Sunday 30 December 2012

estética do domínio


tornaram bonitas as barrigas inchadas dos meninos pretos,
as moscas vagueando pelas bocas dos famintos,
tornaram heróis quem lhes manda arroz à beira do prazo de validade,
quem usa na lapela um broche de caridade.

arrepiam-te os olhos esbugalhados da criança em sangue,
mas entorpece-te a habituação, toma-te uma certa vontade que se esgota
no anúncio do patrocinador do world press photo.

imunizam pela estética a revolta, volvendo-a piedade,
os ossos da miséria montam cadáveres pelos campos estéreis,
arrasados pelo napalm e fósforo da liberdade.

contemplação de um belo nascido do lodo que esconde
o que mais feio há na verdade.

que belo não é o choro, é o que o acaba.
não é a fome, mas o que alimenta.
belo não é o osso despido, mas a pele que o cobre,

belo não é carpir lamentações, é fazer revoluções.

Miguel Tiago

Thursday 27 December 2012

sacrifício


morrem os filhos enquanto a terra bebe o sangue dos famosos terroristas
que ousam levantar pedras contra os canhões.

deus,
em teu nome assassinam,
em teu nome cobrem de lágrimas e de mortalhas as crianças,

em teu nome lucram,
em teu nome roubam,

em teu nome, em teus nomes.

que vestes te cobrem agora senão a vergonha de estares escondido
e ainda vivo.

Miguel Tiago

Monday 24 December 2012

"the future will see all History as a crime. So, Father, tell us when is the time to rise"


numa multidão prostrada,
um só rosto levantado é um facho aceso
na escuridão.

num povo amordaçado,
um só grito é uma explosão,
que no horizonte fixa o caminho, da poesia e também do pão.

entre gente acorrentada,
um só punho erguido é inspiração,
é fogo que funde o ferro da nossa prisão.

não há voz de comando para o coração revolucionário,
não esperemos um sinal, desnecessário.

vendados os nossos olhos,
haja quem no-los desvende, herói de vanguarda passo a passo.
se nos prende o ferro, juntos seremos aço,
se nos prostra a escuridão, juntos acenderemos a fogueira da imaginação,
se nos amordaça o silêncio, juntos seremos povo, música e canção.

assim seja cada um de nós o primeiro a levantar o rosto,
e que ninguém seja sozinho o primeiro.

Miguel Tiago

Friday 21 December 2012

- sem título -


não podia
ser coincidência a rima
poesia maresia.

não podia.


Miguel Tiago

Tuesday 18 December 2012

chuva


no inverno os dias parecem noites,
mas não noites de verão.

Miguel Tiago

Saturday 15 December 2012

- sem título -


os meus versos são crítica e auto-crítica,
são bandeiras, armas e flagelos.

Miguel Tiago

Wednesday 12 December 2012

- sem título -


a vida abandonou o meu corpo
e o meu corpo perdeu o seu sopro.
passear-me-ei vazio por entre as gentes,
como se não ocupasse espaço.

Miguel Tiago

Sunday 9 December 2012

longe


estrelas e um céu aberto,
do fundo do vale o manto espalha-se
ao topo da montanha,
de onde os deuses entoam o mais belo cântico
da poesia, chamando o trovão e a maresia.
é noite mas resplandece uma chama,
ao fundo, longe, sobre o mar,
a do teu olhar.

Miguel Tiago

Thursday 6 December 2012

revelação


apartado dos sonhos,
revelo-me diante dos espelhos invisíveis.

Miguel Tiago

Monday 3 December 2012

- sem título -


inspiro
um sopro dos lábios
percorre-me como uma brisa
e lembra-me os sussuros
e os murmúrios dos primeiros dias.

de pureza.

expiro
um beijo fugido
escapa-se-me dos lábios
e lembra-me a partida fria
e a neblina escura do fim.

da pureza.


Miguel Tiago

Saturday 1 December 2012

hanare


estava escuro, a noite vinha cobrindo o céu agora já só com as tintas do fim da luz do dia. o jardim era um retrato da serenidade, ladeado pelo bambu alto que projectava a escuridão  para todo o largo interior. não se vislumbrava nada, e do mestre apenas a cabeça redonda rapada se destacava da veste negra que lhe cobria todo o corpo.

o hakama adivinhava-se apenas pelo volume. todo o jardim era o vazio e vazio o espaço e a noite.

o aprendiz, por favor, permanecia na dúvida sobre a existência do vazio. principalmente sobre o seu verdadeiro valor, sobre as capacidades que dele brotam. a ausência de vontade, a capacidade de fazer resultar a ausência de vontade. "por vezes, o praticante acerta o alvo, mas falha-se a si próprio..." palavras que não compreendia ainda, apesar de ter já ultrapassado a barreira dos artifícios para o hanare. Era ainda ele quem libertava a flecha e a sua vontade apontava ao alvo.

acreditava mas duvidava da real libertação, como que por respiração do universo. ousado, na última noite antes de tornar à sua terra, o aprendiz questiona o mestre sobre a verdade do tiro com arco. o mestre não respondeu, como que ofendido. depois de meses de prática, depois de correcções permanentes, a verdade porém é que o aprendiz não tinha facto para provar o que lhe era ensinado como verdade. a libertação estava escrita nos livros, e ouvia-se nas palavras do mestre. uma força diferente vergava o yumi de bambu laminado, sem dúvida, mas a verdadeira dimensão cósmica do tiro não passava ainda de uma racionalização estética.

o aprendiz, por favor, um ocidental, lógico, via como belo o tiro disparado, a flecha em voo e a fluidez do hikiwake mesmo quando o yumi estava nas mãos de alguém que, na sua terra natal, teria idade para viver num lar acamado.

o mestre, como que censurando a desconfiança, mas não resistindo em mostrar a verdade, estendeu com a mão um pequeno e fino pau de incenso. disse ao seu discípulo que o colocasse ao fundo do jardim, frente ao pequeno alvo, no centro. caminhou no breu até lá, até ao fundo do jardim quase tacteando com as pontas dos pés o caminho. acendeu o incenso, fino, fumegante. e caminhou de novo até ao mestre, expectante.

silêncio. um ligeiro ranger do bambu do yumi, uma tensão involuntária arqueando aquela força.
hanare.

o pequeno fio de fumo do incenso agitou-se, sem que ninguém visse.
sem perceber ainda o que o mestre lhe mostrara, caminhou de novo até ao fundo do jardim cinquenta longos passos e encontrou o alvo perfurado, o incenso erecto cortado a metade. a ponta acesa fumegando lentamente no chão.

Miguel Tiago
 

Friday 30 November 2012

- sem título -


são desprovidos de adorno os versos da minha vida,
e muitas vezes de sentido.

mas nuas são tão mais belas as palavras.

