Tuesday 30 December 2014

RETRATO


Amo-te; e o teu corpo dobra-se,
no espelho da memória, à luz
frouxa da lâmpada que nos
esconde. Puxo-te para fora
da moldura: o teu rosto branco
abre um sorriso de água, e
cais sobre mim, como o
tronco suave da noite, para
que te abrace até de madrugada,
quando o sono te fecha os olhos
e o espelho, vazio, me obriga
a olhar-te no reflexo do poema.


Nuno Júdice

Saturday 27 December 2014

O TEMPO É NOSSO


Espancaste-me.
Cegaste-me.
Olho por olho? dente por dente?

Talião perdeu a pena
que embora cheia de penas
o tempo é nosso, da nossa gente.
E mal na noite que dura
a dura dor permanece

já a canção amanhece.

Francisco Viana

Wednesday 24 December 2014

*


Se me pedes
um testemunho sincero
destes anos que já nem contam
não tenho senão
uma mão-cheia de lumes
de que fui solidário combustível
como o dia em que o limoeiro
do quintal
sonhou com uma grande planície
uma ventania que o tivesse
como único destinatário
e foi só a tosca acrobacia
de lhe chegar
aos frutos mais panorâmicos

não
não terei saudades das longas palavras
nem da música sincopada
a que viram costas as crianças
estou só disponível
para um vocábulo que me arranque
à hipnose dos que não se suicidam
e duvido que volte a assombrar-me
como naquele dia
em que te trouxe o limão alto
e disseste que preferias
o ácido dos meus dedos


Vasco Gato

Sunday 21 December 2014

ANTRO - 1966


Este é o Homem de Java,
o Pitecantropo,
há uns 600 mil anos!

Este é o Homem de Neanderthal,
há 60 a 70 mil anos!

Este é o Homem-Sequestrado
há já quarenta anos.

Francisco Viana

Thursday 18 December 2014

A JANELA ILUMINADA


Não chames ao mundo morada, não lhe dês um nome
pois falhas a tua Primavera
as sugestões atmosféricas tornam as paisagens equívocas
e nunca chegamos a perceber
como avança uma história
ou uma tempestade

Diante da janela iluminada
acredita apenas na duração
do amor


José Tolentino de Mendonça

Monday 15 December 2014

O PEQUENO PERSA


É um pequeno persa
azul o gato deste poema.
Como qualquer outro, o meu
amor por esta alminha é materno:
uma carícia minha lambe-lhe o pêlo,
outra põe-lhe o sol entre as patas
ou uma flor à janela.
Com unhas e dentes e obstinação
transforma em festa a minha vida.
Quer-se dizer, o que me resta dela.

Eugénio de Andrade

Friday 12 December 2014

Queria golos a rodos



Queria a vossa matinal preguiça
clamando por justiça
por ser ainda tão cedo.
Mesmo que resmungando,
queria vossos passos ecoando
pela casa ainda fria.
Queria os restos do pequeno-almoço
espalhados pela sala.
Queria a Vossa fala
com restos de “refilisse”
por ser quase madrugada.
Queria o saco azul, na entrada
que por aqui está parada
porque ninguém me incomoda.
Queria conversas modernas
em linguagem “ipad”
que um velho diz que entende
abanando a cabeça.
Queria beijos de fugida
ou abraços de bom dia
queria um pavilhão gelado
e o orgulho pairado
em todo o meu corpo velho
que não joga, observa.
Queria golos a rodos
saltos, corridas, alegria
e o vosso sorriso estampado
que hoje aqui lembrado
me deixa fora da vida.
 

Nuno Guimarães

Tuesday 9 December 2014

As cabras


Por toda a parte onde a terra for pobre e alta, elas
aí estão, as cabras - negras, muito femininas nos
seus saltos miúdos, de pedra em pedra.
Gosto destas desavergonhadas desde pequeno.
Tive uma que me deu meu avô, e ele próprio
me ensinou a servir-me quando tivesse fome,
daqueles odres fartos, mornos,
onde as mãos se demoravam vagarosas antes da boca
se aproximar, para que o leite não se perdesse pelo rosto,
pelo pescoço, pelo peito até, o que às vezes acontecia,
quem sabe se de propósito, o pensamento
na vulvazinha cheirosa.
Chamava-se Malteza, foi meu cavalo, e não sei
se a minha primeira mulher.

Eugénio de Andrade

Saturday 6 December 2014

*


Todos os barcos partiram já
deste cais improvisado no abandono
das memórias queimadas, partiram sem velas,
e ninguém reconheceu o rasto incerto
do definitivo longe.

Só agora dou pelo peso do esquecimento.
A espuma embrulha-me com limos, espanto e sal.
E uma intolerável concha flutua na minha existência.

Apago as estrelas com a manga da absoluta solidão,
percebo que nenhuma luz me habita os olhos
- e fico cego diante do espelho.

Ninguém reconheceu que se morria.


Vasco Gato

Wednesday 3 December 2014

CANTE JONDO


A mão onde poisava
o que a noite trazia
é quase imperceptível;
memória só seria
do que nem nome tinha:
um arrepio na água?,
um ligeiro tremor
nas folhas dos álamos?,
um trémulo sorrir
em lábios que não via?

Memória só seria
de ter sonhado a mão
onde nada poisava
do que a noite trazia.

Eugénio de Andrade

Monday 1 December 2014

A Criação do Mundo



Olhou as mãos em concha e viu arredondar-se
um sonho dentro delas – um mundo
que ninguém podia adivinhar, pois dele
fariam também parte os magos e os profetas.

Abriu-as devagar e deixou cair as trevas como sementes,
para que então servissem unicamente de sombras
e prolongassem a memórias das coisas por vir. Foi assim
que inventou a luz e separou um dia do seguinte.

Depois afastou o céu daquilo que viria a ser o mar,
como quem divide um lenço azul em dois e limpa
as lágrimas apenas a metade. No meio, deixou que
crescesse tudo quanto do chão quisesse escapar-se
para traçar a primeira geografia dos caminhos. E assim

descobriu a cor e encheu a sua paleta de animais
que rasgariam os céus, cruzariam os oceanos e
revolveriam as entranhas da terra na estação
das chuvas. Por fim, semeou pequenas clareiras

nas florestas, pedras nas vertentes das cordilheiras,
cristais de neve no contorno dos lagos, estrelas cadentes
na vizinhança do desespero e rios serpenteantes
entre as searas louras, mordidas por um sol que lhe caiu
quase sem querer dos dedos, mas lhes aproveitou o calor.

E, apesar da alegria que experimentou, sentiu que o seu
mundo era tão frágil que, se desviasse os olhos, tudo acabaria
por regressar ao pó, às trevas e ao verbo. Só por isso criou alguém
que também o visse e lhe dissesse todos os dias como era belo.
 
Maria do Rosário Pedreira