-a-dia
com as tuas patas de corcel selvagem
que faiscam estrelas do chão,
galopa nas trevas e vem,
atravessa os povoados e vem,
carregado da palavras duras,
de palavras autênticas,
de palavras-palavras,
bate na minha vidraça
e na dos meus companheiros
para que acordemos todas as manhãs
plenamente
quando os galos acordam.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Thursday 24 August 2017

NOITE DE NATAL


(A um pequenito, vendedor de jornais)

Bairro elegante, - e que miséria!
Roto e faminto, à luz sidéria,
o pequenito adormeceu...

Morto de frio e de cansaço,
as mãos no seio, erguido o braço
sobre os jornais, que não vendeu...

A noite é fria. a geada cresta;
em cada lar, sinais de festa!
E o pobrezinho não tem lar...

Todas as portas já cerradas!
Ó almas puras, bem formadas,
vede as estrelas a chorar!

Morto de frio e de cansaço,
as mãos no seio, erguido o braço
sobre os jornais, que não vendeu,

em plena rua, que miséria!
Roto e faminto, à luz sidéria,
o pequenito adormeceu...

Em torno dele -ó dor sagrada!
Ao ver um círculo sem geada
na sua morna exalação,

pensei se o frio descaroável
do pequenino miserável
teria mágoa e compaixão...

Sonha talvez, pobre inocente!
Ao frio, à neve, ao luar mordente,
com o presépio de Belém...

Do céu azul, às horas mortas,
Nossa Senhora abriu-lhe as portas
e aos orfãozinhos sem ninguém...

E todo o céu se lhe apresenta
numa grande Árvore que ostenta
coisas dum vivido esplendor,

onde Jesus, o Deus Menino,
ao som dum cântico divino,
colhe as estrelas do Senhor...

E o pequenito extasiado,
naquele sonho iluminado
de tantas coisas imortais,

- no céu azul, pobre criança!
Pensa talvez, cheio de esp'rança,
vender melhor os seus jornais...

António Feijó

Monday 21 August 2017

COSTA MARTINS


Pedro d'Anunciação, no Sol, reportando-se à acção de Costa Martins como ministro do Trabalho dos governos de Vasco Gonçalves, diz que o agora falecido militar de Abril «ficou identificado com o que o gonçalvismo teve de melhor (no seu tempo adoptou o 13º mês de salário) e de pior (a forma pouco democrática com que se fizeram saneamentos e se prucuraram impor as posições comunistas)».
Para começar não está mal: uma no cravo, outra na ferradura - sendo que a da ferradura é, por parte do escriba, a retoma das velhas atoardas inventadas pela reacção e que, hoje, passados 35 anos continuam a ser usadas como se se tratasse de verdades absolutas, incontestáveis e incontestadas.

Logo a seguir, o escriba descobre que «o que o marcou mais negativamente (a Costa Martins) foi a sua campanha de "um dia de salário para a nação", segundo a qual os trabalhadores foram instados, com a pressão dos saneamento sobre eles, a trabalharem no domingo, dia 6 de Outubro, e a entregarem o vencimento desse dia ao Estado».
Ou seja: o escriba volta a pegar na palavra da reacção e dispara-a impiedosamente contra a verdade.

Embalado, acrescenta: «Sintomaticamente, o PCP lamentou agora a morte de Costa Martins, tendo Jerónimo de Sousa salientado que ele ficará ligado "às conquistas sociais do pós-revolução".
Ou seja: sintomaticamente, com este pedaço de prosa manhosa, o escriba mostrou o que valia e ao que vinha...

É claro que quem escreve assim, não poderia esquecer-se de repetir a maior e a mais ignóbil de todas as calúnias lançadas pelas forças da contra-revolução contra Costa Martins - e que serve de mote ao escriba para titular a sua prosa: «Costa Martins - O ministro gonçalvista que tropeçou na justiça».
E, como quem não quer a coisa, mas querendo, tropeçando na calúnia, o escriba escreve: «O deputado socialista António Arnaut garantiu mais tarde no Parlamento haver provas de que o ex-ministro desviara verbas do dia de salário e pediu uma investigação ao assunto».

Ora bem: se o escriba quisesse - mas o escriba não quis... - poderia ter esclarecido desde logo que nem «o deputado socialista» nem ninguém tinha provas desse «desvio de verbas» - pela simples e incontornável razão de que não houve desvio nem de um centavo - como Costa Martins demonstrou inequivocamente.

