Friday 30 September 2011

Poema


(No túnel antes de chegar à estação
de S. Bento, no Porto.)


Ousaram
fechar um homem na treva
promovê-lo ao silêncio
impor-lhe muros de sede.

E agora?

Ei-lo sozinho,
terror de olhos secos
com uma lâmpada de lágrimas no coração
a furar um túnel de névoa na parede.

Ousaram
iluminar a treva com homens.


José Gomes Ferreira

Tuesday 27 September 2011

Poema

(A meu lado na carruagem-restaurante,
um pedante faz muitos gestos para exibir
o brasão do anel.)


Também tenho brasão.
Este:

Em campo agreste,
oculta na bainha,
uma espada
com altivez de cipreste
- a lutar sozinha
contra a morte a fingir de acordada.

(Lema do meu brasão)

Viva a solidão!
que cerra mais e mais
os punhos dos homens
- para terem a ilusão
dos dedos iguais.


José Gomes Ferreira

Saturday 24 September 2011

Poema

(«Ó papoilas da vingança/a nova cor da esperança/é a vossa cor».
A mãe cantava-lhe estes versos.
Entretanto consta que no Baleizão mataram uma camponesa:
Catarina Eufémia.)


Toda a noite cantaste em voz baixa,
para adormecer o menino,
a canção do Graça:
«Ó papoilas dos trigais...»

Canta, canta,
para o acordares mais.

(Transforma-lhe os dedos
em pátrias de punhais.)


José Gomes Ferreira

Wednesday 21 September 2011

O INIMIGO


Grandes olhos frios espiam esta calma
fictícia em que vives. Olhos de inimigo
que chove sobre ti a sua areia,
migalha-te o futuro, cobiça-te os joelhos,
oferece longas jornas de fome, salários
feitos de medo e asco.

Sobre os campos, as fábricas, o inimigo
sopra no teu querer uma paralisia.
Inventa sombras, disfarça a sua imagem;
a linha que o define, fugidia,
em vão a pensarás, em vão teu lápis
tentará aprisionar o seu contorno.

Mas se avanças um passo logo o vês
nesses olhos que tentam fascinar-te.


Egito Gonçalves

Sunday 18 September 2011

Poema

(Ao porco que todo o dia e toda a noite
grunhe em forma de símbolo debaixo
do meu quarto, na casa da senhora Rosinha.)


Eh! vizinho porco
todo o dia de borco
a foçar na terra onde nasceu!
Ensine ao aldeão
a sua lição
de pensar menos no céu
e mais no chão.

(Na terra, camponês,
também há estrelas
que tu não vês...
Mas hás-de vê-las.)


José Gomes Ferreira

Thursday 15 September 2011

(A um morto soviético.)


A ave da morte
cantou numa bala
e o homem tombou
no silêncio de trapos...

Eh! morto: não fiques aí
deitado de costas
à espera que o céu
te caia nos olhos!

Volta-te e olha para a terra
- a carne da tua sombra
de flores acesa.

Céu para quê?

O céu é para os que esperam
e tu morreste por uma certeza.


José Gomes Ferreira

Monday 12 September 2011

Poema

(À Eterna Criança que me persegue a pedir esmola.
Grito de cólera.)


Ouve, Não-sei-quem:

recuso-me a viver
num mundo assim de lua podre
disfarçado de flores
com repetições de esqueletos
e a Eterna Voz Faminta
aqui na minha frente
- pálida de existir!

Ouve, Não-sei-quem:

e se, depois de tudo isto,
ainda há céu e inferno
ou outra sombra intermédia,
recuso-me terminantemente a morrer
e a entrar nessa comédia!


José Gomes Ferreira

Friday 9 September 2011

Poema

(Um jovem comunista, recém-saído da cadeia,
procurou-me para me dizer: «vou para Espanha
bater-me ao lado dos republicanos».)


Adeus!

Tu que arrancaste da treva dos dias e das noites
o sol subterrâneo das flores ocultas nas raízes.
Tu que nunca viste o luar completar os olhos das mulheres
- e a tua mãe só te beijava em fotografia.

Tu que vais morrer pelos outros com vinte anos de desdém ardente
e o futuro nunca saberá o teu nome para maior glória.
Tu que vais conhecer finalmente a verdadeira morte: a nossa.
Não a vida covarde atirada para as nuvens,
mas sombra sem frestas,
frio sem portas...

Tu: adeus!

Morre orgulhosamente
o teu destino de relâmpago
que afoga nos abismos
o eco longo
do silêncio das águias.


José Gomes Ferreira

Tuesday 6 September 2011

Uma certa maneira de cantar


Nunca ouvi um alentejano cantar sozinho
com egoísmo de fonte.

Quando sente voos na garganta
desce ao caminho
da solidão do monte
e canta
em coro com a família do vizinho.

Não me parece pois necessária
outra razão
- ou desejo
de arrancar o sol do chão -
para explicar
a reforma agrária
no Alentejo.

É apenas uma certa maneira de cantar.


José Gomes Ferreira

Saturday 3 September 2011

Poema

(UM MOMENTO DE FILOSOFIA BARATA)

Para além do «ser ou não ser» dos problemas ocos,
o que importa é isto:
- Penso nos outros.
Logo existo.



(ARTE POÉTICA)

Liberdade
é também vontade.

Benditas roseiras
que em vez de rosas
dão nuvens e bandeiras.


(XLII)

E se eu se súbito gritasse
nesta voz de lágrimas sem face:

Eh! companheiros da plataforma
presos ao apagar do mesmo pavio!
Porque não nos amamos uns aos outros
e damos as mãos
- sim, as nossas mãos
onde apodrecem aranhas de bafio?

Eh! companheiros da plataforma!
(Não empurrem, Irmãos.)


José Gomes Ferreira
(três poemas de Eléctrico)

Thursday 1 September 2011

Bandeirinhas


Parei a olhar o mapa da guerra; tinham-no afixado
na frontaria dos escritórios do jornal.
Bandeirinhas - vermelhas e amarelas bandeirinhas,
azuis e pretas bandeirinhas - são deslocadas para trás
e para diante sobre o mapa.
Um rapaz sorridente, cheio de sardas,
sobe a escada, atira uma piada
a alguém que está entre a multidão,
depois espeta uma bandeirinha amarela
uma polegada para oeste
e atrás da amarela espeta uma preta, uma polegada para oeste.

(Dez mil rapazes contorcem-se num lago de sangue
à margem de um rio,
feridos, em convulsões, implorando água,
alguns já no estertor da morte).

Quem perguntará a si mesmo
quanto custou deslocar uma polegada
duas bandeirinhas aqui, no mapa da guerra,
na frontaria do jornal,
onde um jovem sardento nos sorri?


Carl Sandburg