Monday 30 October 2017

TRÊS PABLOS


Há anos... piores do que outros.
Está nesse caso o de 1973.
Já aqui falámos dele a propósito do golpe fascista no Chile - e, também, do assassinato de Bento Gonçalves no Campo de Concentração do Tarrafal.

Hoje é a vez de o Cravo de Abril assinalar a passagem do 35º aniversário das mortes de três Pablos, todos figuras maiores da arte e da cultura mundiais, todos homens que puseram a sua arte e o seu génio ao serviço das mais nobres causas humanas, todos desaparecidos nesse «ano assassino de 1973»:

Pablo Picasso, em 8 de Abril.
Pablo Neruda, em 23 de Setembro (faz hoje precisamente 35 anos).
Pablo Casals, em 22 de Outubro. Por isso, aqui fica esta

«BREVE CONSIDERAÇÃO À MARGEM DO ANO ASSASSINO DE 1973»

que Vinicius escreveu e leu num espectáculo memorável realizado em Dezembro desse ano:


Que ano mais sem critério
esse de setenta e três...
Levou para o cemitério
três Pablos de uma só vez.

Três Pablões, não três pablinhos
no tempo como no espaço
Pablos de muitos caminhos
Neruda, Casal, Picasso.

Três Pablos que se empenharam
contra o fascismo espanhol
Três Pablos que muito amaram
Três Pablos cheios de sol

Um trio de imensos Pablos
em génio e demonstração
feita de engenho, trabalho,
pincel, arco e escrita à mão.

Três publicíssimos Pablos:
Picasso, Casal, Neruda
Três Pablos de muita agenda
Três Pablos de muita ajuda.

Três líderes cuja morte
o mundo inteiro sentiu...
Ó ano triste e sem sorte:
Vá prá puta que o pariu.

Vinicius de Moraes

Friday 27 October 2017

NÃO ESPERES O TEMPO

Camarada poeta: se puderes
pega na palavra e não te cales
mais. Digo que não esperes,
para cantar, o tempo da colheita.

Agora a fome é tanta
que a palavra pão também se come.
Quem diz pão diz fome e a fome de a não ter não é sobeja.

Digo que a palavra seara faz crescer
o grão da raiva de a não ter.
Digo que a palavra fonte faz jorrar
rios de sede até ao mar.

A palavra trabalho, a palavra suor,
a palavra amiga, a palavra amor.
A palavra precisa, de vendaval ou brisa:
a que denuncia, a que profetiza.

Digo que a palavra que disseres
se pode desfolhar como os malmequeres:
ou muito ou pouco ou tudo ou nada.
O que não pode é ficar calada.

Carlos Aboim Inglês

Tuesday 24 October 2017

NA PASSAGEM DE UM ANO


Erros nossos não são de toda a gente
tropeçamos às vezes na entrega
mas retomamos sempre a marcha em frente
massa humana que nada desagrega.

Para nós o passado e o presente
são futuro no qual o povo pega
com suas mãos de luz incandescente
que aquece que deslumbra mas não cega.

Para nós não há tempo. O tempo é vento
soprando ano após ano sobre a história
que para nós é vida e não memória.

Por isso é que no tempo em movimento
cada ano que passa é menos tempo
para chegar ao tempo da vitória.

José Carlos Ary dos Santos

Saturday 21 October 2017

E ENTÃO?

Todos já vimos
nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão
retratos de meninas e meninos
a defender a liberdade de armas na mão.

Todos já vimos
nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão
retratos de cadáveres de meninos e meninas
que morreram a defender a liberdade de armas na mão.

Todos já vimos!

E então?

Fernando Sylvan

Wednesday 18 October 2017

PARA O MEU TIO


Para o meu tio, que era anarquista,
e que não me deixaram conhecer
porque morreu doente no exílio.

Para o meu pai, que não era de nenhum partido,
nem percebia muito disso,
mas que lutou como voluntário na guerra,
apesar de ver que a perdíamos.

Para o pai do meu cunhado, que figura
na grande lista dos desaparecidos
pelos caminhos que levavam a França.

Para todos os que morreram
com uma bala na frente
nas trincheiras.

Para todos os que morreram na areia
dos campos de concentração franceses.

Para todos os que morreram de fome
nos campos de extermínio alemães.

Para todos os que nunca figuraram
nas listas dos martirizados.

Para todos os que lutaram
para que nós não conhecêssemos
o mundo onde tivemos de nascer.

Para todos vós,
mortos e vivos,
homens e mulheres,
cobardes e valentes.

Para todos vós,
eu, filho da derrota,
envio
toda a minha gratidão,
admiração e respeito.


Enric Larreuela

Sunday 15 October 2017

MENINO POVO

O meu Menino Povo de olhos resplandecentes
mora
na choça negra de terra e colmo
a meio da floresta,
entre a fome
e a noite.
E a sua mãe pobre
nada mais tem para lhe dar
que dois grandes seios.
Agora
o piar das aves agoirentas enche a noite
e o Menino treme
de pavor.
Lá fora uivam as alcateias
e a floresta range diabolicamente.
Parece que a noite
será sempre noite...
Ai se assim fosse!
Mas eu que venho de longe
e sou a clara esperança
trago comigo o canto das calhandras
na alvorada,
e juro ao meu Menino Povo de olhos resplandecentes
que a manhã não tarda,
ela aí vem a caminho por todos os caminhos do mundo,
é breve Dia.