Se o escriba quisesse - mas o escriba não quis... - poderia ter esclarecido desde logo que foi o próprio Costa Martins - e não «o deputado socialista», o qual lançou a calúnia e com isso se deu por satisfeito - quem obrigou a que tudo fosse esclarecido, numa atitude inédita e raras vezes vista antes ou depois.
E se o escriba quisesse - mas o escriba não quis... - poderia, ainda, incitar os leitores a proceder ao didáctico exercício de comparar a atitude de Costa Martins - tomando ele próprio a iniciativa de obrigar a que tudo fosse esclarecido e mostrando provas concretas da falsidade das acusações de que era alvo - com as atitudes dos que, hoje, se dizem vítimas de calúnias, de cabalas e etc.

A terminar - e cheio de motivos para se sentir satisfeito com a forma como cumpriu a tarefa - o escriba suja-se assim: «Mas a verdade é que a vida deste militar cheio de expedientes deixou realmente algumas sombras».

É MENTIRA: a verdade é que a vida deste militar é um exemplo de dignidade, de verticalidade, de coerência - tudo qualidades cuja existência, ao que parece, o escriba desconhece.

Friday 18 August 2017

CONQUISTA


Irmão!
O que tu és sou eu.
Olha bem para mim:
tenho mãos, tenho pés,
tenho olhos fundos,
tenho beiços rubros
e um sexo aberto!
O meu destino é o teu:
terra! terra! somos terra!
terra vermelha e negra,
terra farta de campos,
poeira de astros, lama,
rocha, estrume, flor,
terra vermelha e negra,
terra! mãos e pés,
olhos fundos, boca rubra,
sexo aberto ao Sol!
Orgulha-te comigo, irmão!
Saúda comigo a vida!
E pelo Sol e pelos bichos,
pelo cascalho dos caminhos,
pelas fonte e montanhas,
por todas as misérias e por todas as chagas,
por todo o esterco e por todo o génio,
por tudo o que de mesquinho e grande
nos fez Homens,
Irmão!
olha-me bem a fundo nos olhos
e, de mãos dadas, rompe comigo
à conquista do mundo!


Papiniano Carlos

Tuesday 15 August 2017

DOCE COMPANHEIRA

Música, música,
doce companheira,
teus olhos tão claros
parecem de espuma.

Teus cabelos caem
nos ombros da vida,
tuas mãos afagam
os rostos marcados.

Música, música,
ensina ao futuro
a dialogar
com homens e estrelas.

Sacode a inércia,
acorda os que dormem,
a hora chegou
de estar acordado.

Música, música,
talvez amanhã
os gestos dos homens
encontrem teus gestos.

O mundo é pequeno,
o amor é grande,
este desencontro
não pode durar.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Saturday 12 August 2017

CANÇÃO DE UM PÉ DESCALÇO


Bati-me lá na Rotunda
Herói eles me chamaram
Pouco tempo decorrido
Nesta prisão me encerraram.

1
Meu coração abrasava
de amor pela Democracia,
odiando a Monarquia
que tanto mal nos causava.
A hora da luta esperava
quando o peito se m'inunda
duma alegria profunda.
Ao ouvir dar o sinal
bati-me lá na Rotunda-

2
Do Povo o sangue correu
assim como o dos soldados.
Os chefes, esses, coitados
nenhum deles apareceu.
Quando o inimigo cedeu
é que ao povo me mostraram.
Foi então que proclamaram
essa coisa da «República»
e ante a opinião pública
herói eles me chamaram.

3
Fui herói porque esqueci
meu dever de escravizado.
Descalço, roto, esfaimado,
os bancos eu defendi.
Bem cedo me arrependi
desse acto ter cometido.
Com os doutores eu estava
mas sem ilusões ficava
pouco tempo decorrido.

4
Com a «revolução» quem lucrou
foram Camachos e Costas,
todos têm posto e «postas»
o povo nada ganhou.
Do antigo nada mudou
só p'ra pior aumentaram
reclamando seriedade.
E em nome da Liberdade
nesta prisão me encerraram.

Anónimo

Wednesday 9 August 2017

FASCISMO NUNCA MAIS

«Quem vem para o Tarrafal vem para morrer»: era assim que dois dos directores do Campo de Concentração do Tarrafal - Manuel Reis e João da Silva - sintetizavam os objectivos da criação do Campo, corroborados pelo médico Esmeraldo Pais Prata: «Eu não estou aqui para curar doentes, mas para passar certidões de óbito».

«A chuva, o vento, o calor, a falta de água, a água inquinada, a má alimentação, os mosquitos, o paludismo, a falta de assistência médica e de medicamentos, por um lado; os trabalhos forçados, a violência dos castigos, a brutalidade dos carcereiros, por outro lado - constituíam os meios necessários para que a tarefa dos carrascos fosse levada a cabo».

O Tarrafal foi, de facto, «o espelho do fascismo».
Criado por Salazar no decorrer do processo de fascização do Estado levado a cabo na primeira metade de década de 30, para ali foram enviados 340 resistentes antifascistas, somando um total de 2 mil anos, 11 meses e cinco dias de prisão.
Desses, 32 foram assassinados.