Miguel Tiago

Tuesday 27 November 2012

sangue e silêncio (reedição)


anda, entra! dizia a mãe ao miúdo assustado que chorava à porta da escola convertida em abrigo. anda depressa! continuava em desespero e o miúdo, de cara suja, chorava e teimava em ficar de fora. lá para dentro estavam todos amontoados, como objectos que se guardam nos armários quando os já não queremos.

como as velharias que se colocam nos sótãos quando não tencionamos tornar a usá-las.


pela mão puxou-o para dentro, quase à força, quase em pranto. afinal de contas, os soldados tinham sugerido que se refugiassem ali. numa escola, cuidada pelas nações unidas, onde só os civis caberiam. uma antiga escola onde houvera um dia aulas, servia agora de casa de abrigo para os seus antigos e futuros alunos.

os soldados ocupantes, de arma em punho, capacete moderno, haviam-lhe entrado em casa no terceiro dia dos bombardeamentos. sugeriram que apenas procuravam terroristas e militares escondidos. que as bombas serviriam apenas para destruir esses alvos perigosos, diziam. recomendaram-lhe, e a mais umas boas centenas de mães e crianças, que se refugiassem na escola, que aí não cairiam as bombas.

ao quarto dia dos bombardeamentos, a mãe puxou o miúdo para o colo. lembrou que já perdera o filho mais novo e o marido. que queria proteger este puto com tudo o que tinha, com todas as suas forças. carregou numa mochila uns mantimentos ligeiros e no braço levou o rapaz. atravessou uma ex-cidade quase de ponta-a-ponta. ouviu silvos de balas mortais perto dos seus cabelos, saltou por cima de corpos moribundos e cadáveres cobertos de sangue. encostou-se a paredes devastadas, ouviu os gritos das velhas desesperadas, ainda deu água a um rapaz que corria perdido nos escombros.

chegou finalmente à escola, à segurança. os soldados, apesar de ocupantes, queriam apenas suprimir a ameaça que viam nas nossas estruturas militares ou para-militares, pensou. contrariada, refugiou-se, por não poder largar a criança, por não poder pegar o destino e a revolta nos seus braços, por não poder, não ter as forças, para expulsar da sua terra os soldados dos capacetes, metralhadoras, caças e bombardeiros, os tanques da opressão. conformou-se à sua condição de fraca, oprimida, mas mãe forte e fonte de coragem para proteger o que é seu porque lhe nasceu de dentro.

conseguiu finalmente trazer o miúdo para dentro, embora o seu choro fosse agora ainda mais agudo. dentro da escola-abrigo, juntou-se às centenas de mães que traziam ao colo ou pela mão os filhos e as filhas, aos outros pequenos que por ali choravam agarrados às mães. lá dentro uma massa de gente que abandonara tudo, que perdera já muito. gente que não sabia o que lhes reservaria o amanhã.

dois dias depois, depois de ali comer e dormir, ou não dormir, uns segundos de silêncio acompanharam um olhar colectivo, surpreendido, revoltado e choroso, para o bombardeiro que passou nos céus acima da escola. as lágrimas não tiveram tempo de escorrer, as mãos mal tiveram tempo de se cerrar. o silêncio tomou-os todos, mães e crianças. um assobio de morte ao cair da noite converteu a escola em ruínas de sangue e silêncio.

Miguel Tiago

Saturday 24 November 2012

causa efeito


quanto mais pobres somos, por menos vendemos a nossa dignidade.

Miguel Tiago

Wednesday 21 November 2012

noite


a noite é a derradeira poesia dos deuses.

Miguel Tiago

Sunday 18 November 2012

viagem


viajo-me nas ondas ao longe
e respiro o sol na pele,
enquanto o sol me quiser
e o vento me levar às ondas do mar.

vaga, maré, onda,
sopro, vento, fúria
viagem.

Miguel Tiago

Thursday 15 November 2012

"lirismos"


apesar dos espinhos, das dúvidas,
apesar dos tropeços e enganos,
certos de que voltar atrás é apagar a alma colectiva
caminharemos sempre em frente,
rumo à chama acesa da vitória.

Miguel Tiago

Monday 12 November 2012

turbulências


se te sabe a mar o céu da boca,
serão ondas ou lágrimas que te enchem?

se por dentro te faltam as forças,
ou tremem as vigas que te sustentam,
serão sismos ou dúvidas que te esvaziam?

são fantasmas,
são ventos,
são rios caudalosos de águas lamacentas,
turbulentas.


Miguel Tiago

Friday 9 November 2012

não me digam "abre os olhos"


ninguém traz os olhos fechados,
mas é complexa a paisagem,
e ofusca tanto a luz do sol,
como nos tolda a escuridão.

niguém traz fechados os olhos,
mas no breu vislumbrar é capacidade
dos morcegos e lobos.
ofusca tanto a luz do sol, quanto nos tolda a escuridão.


Miguel Tiago

Tuesday 6 November 2012

- sem título -


cerro as mãos e agarro o vazio,
volto-as abertas e olho o rodopio
de nada que as abandona.

escuto-me em vão,
nem o vento.

sopra apenas um ar parado,
no lugar que me esgota o peito.

em vão,
nem o vento.

acordo de um delírio
e percebo que afinal nunca dormi, estive sempre acordado.

em vão,

nem

o

vento.


Miguel Tiago

Saturday 3 November 2012

Thursday 1 November 2012

visão do vazio


o vazio é um fascínio,
uma visão inimaginável
de ausência
de cor de tempo
ou movimento.

o vazio enche quem não tem espaço por dentro.

Miguel Tiago

Tuesday 30 October 2012

- sem título -


estamos a meio caminho,
só não sabemos o destino.

Miguel Tiago

Saturday 27 October 2012

irreversível


é a irreversibilidade
que nos constrói,
a permanência de tudo,
dos actos mais que das coisas.

é a persistência, mesmo inconstante,
das marcas na alma, nos olhos e na pele,
que faz da vida vida
e da morte morte.

Miguel Tiago

Wednesday 24 October 2012

tempo vento


tudo passa, nada fica.
tudo fica, nada passa.

Miguel Tiago

Sunday 21 October 2012

colectivo


pudera eu indicar-te o caminho
por onde desbravares a vereda,
estreita é certamente,
mas cavada já por muitos antes de mim.

pudera eu dizer-te que trazes cerrados os olhos,
mas mente quem assim te engana,

quem assim tos veda,
esconde de ti a vida e a estrada que tens em frente.

pudera eu dizer-te vem comigo,
que é larga a via,
mas não teria eu força suficiente
para te arrancar do lodo onde te prendem,
para romper a mordaça que te atam,
e libertar as tuas mãos das correntes que tas matam.

mas podemos nós dizer-te
vem connosco, ergue o rosto.
poderás ser um de nós,
e o lodo não será prisão,
nem as mordaças limitação.
e serão nossas, nossas mãos,
a ferramenta da vida em construção.

Miguel Tiago

Thursday 18 October 2012

querida ausência


longo o manto espesso da noite,
tardio nascente.
sempre virá o dia, em passo lento,
tirar-nos o escuro e as estrelas.

tirar-nos a ausência que nos falta.
queima tudo esse sol que nos cega.

Miguel Tiago

Monday 15 October 2012

- sem título -


ontem discorreu-se sobre o que é a poesia.
eu acho que a poesia é o sangue escrito com letras.

Miguel Tiago

Friday 12 October 2012

- sem título -


prefiro tanto a escuridão.

Miguel Tiago

Tuesday 9 October 2012

- sem título -


o teu corpo junto ao meu.
a tua anca contra mim,
um suspiro em silêncio,
uma breve luz pela janela,
assim fosse um dia sem fim.

Miguel Tiago

Saturday 6 October 2012

dias estranhos


o meu vizinho da frente ouve música de merda
quando ele tira a música, fica um silêncio de merda.

Miguel Tiago

Wednesday 3 October 2012

- sem título -


o mar anseia o teu nome,


principalmente


quando as ondas o pulverizam pelo ar,
em gotas de sal,
viajantes, audazes em conquista da terra,
como conquistar-te ousaria a minha coragem
sumida, no tempo e na lenta espera dolente
que faz definhar o mais belo poema.

