Saturday 30 April 2016

Casa de penhores


I

Rua estreita - não sei quem lá passou...
Porta aberta - não sei quem lá entrou.
Não sei - não sei dizer e não me importa,
nem a rua, cansada de ser rua,
nem a porta cansada de ser porta.

Mas foi aqui, na rua triste e nua,
e junto à porta aberta, fria e larga,
que me surgiu aquela frase amarga
e nunca mais me deixou:

- Schubert empenhou o violino e o mundo não estoirou!

II

Mas não falemos de Schubert... falemos da velha tonta...
- A velha tonta que perdeu a neta
e anda, de porta em porta, a imitá-la...

Diz assim, aflautando a sua fala:

«Ó velha, conta... ó velha, conta
aquela história triste do poeta...»

- A velha tonta que perdeu a neta
todos os dias ajoelha
em frente da lamparina...

(O Cristo empenhou-o a velha
para salvar a neta pequenina...)

E a velha tonta reza à lamparina:

- «Meu Deus, perdoa-me a audácia
de ter teu Filho empenhado...
- Foi para pagar a conta da farmácia...
perdão, meu Deus, perdão!»

- e o Cristo, resignado,
em três meses de juro crucificado,
espera o dia do leilão.

Sidónio Muralha

Wednesday 27 April 2016

A PESCA

O bafio o safio a enguia o atum
um para todos todos para um
mas nenhum por todos
e todos por nenhum.
Ai a raiva Ai a raiva
de pescar em jejum.

Amadores da fala das marés
cicatrizes da faina amadizes da gala
duma cauda de renda duma onda de espuma
este mar aprendiz da vossa força
aprende a ser o vosso
ou de coisa nenhuma.

Obrigai-os a dar-vos o que a vós
deve em suor e choro.
Quando dizeis em coro
à uma à uma à uma
se não for vosso o barco
há-de ser vossa a voz
ou de coisa nenhuma.

Uma lua uma vela uma lula uma estrela
que lindo e mole é tudo
mas quem dará por elas
mais do que um pão de silêncio uma pedra de vinho
Ah não!
deveis vencê-las
às vagas que vos saem ao caminho.

Garanhões das correntes
campeões
dos músculos da água
ide
ide e voltai contentes
com vossas redes cheias dos latentes
peixes da nossa mágoa.

Trazei monstros marinhos e ancestrais
piranhas tubarões moreias e serpentes
mas sobretudo os peixes canibais
que se nutrem de gente.
Despejai-os na lota como ao ódio
escamado que vos cobre:

Durante a luta
haveis de ver quem morre.

José Carlos Ary dos Santos

Sunday 24 April 2016

A teu lado


A teu lado, amor,
não há muros, silêncio, morte.

Por cada espinho de aço cravado
em nossa carne,
há um rio de sangue e primavera.

Por cada bofetada,
um sorriso de criança.

Por cada insulto,
por cada punhalada,

uma seara, uma estrela, uma cidade.

Papiniano Carlos

Thursday 21 April 2016

RETRATO DE ALVES REDOL

Porém se por alguém não foi ninguém
cantou e disse flor canção amigo
a si o deve. A si e mais a quem
floriu cresceu cantou lutou consigo.

Homem que vive só não vive bem
morto que morre só é negativo
morrer é separar-se de ninguém
e contudo com todos ficar vivo.

Nado-vivo da morte. É isso. É isso.
Uma espécie de forno de bigorna
de corpo imorredoiro que transforma
em fusão o metal do compromisso:
Forjar o conteúdo pela forma:
marrar até morrer. E dar por isso.

José Carlos Ary dos Santos

Monday 18 April 2016

Manhã


Bom dia - diz-me um guarda.
Eu não ouço... apenas olho
das chaves o grande molho
parindo um riso na farda.

Vómito insuportável de ironia
Bom dia, porquê bom dia?

Olhe, senhor guarda
(no fundo a minha boca rugia)
aqui é noite, ninguém mora,
deite esse bom dia lá fora
porque lá fora é que é dia!

Luís Veiga Leitão

Friday 15 April 2016

SONETO PRESENTE

Não me digam mais nada senão morro
aqui neste lugar dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu.

José Carlos Ary dos Santos

Tuesday 12 April 2016

E POR VEZES


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão-Ferreira

Saturday 9 April 2016

CERNE


Constantemente me interrogo.
E, se não me interrogasse,
como saberia eu
o meu certo rumo?
Como poderia eu, portanto,
negar com tanta segurança,
por hipótese,
sobre as mentiras fáceis,
as dificílimas verdades?

Armindo Rodrigues

Wednesday 6 April 2016

Quem escolhe o caminho das pedras


Quem escolhe o caminho das pedras
foge à fascinação do fácil

Quem escolhe o caminho das pedras
sabe de cor a cor do sangue

Quem escolhe o caminho das pedras
nada quer para tudo ser

Quem escolhe o caminho das pedras
ama o amor na raiz do lume

Quem escolhe o caminho das pedras
equilibra-se nos fios da morte

Luís Veiga Leitão

Sunday 3 April 2016

A VIDA É FEITA DE INSTANTES

A vida é feita de instantes
em constante oposição.
Nenhum é como foi dantes.
Foram-se uns, outros virão.
Em que é o homem igual,
a não ser em nunca o ser?
Quem sabe o que o mundo vale
mais tem de que se valer.
Uma esperança se quebranta?
Outra toma a dianteira.
O que mais na vida espanta
é a própria vida inteira.

Armindo Rodrigues

Friday 1 April 2016

A Menina


Sou eu que bato às portas,
às portas, umas após outras.
Sou invisível aos vossos olhos.
Os mortos são invisíveis.

Morta em Hiroxima
há mais de dez anos,
sou uma menina de
sete anos.
As crianças mortas não crescem.

Primeiro arderam os meus cabelos,
também os olhos arderam, ficaram calcinados.
Num instante fiquei reduzida a um punhado de cinzas
que se espalharam
ao vento.

No que diz respeito
a mim,
nada vos imploro:
não podia comer nem sequer bombons,
a criança que ardeu como papel.
Bato à vossa porta, tio, tia:
uma assinatura. Não matem as crianças
e
deixem-nas também
comer bombons.

Nazim Hikmet