Foi com o objectivo de prestar homenagem a esses resistentes que cerca de duzentas pessoas, respondendo ao apelo da União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), participaram esta manhã numa romagem ao Mausoléu dos Tarrafalistas, no cemitério do Alto de São João, em Lisboa - onde se encontram os restos mortais dos 32 assassinados.

O Mausoléu é um monumento belo, simples, em forma de muro semi-circular, espiralado, no centro do qual se ergue um cubo com dezasseis gavetas em cada uma das duas faces laterais e, na face frontal, a legenda:
«AOS QUE NA LONGA NOITE FASCISTA FORAM PORTADORES DA CHAMA DA LIBERDADE E PELA LIBERDADE MORRERAM NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DO TARRAFAL»


O Cravo de Abril recorda os nomes dos 32 resistentes antifascistas assassinados no Tarrafal:

FRANCISCO JOSÉ PEREIRA
PEDRO DE MATOS FILIPE
FRANCISCO DOMINGOS QUINTAS
RAFAEL TOBIAS
AUGUSTO DA COSTA
CÂNDIDO ALVES BARJA
ABÍLIO AUGUSTO BELCHIOR
FRANCISCO ESTEVES
ARNALDO SIMÕES JANUÁRIO
ALFREDO CALDEIRA
FERNANDO ALCOBIA
JAIME DE SOUSA
ALBINO COELHO
MÁRIO DOS SANTOS CASTELHANO
JACINTO DE MELO FARIA VILAÇA
CASIMIRO FERREIRA
ALBINO ANTÓNIO DE CARVALHO
ANTÓNIO GUEDES DE OLIVEIRA E SILVA
ERNESTO JOSÉ RIBEIRO
JOÃO LOPES DINIS
HENRIQUE VALE DOMINGUES
BENTO ANTÓNIO GONÇALVES
DAMÁSIO MARTINS PEREIRA
ANTÓNIO DE JESUS BRANCO
PAULO JOSÉ DIAS
JOAQUIM MONTES
MANUEL ALVES DOS REIS
FRANCISCO NASCIMENTO GOMES
EDMUNDO GONÇALVES
MANUEL DA COSTA
JOAQUIM MARREIROS
ANTÓNIO GUERRA 
 

Sunday 6 August 2017

MALDIÇÃO


Maldito seja o que busca
matar o sonho dos homens.
Maldita seja a vergonha.
Maldito seja o pesar.
Maldito seja o silêncio
que nos cala antes da morte.
Maldito seja o que é falso,
ou induz em confusão.
Malditos sejam os bons
que o são só por piedosos.
Maldito seja o cruel
por ódio ou por piedade.
Maldito seja o que aceita
argumentos que não pesa.
Maldito seja o que força
alguém a acreditá-lo.
Maldito seja o orgulho
do que o alheio despreza.
Maldito seja o que finge
humildades que não tem.
Maldito seja o que faz
dos desejos maldição.
Maldito seja o desejo
de só nada desejar.
Maldito seja o que inveja
o pão de que não precisa.
Maldito seja o que encontra
no fome conformação.
Maldito seja o que é feio
por gosto de fealdade.
Maldita seja a beleza
que à vida seja traição.
Maldita seja a riqueza
que de fartura não serve.
Maldita seja a fartura
quando a todos não chegar.
Maldito seja o saber
arvorado em tirania.
Maldito seja o que ignora
e não dá por ignorar.
Maldito seja o que impõe
o que para si não quer.
Maldito seja o que jura
contra a sua convicção.
Maldito seja o que alcança
sem o esforço de colher.
Maldito seja o temor
de luz de mais nos cegar.

Armindo Rodrigues

Thursday 3 August 2017

OS AMIGOS

Os amigos partilham
a sua desgraça
em pedaços iguais.
Cada qual recebe
o mesmo quinhão
de tristeza e bruma
e tudo repartem
os dias perdidos
as noites crispadas
as mortes comuns.

De repente falam
e apertam as mãos
levantam lareiras
desenham viagens
confiam no amor.

E no chão vazio
nascem malmequeres
frágeis como a esperança
(e tão persistentes)
frágeis como a vida
(e tão arraigados).

Obscuras flores
que irrompem do escuro
mas que trazem nelas
o espectro do sol.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Tuesday 1 August 2017

A CADA UM...


A cada um chega um pouco
do que para todos chega.
Quem o quer diz-se que é louco.
Mas por que é que se lho nega?
É porque a verdade assusta
que a mentira persuade.
A unidade mais justa
nasce da variedade.
Querer só não é querer.
Não há querer sem acção.
O próprio pão, para o ser,
primeiro rebenta o chão.


Armindo Rodrigues