Miguel Tiago

Monday 1 October 2012

- sem título -


os mais férreos grilhões,
a mais estreita prisão.
os olhos baixos, braços caídos,
a falta de coragem é a derrota do homem

Miguel Tiago

Sunday 30 September 2012

Thursday 27 September 2012

Monday 24 September 2012

Touro


Friday 21 September 2012

Tuesday 18 September 2012

Saturday 15 September 2012

Wednesday 12 September 2012

Sunday 9 September 2012

Monday 3 September 2012

Saturday 1 September 2012

Thursday 30 August 2012

O Casal


Monday 27 August 2012

O Beijo


Friday 24 August 2012

Nu


Tuesday 21 August 2012

Nu IV


Saturday 18 August 2012

Nome


Wednesday 15 August 2012

Sunday 12 August 2012

Thursday 9 August 2012

Monday 6 August 2012

Friday 3 August 2012

Wednesday 1 August 2012

Monday 30 July 2012

Friday 27 July 2012

E Joana


Tuesday 24 July 2012

Saturday 21 July 2012

Wednesday 18 July 2012

Sunday 15 July 2012

Thursday 12 July 2012

Monday 9 July 2012

Friday 6 July 2012

Tuesday 3 July 2012

Sunday 1 July 2012

A Mãe


Saturday 30 June 2012

Wednesday 27 June 2012

Seppuku


Com a chegada de Março, as cerejeiras de inverno começavam lentamente a despedir-se das flores que as cobriram no princípio do fim do frio e da neve. A alvura começara a diluir-se para se abrir em verdes pedaços de terra que surgiam. Sob a copa aberta de uma cerejeira, segurou o cabo da espada com a mão direita e a bainha e a guarda com a mão esquerda.

Solenemente, contemplou, inclinando-se para baixo, o corpo e o seu sopro sagrado que em breve cessaria. Dali, se via ainda o prado onde morrera um e outro. Haviam morrido, porém ainda teriam a liberdade de partir com dignidade. No campo da batalha, agora coberto de um manto de sangue sobre o gelo e a neve, jaziam inúmeros os corpos já vazios. Embora com mais perdas, a batalha havia sido ganha, o inimigo retirara-se para não mais voltar. Igualmente, o seu líder ficara para sempre de peito aberto até que venha a apodrecer sob a terra.

Por isso mesmo, embora vencedores, a vida não teria agora a quem servir. E quem vive para servir, deixa de viver quando desvanece esse objectivo. Não é opção, é naturalidade. À medida que a primeira flor de cerejeira caiu da copa rósea, sentiram essa sua incontornável natureza. A flor não escolhera cair.

A mão direita cortaria agora a quadragésima sexta cabeça com a lâmina já baça do sangue que, frio, se espessava. Por detrás do homem ajoelhado, levantou a lâmina paralela ao solo sobre os seus ombros e por detrás do seu próprio pescoço. Quando o ajoelhado se penetrou e esventrou com a faca até às costelas, com a mão direita apenas, fez lançar sobre o pescoço num só golpe rápido e poderoso, a lâmina afiada do destino. Pendeu o corpo para frente, vazio, com a pele do pescoço segurando a cabeça ao tronco. Sacudiu o sangue vívido da lâmina, contemplando os quarenta e seis mortos esvaídos ao longo do campo branco e gelado.

Depois, sem ter quem lhe retribuísse a digna homenagem, tornou a embainhar a sua espada. Puxou com a mão direita o punhal e com o gume virado para os seus olhos, fê-lo entrar no seu corpo, sereno. Quando tombou, ainda viu tocar no chão a pequena flor, mesmo a seu lado.


Miguel Tiago

Sunday 24 June 2012

- sem título -


curta é toda a vida enquanto o teu beijo dure.

Miguel Tiago

Thursday 21 June 2012

- sem título -


primeiro foi a tua roupa interior,
depois levaste os vestidos,
as blusas, a escova de penteares os cabelos após o duche.
depois levaste o corpo que vestias e que despias,
os cabelos, os olhos, finalmente.
depois a casa ficou mais fria,
como um remoinho de coisa nenhuma,
onde tudo se esgota inexoravelmente para o vazio.
depois, mesmo depois de teres ido,
abandonou-me o cheiro que deixaste nos lençóis.

lentamente, vai-se a alma que aqui morava,
e definha a que me habita.

Miguel Tiago

Monday 18 June 2012

- vento -


o vento sopra as vidas que navegam o mar contra o horizonte claro,
um vento quente, um sopro com cheiro a primavera sempre,
como assim durassem as árvores floridas nas avenidas..

só esses ventos assim, de beijos esfuziantes, são capazes de encher o nosso peito.

Miguel Tiago

Friday 15 June 2012

- sem título -


dilacerado.

Miguel Tiago

Tuesday 12 June 2012

- sem título -


os teus olhos são uma tarde de verão com poucas nuvens.

Miguel Tiago

Saturday 9 June 2012

aurora


no dorso o sol a pique,
mãos rasgando o chão para comer.
para viver, não pode levantar-se
o homem que nasceu para andar erguido.
foi vergado por quem nasceu
de espírito já partido,
sem coluna, verme protegido.

do chão emerge a vida de ambos,
a de um pelo trabalho de suas mãos, a do outro
pela fome de cada mão.

não percebe quem com seus braços sulca a terra
que assim sulca a história e escreve as linhas do futuro.
o sol um dia trará também essa aurora de fogo
(de libertação) e comerá apenas quem quiser amassar o pão.

Miguel Tiago

Wednesday 6 June 2012

o mito segundo narciso


quando ela morreu, o mundo, infelizmente, não cessou. e os dias passavam 
agora penosos, eras a cada lua. na floresta onde caçavam, vagueava 
 inconscientemente, entorpecido. havia um vazio nos seus olhos que só viam 
saída nas lágrimas cheias que pendiam, permanentes.

quando ela morreu, o mundo, infelizmente, continuou. e ele, perdia a 
continuidade do seu ser, um pedaço de alma, como um pedaço da vida. 
 narciso arrastava os pés por entre as árvores. eco seguia-o sentindo a dor.
nas sombras oblíquas da floresta, por onde haviam passeado as musas nas 
horas matinais que se iam e por onde hades passearia nos instantes que se 
seguiam em busca de perséfone para se saciar, jazia um lago que reflectia o
céu por entre folhagens. quando caiu, debruçou-se, infinitamente triste sobre 
as águas espelhadas e serenas.
ali, mesmo ali, jazia a imagem gémea dela. não mais desviou seus olhos da 
água que chorava com ele. eco, bela, olhou seu corpo moribundo e chorou. 
no lugar onde narciso adorou a sua irmã, deixou uma flor que ali cresceu.
 
Miguel Tiago

Sunday 3 June 2012

- sem título -


sábado, está uma chuva miudinha e um nevoeiro marinho. dentro de mim estaria um deslumbrante sol fosse outra a meteorologia.

partilho assim com o dia a translucência fosca e a escuridão.

Miguel Tiago

Friday 1 June 2012

- sem título -


depois de incandescentes,
as letras e os versos são como homens,
não cristalizam.
pulsam e respiram.

sanguíneas e vivas.

Miguel Tiago

Wednesday 30 May 2012

o futuro


já portámos nos braços
tantas vezes
o futuro dos outros,
construamos com eles
agora o nosso.

já fomos despojados
tantas vezes
de vida e dignidade,
resgatemos agora os sorrisos
e façamos do desespero, a liberdade.

já tantas vezes servis,
escondidos em covis,
saiamos por esses campos fora,
sulcando nas cores da terra os horizontes
de uma nova hora.

Miguel Tiago

Sunday 27 May 2012

comunista


se te roubam é economia,
se te enganam é democracia,
se te iludem é eloquência,

se te revoltas és alarmista,
se te organizas és terrorista.

se te matam, é a prevenção,
se te bombardeiam, são os direitos humanos,
se te calam, shiu, não podem ouvir falar de revolução.

se lutas, és extremista.
se resistes, és radicalista.

desses que nos roubam,
nos enganam, iludem,
matam, bombardeiam,
calam,
as ofensas soam a elogio,
e quando levantares o rosto saberás que tudo quanto te chamam faz de ti


afinal de contas

um comunista.