Papiniano Carlos

Thursday 12 October 2017

BALADA PARA UM CONSTRUTOR CIVIL


É este o monumento erguido em tua honra:
um bloco de cimento de cento e vinte apartamentos
Ele é o teu orgulho por ele andaste
de um lado para o outro constantemente discutiste
o preço do ferro e da mão-de-obra deste gratificações
a funcionários municipais assinaste papéis papéis papéis
acordaste em cada manhã impaciente por ver mais um andar
sobre a tua cabeça que fez de noite contas e mais contas
jantaste repetidamente com o engenheiro e os arquitectos
a quem generosamente pagaste os whiskies e o marisco
mostraste algumas vezes à esposa e às amantes o edifício em construção
e passeaste-as no Mercedes dando largas à tua alma de betão
tiveste problemas com o pessoal ameaçaste
os homens que fizeram greve e untaste as mãos
aos que não aderiram e continuaram o trabalho
seguiste passo a passo a construção com a baba na boca
é meu! é meu! disseste para ti mesmo olhando para o alto
tiveste longas conversas com o gerente do Banco que te sorriu e financiou
e a quem prometeste não esquecer no acto da escritura
passaste entre os operários que erguiam as paredes e perguntaste
olá, como vai isso? mas referias-te sempre ao trabalho deles
mandaste pôr uma coroa de flores na campa do servente que
desabou como um pássaro tonto de um andaime do décimo-terceiro andar e
só não acompanhaste o funeral porque a tua filha fez anos nesse dia
fizeste servir na última tarde um almoço para todos
esquecendo alguns ressentimentos e onde havia vinho à discrição
agradeceste pessoalmente a cada um e botaste discurso
mostrando-lhes claramente que és um homem preocupado
que sabe muito bem tudo o que faz

Porém agora que está pronto o monumento
é sobre ti que me interrogo:
Sabes tu quem foram Engels Stravinsky Cesário?
e Van Gogh? E Byron? E Rodin?
Saberás tu que assassinaram Pasolini?
Saberás que Neruda construiu edifícios com pedras preciosas e rubis sangrentos
e que Éluard carregou a sua arma e disparou versos contra os inimigos da França?
Saberás que Aragon amou Elsa nas trincheiras
entre ratos e cadáveres de milhares de crianças fardadas
e que tinham grandes olhos azuis?
Saberás que Camões foi expulso do Império porque ergueu o talento
mais acima que o de todos os outros? E que também Dante foi
espulso de Florença e errou como um pedreiro
à procura de trabalho para morrer feito um cão
longe das portas de ouro da cidade que hoje o reclamam?
Saberás que Fernando Pessoa também olhava para as casas
como quem olha para as árvores?
Será que tu te interessas por estas ninharias?
Oh! como eu gostaria que ao menos pudesses ter presente
o que um dos nossos poetas deixou escrito sobre
as casas as casas as casas!


Joaquim Pessoa

Monday 9 October 2017

DIÁLOGO QUASE POESIA

Tu sabes, mãe - disse o pássaro - os aviões também voam.
- Voam mas não têm coração. Engolem homens aos milhares.
- Para quê?
- Para que o voo seja pago.
- Voo pago? Como pode ser pago e ser voo?
- É por isso que os aviões não cantam. Só nós cantamos
porque ninguém pode comprar o nosso voo.

Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Friday 6 October 2017

TUDO O QUE EU QUERIA


Queria poder sentar-me com todos à mesa
e conversar tranquilamente, falar do tempo,
dos amigos, da cidade, tomar um copo
e um pires de caracóis (esta rodada é minha)
e assim, sem gritar, irmo-nos entendendo,
descobrirmos, todos juntos, por que sofremos
as moléstias do tempo em partes iguais,
e não achamos abrigo quando chove, que é quase sempre.

Queria, depois de jantar (claro que um bom jantar)
acender um bom charuto, abrir um livro
de versos de paisagem ou do mar do retorno
(cor de vinho dizem-me, e eu acho que tanto faz)
e lavar o meu olhar com o vaivém
da luz, da noite e do mar.

Queria, sem olhar para o norte
encontrar uma esperança sobre esta terra que é a minha
e a de todos; ver um amanhã melhor
conseguível no meu trabalho e no dos outros;
encontrar o amor; um pouco de paz se ainda há
e uma moral que não nos leve à morte, mas à vida.

Já terão adivinhado do que se trata,
o que lhes queria dizer
é que me lixa ter de escrever versos.


Jaume Pomar

Tuesday 3 October 2017

O JARDINEIRO MÍOPE

O jardineiro míope levanta-se às cinco horas e vai dar alpista
às flores.
E a seguir rega os pássaros
e enquanto vai regando vai dizendo:
«que bem que cantam as minhas papoulas!».

Um dia, a Liga das Senhoras mais Bondosas do Mundo,
teve um gesto malvado
e ofereceu óculos ao jardineiro míope
que ajustou implacavelmente as imagens
perdeu toda a poesia
e viu tudo de maneira tão clara
que teve a ideia escura de pedir um emprego de funcionário público
enquanto a presidente da Liga
da Liga mais bondosa do mundo
subia para o Céu
e se sentava à mão direita de Deus Padre
que lhe enfiou uma bofetada divina
que todos nós ouvimos em forma de trovão.

Sidónio Muralha
("Que Saudades do Mar" - 1971)

Sunday 1 October 2017

A MÁSCARA DO MAL


Dependurada na parede tenho
uma escultura de madeira japonesa:
a máscara dum demónio pintada a laca dourada.
Olhando para ela, vejo
as veias inchadas da testa, indicando
quanto esforço custa ser mau.

Brecht