Miguel Tiago

Thursday 24 May 2012

- sem título -


nas artérias, sangue,
como nos versos.

e o sangue não rima,
como não rimam os versos.

Miguel Tiago

Monday 21 May 2012

- sem título -


a liberdade é um bem finito e não elástico.

Miguel Tiago

Friday 18 May 2012

APOCALIPSE


É o cavalo do tempo a galopar...
Ninguém pode detê-lo.
Vê-lo,
é ver, a sonhar,
um relâmpago a rasgar
o céu dum pesadelo.

Deixa a desolação por onde passa.
Torna os sonhos maninhos.
Desmente os adivinhos
que, na divina graça
de feiticeiras alucinações,
prometem duração às ilusões.

Besta infernal,
com asas de morcego
e raiva desbocada,
largou do prado onde pastava ausente,
e corre, corre, em direcção ao nada,
única direcção que a fúria lhe consente.

Miguel Torga

Tuesday 15 May 2012

PRISÃO



Canta dentro de mim a confiança
da grande multidão silenciosa
que me rodeia.
Move-se uma epopeia
na rasa solidão do meu destino.
Como um búzio anodino
que na praia ressoa
a pancada da onda que magoa
as penedias,
assim eu tenho melodias
emparedadas no coração.
Pudesse a concha, como um fruto cheio
de fecundas doçuras desejadas,
abrir-se no areal de meio a meio
e libertar as notas abafadas!


Miguel Torga

Saturday 12 May 2012

IDIOTAS, PALHAÇOS E BANDIDOS...



Idiotas, palhaços e bandidos,
enfatuados, ocos, ignorantes,
do capital humildes servidores,
ante os trabalhadores majestosos,
melífluos, devotos, afectados,
hipócritas, sem escrúpulos, grosseiros,
no apetite à solta insaciáveis,
na total desvergonha sem remédio,
agiotas vorazes para os pobres,
para os ricos mãos rotas sem medida,
impávidos na asneira triunfal,
relapsos no logro e na mentira,
useiros e vezeiros na traição,
são os que nos governam e eu desprezo.


Armindo Rodrigues

Wednesday 9 May 2012

POSIÇÃO DE GUERRA


Crescem em mim milhões de punhos
cerrados,
bandeiras desfraldadas,
horizontes.
Soam em mim milhões de brados
resolutos,
protestos brutos,
queixumes.
Abrem-se em mim milhões de chagas,
como crateras de fogo.
Rompem de mim vendavais.
Sou eu que me interrogo,
a tudo atento,
sobranceiro ao gozo ou ao sofrimento,
com pensamentos verticais.

Armindo Rodrigues

Sunday 6 May 2012

Preferir o nebuloso...


Preferir o nebuloso ao evidente,
por ser feio o evidente e belo o nebuloso,
é um defeituoso gozo
de doente.


Armindo Rodrigues

Thursday 3 May 2012

SEMEARÁS O VENTO


semearás o vento
o trigo a sede

sentirás o grão
amadurecer
ao longo do teu corpo

escutarás no teu peito
o largo silêncio
da seara

colherás outro tempo
uma romã
uma fonte

semearás o vento
com o amor
que cria a tempestade


Rui Namorado

Tuesday 1 May 2012

Até amanhã



agachados na cova da noite
pequeninos e enormes
esperávamos o homem da bicicleta

embrulhados em papel de jornal
ele transportava uma foicinha
e um martelo

mal chegado
um minuto de silêncio conspirativo
e logo o trabalho

sobre o chão húmido e rugoso
ensinava a construir
e a semear
na inteligência dos homens
no coração dos homens
na coragem dos homens

quando partia
e montava a tosca e fiel bicicleta
sabia
que na próxima vez
vinha encontrar a terra semeada de esperanças
e mais uma telha
e mais uma trave
na casa da construção

foi ontem
e amanhã se for preciso


Francisco Gonçalves de Oliveira

Monday 30 April 2012

A ÚNICA SABEDORIA



Toda a crença
pressupõe uma pretensa sabedoria
revelada.
Eu quero-a conquistada
dia a dia.


Armindo Rodrigues

Friday 27 April 2012

SEMPRE


Éramos muitos...

De vós só restam a lenda
e as cruzes espalhadas
pela vinha
de cepas mutiladas.
E agora enchemos o vosso silêncio
de novas palavras,
palavras a que os vossos lábios
não estavam afeiçoados.

Sois a lenda que surge e teima
em vestir-se com as luzes
que mal se adivinham.
Sois o destino já cumprido,
a história enraizada na vinha
de cepas mutiladas.

Éramos muitos...

e somos mais,
apesar das cruzes
que apodrecem ao relento,
apesar das palavras que nunca chegam
a ser iguais para toda a gente,
apesar da sufocante espera.

Éramos muitos.
E somos mais.

Félix Cucurull

Tuesday 24 April 2012

Não nos deixam cantar

Não nos deixam cantar, Robeson,*
meu canário com asas de águia,
meu irmão negro com dentes de pérola,
não nos deixam cantar as nossas canções.
Têm medo, Robeson,
medo da aurora, medo de olhar
medo de ouvir, medo de tocar.
Têm medo de amar,
medo de amar como amou Ferhat, apaixonadamente.
(Decerto que também vocês, irmãos negros,
têm um Ferhat, como é que lhe chamas, Robeson?)
Têm medo da semente e da terra,
medo da água que corre,
medo da lembrança.
A mão de um amigo que não deseja
nem desconto nem comissão nem moratória
igual a um pássaro quente,
não apertou nunca a sua mão.
Têm medo da esperança, Robeson, medo da esperança!
Têm medo, meu canário com asas de águia,
têm medo das nossas canções, Robeson...


Nazim Hikmet

* Paul Robeson, cantor negro norte-americano. Do seu reportório faziam parte cantos espirituais negros e outras canções tradicionais, de combate e de luta. A dada altura foi proibido de fazer espectáculos nos EUA: ficou célebre o espectáculo que realizou no Canadá, no limite da fronteira com os EUA, ouvido por milhares de compatriotas seus...

Saturday 21 April 2012

Um fantasma percorre a Europa


... E as velhas famílias fecham as janelas,
reforçam a segurança das portas,
e o pai corre às escuras para os Bancos
e o pulso pára-lhe na Bolsa
e sonha de noite com fogueiras,
com reses a arder,
que em vez de trigais tem chamas,
em vez de grãos, chispas,
caixas,
caixas de ferro, cheias de faúlhas.
Onde estás,
onde estás?
Os camponeses passam e calcam-nos o sangue.
O que é isto?

Fechemos,
fechemos depressa as fronteiras.
Vede como avança rápido no vento de Leste,
das estepes vermelhas da fome.
Que os operários não lhe ouçam a voz,
que o seu silvo não penetre nas fábricas,
que não divisem a sua foice erguida os homens dos campos.
Detende-o!
Porque transpõe os mares,
percorrendo toda a geografia,
porque se esconde nos porões dos barcos
e fala com os fogueiros
e trá-los tisnados para a coberta,
e faz com que o ódio e a miséria se sublevem
e as tripulações se levantem.

Fechai,
fechai os cárceres!
A sua voz estilhaçar-se-á contra os muros.
Que é isto?

Mas nós seguimo-lo,
fazemo-lo baixar do vento Leste que o traz,
perguntamos-lhe pelas estepes vermelhas da paz e do triunfo,
sentamo-lo à mesa do camponês pobre,
apresentamo-lo ao dono da fábrica,
fazemo-lo presidir às greves e às manifestações,
falar com os soldados e os marinheiros,
visitar os pequenos empregados nas oficinas
e erguer o punho aos gritos nos Parlamentos do ouro e do sangue.

Um fantasma percorre a Europa,
o mundo.
Nós chamamos-lhe camarada.


Rafael Albertí

Wednesday 18 April 2012

Soneto escrito na morte de todos os antifascistas assassinados pela PIDE


Vararam-te no corpo e não na força
E não importa o nome de quem eras
naquela tarde foste apenas corça
indefesa morrendo às mãos das feras

Mas feras é demais. Apenas hienas
tão pútridas tão fétidas tão cães
que na sombra farejam as algemas
do nome agora morto que tu tens

Morreste às mãos da tarde mas foi cedo
Morreste por que não às mãos do medo
que a todos pôs calados e cativos

Por essa tarde havemos de vingar-te
por essa morte havemos de cantar-te:
Para nós não há mortos. Só há vivos.


José Carlos Ary dos Santos

Sunday 15 April 2012

HOMEM COM ESPERANÇA



Acabaremos algum dia, talvez amanhã,
com as palavras inúteis e bonitas,
com o tinir da porcelana fina,
e com as marionetes de escuras cores.
E ensinaremos aos nossos filhos, paridos sem dor,
o como e o porquê de cada coisa,ẽ deixamo-los ir para a rua, sem medo,
e brincarão a construir povos.
E tocarão na terra,
e fá-la-ão sua e de todos,
e escreverão, com novas palavras,
novas leis, nova história e nova vida.
Também virá um barco de ágil vela,
esquivando tempestades e altivas rochas,
e levará todo o ouro da terra, mitos e falsos deuses,
e deixar-nos-á quedo o mar e uma pequena barca.
Com ela iremos saudar os povos,
às costas uma mochila com ferramentas e livros,
nos olhos um brilho de alegria,
e a esperança nos homens e nos dias.


Joaquim Horta

Thursday 12 April 2012

Revolução


Entre tu e mim
há um montão de contradições
que se juntam
para fazer de mim o sobressalto
que fica de testa suada
e te edifica.


Miguel Barnet

Monday 9 April 2012

Quadras


Tu fazes a vida inteira
esgares junto ao altar,
porque vês nisso a maneira
de viver sem trabalhar.

O padre não mostra cor
política na contenda:
é apenas o defensor
do governo que o defenda.

Se os homens dum deus precisam,
não me deixa satisfeito
o que os padres utilizam
apenas em seu proveito.

Se gostas de bem fazer
com qualquer interesse em vista,
não és quem pretendes ser
és simplesmente egoísta.

Se cá voltasse Jesus,
o mártir, filho do homem,
escorraçava os que comem
à sombra da sua cruz.

Quando a noção do dever
nos der ampla liberdade,
acabará por esquecer
a palavra «caridade».


António Aleixo

Friday 6 April 2012

A Luta



A luta é implacável e cruel.
A luta, como se diz, é épica.
Já tombei. Outro me tomará o posto.
Nada mais. O que conta a vida dum qualquer?

Fuzilamento: e depois os vermes,
tudo isso é lógico e simples.
Nas tempestades estaremos sempre juntos,
meu povo, porque te amámos tanto.

Nicola Vaptzarov

Tuesday 3 April 2012

«CANTAR ALENTEJANO»


1 - Os homens e as bestas

«As balas deram sangue derramado»:
Catarina, em Baleizão - faz hoje 55 anos;
Alfredo Lima, em Alpiarça;
José Adelino dos Santos, em Montemor-o-Novo;
e, outra vez em Montemor-o-Novo, António Caravela e José Casquinha.
Os assassinos: os grandes latifundiários e os seus serventuários de antes e de depois do 25 de Abril.


2 - Balanço trágico

Milhares e milhares de homens, mulheres e jovens perseguidos, presos, torturados: no tempo do fascismo - e no tempo da ofensiva contra a Reforma Agrária;
o Alentejo em estado de sítio, ocupado pelas forças repressivas: no tempo do fascismo - e no tempo da ofensiva contra a Reforma Agrária.
O Alentejo do latifúndio, com herdades entre os 1 000 e os 10 000 hectares: no tempo do fascismo - e no tempo posterior à destruição da Reforma Agrária.


3 - O tempo novo

A Reforma Agrária foi:
a decisão histórica dos trabalhadores de avançarem para as terras, ocupá-las e cultivá-las, eliminando o latifúndio, numa altura em que a sabotagem económica levada a cabo pelos agrários punha em perigo a liberdade e a democracia acabadas de conquistar;
logo ao fim de um ano, 1 140 000 hectares de terra ocupados e a produzir como nunca antes acontecera;
mais de 50 000 postos de trabalho criados, acabando com o desemprego e com a fome;
a criação de uma vasta rede de creches, jardins de infância, centros da terceira idade;
a transformação das velhas relações de produção capitalistas em relações de cooperação e solidariedade, pondo termo, naquele universo e naquela situação concreta, à exploração do homem pelo homem;
o Futuro a ser construído.


4 - Outra vez o tempo velho

A contra-Reforma Agrária foi:
a restauração do latifúndio através de um processo criminoso e devastador iniciado pelo Governo PS/Mário Soares, em 1976, e prosseguido por todos os governos que se lhe seguiram: Sá Carneiro, Mota Pinto, Balsemão/Freitas, Cavaco Silva...
todos recorrendo ao golpe, à fraude, à mentira, à calúnia, à ilegalidade;
todos ordenando os roubos de terras, de colheitas, de cortiça, de máquinas, de alfaias, de gados;
todos fora-da-lei, violando ostensivamente a Constituição da República e rasgando insolentemente centenas de decisões favoráveis à Reforma Agrária emitidas pelos tribunais; todos não hesitando em submeter o Alentejo a ferro e fogo, em mandar perseguir, prender, submeter a interrogatórios pidescos, torturar, milhares de trabalhadores - em mandar disparar, ferir, matar;
todos destilando o ódio de classe que os invadia e exibindo-se como serventuários caninos dos velhos latifundiários - dos mesmos que, anos antes, tinham Salazar como seu serventuário canino;
o Passado retrógrado, explorador e opressor regressado aos campos do Alentejo.


5 - O FUTURO:
a certeza de que a Reforma Agrária nos mostrou um pedacinho do Futuro pelo qual lutamos;
a certeza de que não há Democracia sem uma Reforma Agrária que restitua a terra a quem a trabalha;
a certeza de que os mortos, não os deixamos para trás, abandonados;
a certeza de que a luta continua;
a certeza de que VENCEREMOS.

Sunday 1 April 2012

A SOCIEDADE DE CONSUMO


A sociedade de consumo é um balcão.
Nela se vende o pão,
se vende o amor,
se vende o sonho, se vende a bondade,
se vende a justiça, se vende o favor,
se vende o acesso à informação,
se vende a modéstia, se vende a vaidade,
se vende a honra, se vende a fé,
se vende a vontade, que é uma ilusão,
se vende a morte, que não o é.

Armindo Rodrigues

Friday 30 March 2012

O COMBOIO DE SERVIÇO


1
Por ordem expressa do Fuhrer,
o comboio de luxo expressamente feito para o Congresso do Partido em Nuremberga
recebeu o nome de COMBOIO DE SERVIÇO.
O que quer dizer que
os que o tomam prestam com isso um serviço
ao povo alemão.


2
O comboio de serviço
é uma obra-prima da técnica ferroviária. Os passageiros
têm apartamentos privativos. Pelas largas janelas
vêem os camponeses alemães mourejar pelos campos.
Se por acaso transpirassem nesse momento
poderiam tomar banho
em cabines cobertas de ladrilhos.
Um subtil sistema de luzes permite-lhes
ler à noite, de pé, sentados ou deitados, os jornais
com as grandes reportagens sobre os benefícios do regime.
Os vários apartamentos
comunicam entre si por linhas telefónicas
tal como as mesas dos grandes dancings cujos clientes
podem perguntar às mulheres das mesas vizinhas
o preço que cobram.
Sem sair da cama os passageiros também podem
ligar o rádio, que transmite as grandes reportagens
sobre os erros dos outros regimes. Jantam,
se assim o desejarem, no respectivo apartamento,
e fazem as respectivas necessidades
em privadas privativas revestidas de mármore.
Cagam
Na Alemanha.


Brecht

Tuesday 27 March 2012

Acerca de uma viagem


Abrimos portas,
fechamos portas,
franqueamos portas
e no termo da viagem única
nem cidade
nem porto.

O comboio descarrila,
o barco naufraga,
o avião cai.

Há uma inscrição gravada no gelo.
Se eu pudesse escolher
recomeçar ou não esta viagem
recomeçá-la-ia.


Nazim Hikmet

Saturday 24 March 2012

FLOR DA LIBERDADE

Sombra dos mortos, maldição dos vivos.
Também nós... Também nós... E o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
a sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra,
ou debaixo da terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
a Deus, à tirania, à eternidade.

Sepultos insepultos,
vivos amortalhados,
passados e presentes cidadãos:
temos nas nossas mãos
o terrível poder de recusar!
E é essa flor que nunca desespera
no jardim da perpétua primavera.

Miguel Torga

Wednesday 21 March 2012

Balada daquele que cantou na tortura



E se houvesse que voltar
atrás eu voltaria
Uma voz sobe dos ferros
e fala de um outro dia

Dizem que na sua cela
dois homens tinham entrado
sussurravam Capitula
vê-se que estás cansado

Podes viver a vida
acata os nossos conselhos
diz a palavra que livra
e viverás de joelhos

E se houvesse que voltar
atrás eu voltaria
A voz que sobe dos ferros
fala já para o novo dia

Só uma palavra e a porta
abre-se logo e tu sais
Assim o carrasco exorta
Sésamo Não sofras mais

Uma palavra só só mentira
o teu destino retém
na doçura das manhãs
pensa pensa pensa bem

E se houvesse que voltar
atrás eu queria ir
A voz que sobe dos ferros
fala aos homens do porvir


Aragon

Sunday 18 March 2012

1936



Lembra-o tu e lembra-o aos outros,
quando enojados da baixeza humana,
quando furiosos pela dureza humana:
Este homem único, este acto único. esta fé única.
Lembra-o tu e lembra-o aos outros.

Em 1961, numa cidade estranha,
mais de um quarto de século
depois. Vulgar a circunstância,
obrigado tu a uma leitura pública,
por causa dela conversaste com esse homem:
um antigo soldado
da Brigada Lincoln.

Há vinte e cinco anos, este homem,
sem conhecer a tua terra, para ele distante
e estranha, resolveu ir para lá
e nela, se chegasse o momento, decidiu apostar a sua vida,
julgando que a causa que lá estava em jogo
então, digna era
de lutar pela fé que enchia a sua vida.

Que essa causa pareça perdida,
nada importa;
que tantos outros, pretendendo crer nela,
apenas trataram de si mesmos,
importa menos.
O que importa e nos basta é a fé de alguém.

Por isso outra vez hoje a causa te parece
como naqueles dias:
Nobre e tão digna de lutar por ela.
E a sua fé, aquela fé, ele a manteve
através dos anos, da derrota,
quando tudo parece atraiçoá-la.
Mas essa fé, a ti mesmo dizes, é o que somente importa.

Obrigado, Companheiro, obrigado
pelo exemplo. Obrigado por me dizeres
que o homem é nobre.
Nada importa que tão poucos o sejam:
Um homem, um só, basta
como testemunho irrefutável
de toda a nobreza humana.


Luis Cernuda

Thursday 15 March 2012

MINHA MAIS QUERIDA


Minha mais querida
Mais do que nunca
é necessário
amar.
Mas amar bem.
Amar muito.
Amar sempre mais.
Amar sim como só eu te amo.
Amar mais do que é preciso.
Amar muitas vezes desesperadamente.
Amar sempre tanto
tanto...
tanto...
tanto quase como quem delira.

Ou então meu amor
amar acima de tudo
e além de todos
mas amar sempre mais do que a raiva
mil vezes raivosa de quem na prisão
nos odeia!


José Craveirinha

Monday 12 March 2012

PRANTO PELO DIA DE HOJE


Nunca choraremos bastante quando vemoso gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
que quem ousa lutar é destruído
por troças por insídias por venenos
e por outras maneiras que sabemos
tão sábias tão subtis e tão peritas
que nem podem sequer ser bem descritas.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Friday 9 March 2012

Gabriel Péri




Morreu um homem cuja única defesa
era saudar a vida
Morreu um homem cuja única conduta
era o seu ódio às armas
Morreu um homem que continua a luta
contra a morte e os fantasmas
pois tudo quanto ele queria
queríamos nós então
e queremos hoje ainda:
A felicidade - luz
nos olhos e no coração da gente
E na terra justiça sempre

Palavras há que dão vida
e são palavras inocentes
a palavra calor a palavra confiança
amor justiça e a palavra liberdade
a palavra criança e a palavra simpatia
e certos nomes de flores e certos nomes de frutos
a palavra coragem e a palavra descobrir
e a palavra irmão e a palavra camarada
e certos nomes de países e de aldeias
e certos nomes de mulheres e de amigos

Juntemos-lhes Péri
Péri morreu pelo que nos dá vida
tratemo-lo por tu tem o peito crivado
porém graças a ele melhor nos conhecemos
tratem-nos por tu está viva a sua esperança


Paul Éluard

Tuesday 6 March 2012

LIEBKNECHT MORTO



O cadáver jaz pela cidade inteira.
Em todos os prédios, em todas as ruas.
Todos os quartos
se esvaem no escorrer do seu sangue.

Começam das fábricas as sereias
infinito imenso
estrondeante assobio,
na cidade inteira uivante.

E com um clarão
nos brilhantes
imóveis dentes
começa o cadáver
a sorrir.


Rudolf Leonhard

Saturday 3 March 2012

Coro dos órfãos



Nós órfãos
queixamo-nos ao mundo:
Cortaram-nos o nosso ramo
e atiraram-no ao fogo -
lenha de queimar fizeram dos nossos protectores -
Nós órfãos jazemos nos campos da solidão.
Nós órfãos
queixamo-nos ao mundo:
na noite os nossos pais jogam connosco às escondidas -
por trás das dobras negras da noite
as suas faces nos olham,
falam as suas bocas:
Lenha seca fomos nós na mão dum lenhador -
mas os nossos olhos fizeram-se olhos de anjos
a olham para vós,
através das dobras negras da noite
eles olham -
Nós órfãos
queixamo-nos ao mundo:
Das pedras fizemos os nossos brinquedos,
pedras têm caras, caras de pai e mãe,
não murcham como flores, não mordem como bichos -
e não ardem como lenha seca quando as metem no forno -
Nós órfãos queixamo-nos ao mundo:
Mundo porque nos tiraste as nossas mães ternas
e os pais que dizem: Meu filho, és parecido comigo!
Nós órfãos não somos parecidos com ninguém mais no mundo!
Ó Mundo
queixamo-nos de ti!


Nelly Sachs

Thursday 1 March 2012

AVISO



A noite que precedeu a sua morte
foi a mais breve de toda a sua vida
Pensar que estava vivo ainda
era um fogo no sangue até aos punhos
A sua força era tal que ele gemia
Foi quando atingia o fundo deste horror
que o seu rosto num sorriso se lhe abriu
Não tinha apenas um único camarada
mas sim milhões e milhões de camaradas
para o vingarem sim bem o sabia
E então para ele ergue-se a alvorada


Paul Éluard

Monday 27 February 2012

Massa



No final da batalha,
e morto o combatente, aproximou-se dele um homem
e disse-lhe: «Não morras, amo-te tanto!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Aproximaram-se dele dois e repetiram-lhe:
«Não nos deixes! Coragem! Volta à vida!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Acudiram-lhe vinte, cem, mil, quinhentos mil,
clamando: «Tanto amor, e não poder nada contra a morte!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Milhões de indivíduos o rodearam,
num pedido comum: «Não nos deixes, irmão!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Então, todo os homens que há na terra
o rodearam; viu-os o cadáver triste, emocionado;
soergueu-se lentamente,
abraçou o primeiro homem. E começou a andar...


César Vallejo

Friday 24 February 2012

A um Papa



Poucos dias antes que morresses, a morte
tinha posto os olhos num teu coetâneo:
aos vinte anos, eras estudante, ele servente,
tu, nobre, rico, ele um rapazote plebeu:
mas os mesmos dias douraram sobre vós
a velha Roma que se tornava assim nova.

Vi os seus despojos, pobre Zucchetto.
Girava de noite, bêbedo, em volta dos Mercados,
e o eléctrico de São Paulo atropelou-o
e arrastou uma parte pelas linhas entre os plátanos:
algum tempo ali ficou, sob as rodas:
alguma gente se reuniu em torno a olhá-lo
em silêncio: era tarde, havia poucos passantes.
Um dos homens que existem porque tu existes,
um velho polícia, desleixado como um «guapo»,
gritava a quem se encostava muito: «Larguem-lhe a braguilha!»
Depois veio o automóvel dum hospital a carregá-lo:
a gente dispersou, ficou qualquer frangalho aqui e ali,
e a dona de um bar nocturno, mais à frente,
que o conhecia, disse a um recém chegado
que Zucchetto acabara sob o eléctrico, finara-se.

Poucos dias depois acabavas tu: Zucchetto era um
da tua grande grei romana e humana,
um pobre bebedolas, sem família e sem leito,
que girava de noite, vivendo quem sabe como.
Tu não sabias nada: como não sabias nada
de outros tantos e tantos cristos como ele.
Talvez seja feroz ao perguntar-me por que razão
a gente como Zucchetto era indigna do teu amor.
Há lugares infames, onde mães e filhos
vivem numa poeira antiga, em lama de outra época.
Precisamente não longo donde viveste,
à vista da bela cúpula de S. Pedro,
há um destes lugares, o Gelsomino...
Um monte talhado ao meio por uma mina e, em baixo,
entre pedras e uma fila de novos prédios,
um grupo de míseras construções, não casas mas pocilgas.
Bastava apenas um gesto teu, uma palavra tua,
para que aqueles teus filhos tivessem uma casa:
tu não fizeste um gesto, não disseste uma palavra.
Não te pedíamos que perdoasses a Marx! Uma onda
imensa que se refracta por milénios de vida
te separava dele, da sua religião:
mas na tua religião não se fala de piedade?
Milhares de homens sob o teu pontificado,
perante os teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.
Tu o sabias, pecar não significa fazer mal:
não fazer bem, isso é que significa pecar.
Quanto bem podias fazer! E não o fizeste:
não houve um pecador maior do que tu.


Pier Paolo Pasolini

Tuesday 21 February 2012

EL CRIMEN FUE EN GRANADA: A FEDERICO GARCIA LORCA

1 - El crimen

Se le vio, caminando entre fusiles,
por una calle larga,
salir al campo frio,
aún con estrellas de la madrugada.
Mataron a Federico
quando la luz asomaba.
El pelotón de verdugos
no osó mirarle la cara.
Todos cerraron los ojos;
rezaron: ni Dios te salva!
Muerto cayó Federico
- sangre en la frente y ploma en las entrañas.
... Que fue en Granda el crimen
sabed - pobre Granada! - en su Granada.


2 - El poeta y la muerte

Se le vio caminar solo con Ella
sin miedo a su gadaña.
- Ya el sol en torre y torre, los martillos
en yunque - yunque y yunque de las fraguas.
Hablaba Federico,
requebrando a la muerte. Ella escuchaba:
«Porque ayer en mi verso, compañera,
sonaba el golpe de tus secas palmas,
y liste el hielo a mi cantar, y el filo
a mi tragedia de tu hoz de plata,
te cantaré la carne que no tienes,
los ojos que te faltan,
tus cabellos que el viento sacudia,
los rojos labios donde te besaban...
Hoy como ayer, gitana, muerte mia,
qué bien contigo a solas,
por estos aires de Granada, mi Granada!»


3 - Se le vio caminar...

Labrad, amigos,
de piedra e sueño en el Alhambra,
un túmulo al poeta,
sobre una fuente donde llhore al agua,
y eternamente diga:
el crimen fue en Granada, en su Granada!


António Machado

Saturday 18 February 2012

PROGRAMA

Esta ânsia de indagar,
de analisar, de propor,
de discutir, de negar,
de afirmar só duvidando,
para a cada dúvida erguida
sempre outras razões opor,
de por igual estar presente
onde estou e onde não estou,
é o caminho mais puro
que vale a pena trilhar.

Este prazer de arrasar,
para de novo construir,
de imaginar que sou aço,
sem me esquecer de que sou,
irremediavelmente,
mísero, frágil, comum,
de pele, músculos, ossos,
sangue, nervos, desatinos,
é o destino mais claro
que vale a pena sonhar.

Este orgulho de não querer
nada para mim apenas,
para ter os braços mais livres,
para mais livre pensar,
para ser mais de direito
dono do que necessito,
para a quanto me rodeia
não o achar nunca estreito,
é a riqueza maior
que vale a pena ganhar.

Armindo Rodrigues

Wednesday 15 February 2012

QUANDO INVENTARAM DEUS


Quando inventaram Deus, a palavra
voava a pouca altura, o alfabeto
estava por nascer. Isto foi ao princípio.
Quando se fizeram os primeiros livros,
encheram-nos de metafísica (sempre
mal estudada) e do terrorismo do além.

É uma triste façanha essa de arremeter
contra a gasta ciência dos antigos,
não é a táctica adequada. Ponhamos
os anjos no seu lugar, os hálitos celestiais
no olvido, as bíblicas sentenças no centro
da luta de classes. Nós, os materialistas,
sentimos pena dos crentes saídos de Oxford,
dos agentes da bolsa que inventaram a fraude
e nem por isso deixam de cumprir os ritos, suas
encomendas ao Senhor dos espaços.

Quando inventaram Deus, as condições eram outras.
Agora, trata-se de pôr em ordem as nossas coisas.
A princípio foi a matéria e só depois é que
se mesclaram os céus e a terra.

Luis Suardíaz

Sunday 12 February 2012

Catarina Eufémia

O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
e eu penso nesse instante em que ficaste exposta
Estavas grávida porém não recuaste
porque a lição é esta: fazer frente

Pois não deste homem por ti
e não ficaste em casa a cozinhar intrigas
segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres
nem usaste de manobra ou de calúnia
e não serviste apenas para chorar os mortos

Tinha chegado o tempo
em que era preciso que alguém não recuasse
e a terra bebeu um sangue duas vezes puro

Porque eras a mulher e não somente a fêmea
eras a inocência frontal que não recua
Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste

E a busca da justiça continua


Sophia de Mello Breyner Andresen

Thursday 9 February 2012

RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA



Para que ela tivesse um pescoço tão fino
para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
para que a sua espinha fosse tão direita
e ela usasse a cabeça tão erguida
com uma tão simples claridade sobre a testa
foram necessárias sucessivas gerações de escravos
de corpo dobrado e grossas mãos pacientes
servindo sucessivas gerações de príncipes
ainda um pouco toscos e grosseiros
ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdício de gente
para que ela fosse aquela perfeição
solitária exilada sem destino


Sophia de Mello Breyner Andresen

Monday 6 February 2012

CAMÕES E A TENÇA

Irás ao paço. Irás pedir que a tença
seja paga na data combinada
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce

Em tua perdição se conjuraram
calúnias desamor inveja ardente
e sempre os inimigos sobejaram
a quem ousou mais ser que a outra gente

E aqueles que invocaste não te viram
porque estavam curvados e dobrados
pela paciência cuja mão de cinza
tinha apagado os olhos no seu rosto

Irás ao paço pacientemente
pois não te pedem canto mas paciência

Este país te mata lentamente


Sophia de Mello Breyner Andresen

Friday 3 February 2012

MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA OU O ITINERÁRIO INELUTÁVEL

Minúcia é o labirinto Muro por muro
pedra contra pedra livro sobre livro
rua após rua escada após escada
se faz e se desfaz o labirinto
Palácio é o labirinto e nele
se multiplicam as salas e cintilam
os quartos de Babel roucos e vermelhos
Passado é o labirinto: seus jardins afloram
e do fundo da memória sobem as escadas
Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta
biblioteca rede inventário colmeia -
Itinerário é o labirinto
como o subir de um astro inelutável -
Mas aquele que o percorre não encontra
toiro nenhum solar nem sol nem lua
mas só o vidro sucessivo do vazio
e um brilho de azulejos íman frio
onde os espelhos devoram as imagens

Exauridos pelo labirinto caminhamos
na minúcia da busca na atenção da busca
na luz mutável: de quadrado em quadro
encontramos desvios redes e castelos
torres de vidro corredores de espanto

Mas um dia emergiremos e as cidades
da equidade mostrarão seu branco
sua cal sua aurora seu prodígio


Sophia de Mello Breyner Andresen

Wednesday 1 February 2012

Caxias 68

Luz recortada nesta manhã fria
muros e portões chave após chave
O meu amor por ti é fundo e grave
confirmado nas grades deste dia


Sophia de Mello Breyner Andresen

Monday 30 January 2012

DUAL




Dois cavalos a par eu conduzia
Não me guiava a mim mas meus cavalos

E no país de espanto e de tumulto
em mim se desuniu o que eu unia


Sophia de Mello Breyner Andresen

Friday 27 January 2012

TRADUZIDO DE KLEIST

Dizem que no outro mundo o sol é mais brilhante
e brilha sobre campos mais floridos
Mas os olhos que vêem essas maravilhas
são olhos apodrecidos


Sophia de Mello Breyner Andresen

Tuesday 24 January 2012

Notícia para colar na parede


Por aqui andamos a morder as palavras
dia a dia no tédio dos cafés
por aqui andaremos até quando
a fabricar tempestades particulares
a escrever poemas com as unhas à mostra
e uma faca de gelo nas espáduas
por aqui continuamos ácidos cortantes
a rugir quotidianamente até ao limite da respiração
enquanto os corações se vão enchendo de areia
lentamente
lentamente


Egito Gonçalves

Saturday 21 January 2012

Os vegetantes


Continuam aqui
roendo as unhas!

Substituem as unhas por poemas
(ou cafés, futebol, anedotário)
e estilhaçam espelhos que na luz
ao seu devolvem a cruel imagem.

Vidrado limo o rosto
de rugas sem memória
assistem à vida como um filme:
disparar sobre a tela é proibido
e além do mais inútil.

Curvam ao solo os ombros
escorjados; curvam-nos para
duradoiras urtigas, seixos
sem horizonte, epitáfios
de lama, dezembros, poeira fria.

Se chovem as esperanças não acorrem
a apanhá-las na boca ao ar aberto.
Tijolo articulado a língua balbucia
«É a vida!», Sementes violadas
não germinam.

Em vão os bombardeiam os oráculos
com agulhas de sangue. Nada tentam
para dar vida à fala que utilizam,
ao país do cansaço que entre dentes
ressacam.

E fazem do amor essa triste humidade,
um delíquio formal logo amortalhado.

São dóceis, cibernéticos,
dia a dia premiados
de alguns gramas a mais
no chumbo do pescoço.


Egito Gonçalves

Wednesday 18 January 2012

Também aqui Vietnam


Cada manhã
recebemos no telégrafo o pão que nos impõem,
o que em agonia mastigamos vigiando
a dolorosa digestão: passará
nas tripas?

Leveda negro este pão da morte
a que não escaparemosNegrito
sem destruir esse forno de sombras
onde coze
a incurável ferida que rasgará as entranhas da terra.

Que outra coisa comer se é este o pão
que nos fere a gargaNegritonta a cada fome
onde quer que estejamos?

O tempo morde-nos os ossos. A tenaz
aperta-nos a voz sob os detritos.
Que casulo protege da farinha
assassina? Saiamos para a luz, Façamos
de toda a pedra bala
antes que o relâmpago irrompa e a música
seja o leve tombar da poeira radioactiva.


Egito Gonçalves

Sunday 15 January 2012

APONTAMENTOS PARA UMA CANÇÃO, MAIS TARDE


Um dia escreverei uma canção,
uma simples canção,
para os que aprendem geografia nos comunicados de guerra,
nas notícias dos jornais,
nos telegramas do estrangeiro...
para os jovens que aprendem nomes complicados
de pronúncia estranha
com o coração
com a esperança
com o desalento...
para os que, como eu,
e outros mais novos
sabem com os nervos onde fica Adis-Abeba e Guadalajara,
Guadalcanal, o golfo de Akaba, Birkenau e Dien-Bien-Puh...
para os que sabem tudo da mistificação de Munique
da destruição de Oradour
da configuração de Seul
da conspiração de Caracas
da reconstrução de Coventry
da punição de Nuremberga...

Um dia escreverei uma canção,
uma simples canção,
terrível como um campo de trigo incendiado,
ardente como os povos que resistem,
para os que sabem
o essencial de Granada - o nome de Federico,
de Istambul - o nome de Nazim Hikmet,
de Buchenwald, Drancy, Auschwitz, os nomes de Desnos
Max Jacob
Fondane
etc., etc.
centenas de etceteras
cada um correspondendo a um nome válido,
a um pássaro morto.

Uma canção sanguinária como a religião dos Tughs,
insólita como a erecção dos enforcados,
para os que ligam o nome dos generais ao número de cadáveres,
sabem os locais onde operam os construtores de ruínas,
sofrem cólicas diante dos placards
e regressam a casa, solitários,
para comer a sopa de mais uma derrota
em que não intervieram.

Uma canção selvagem como os caçadores de escalpes,
destruidora como um terramoto japonês,
para os que sabem de cada crime o ponto certo no mapa
e aprendem, cada manhã, novos nomes invulgares
que lhes rebentam os ouvidos
como se deflagrassem bombas dentro da «paz» que habitam.
(Nomes que os turistas não encontram nos roteiros de viagens
que as Agências lhes fornecem com o prazer enlatado.)

Um dia escreverei uma canção,
uma simples canção,
firme como as flechas da Morte,
para os jovens eruditos da Geografia
que sabem tudo sobre Hiroshima
e respiram - até quando? - ao ritmo de Oak Ridge.


Egito Gonçalves